Introdução
Roberto Evangelista nasceu no município Cruzeiro do Sul, no estado do Acre, mas criou-se em Manaus, capital do Amazonas, região Norte do Brasil. Chegou a residir em Brasília, onde entrou em contato com círculos culturais e tomou parte dos debates do meio cinematográfico em torno do Cinema Novo brasileiro que se davam sobremaneira na Universidade de Brasília - UNB. Esse contato foi um fato de extrema importância em sua formação cultural. No retorno a Manaus, graduou-se em Filosofia na Universidade do Amazonas - UA, (atual Universidade Federal do Amazonas - UFAM) e passou a integrar o movimento teatral da cidade. Na década de 1970 começa a se envolver com as artes visuais. Suas primeiras produções em artes visuais foram apresentadas em 1976, alançando ampla circulação, como na Bienal Nacional de São Paulo (1976), onde conquistou o Prêmio Ministério das Relações Exteriores, e na XIV Bienal Inter-nacional de São Paulo.
Nesse mesmo ano apresenta a instalação Mater Dolorosa - in memoriam I (Figura 1) que foi considerada naquele momento por Márcio Souza (2017) uma "obra-síntese da paisagem da desolação amazônica". A obra antecipa o debate no cenário das artes plásticas na região sobre questões da exploração na Amazônia, enfatizando um discurso ambiental, como destaca o curador Paulo Herkenhoff no texto Travessias e Dissoluções, escrito para a XXIII Bienal Internacional de São Paulo:
Essa obra precede em dois anos o Manifesto do Rio Negro (1978) de Pierre Restany e Frans Krajcberg e está adiante do processo internacional de discussão da devastação da Amazônia, que só se amplia depois da falência de grandes projetos agroindustriais de companhias multinacionais. (Herkenhoff, 1996)
Desde o primeiro trabalho, houve uma opção conceitual e um amálgama de materiais e visualidades das quais o artista teve contato até então, dos povos originários e ribeirinhos. Dessa forma, Evangelista foi percebido pelo cenário nacional e internacional como um artista cuja produção se estabelecia num campo de perspectivas da arte ambiental com preocupações sócio-ecológicas. Neste contexto entendemos como algumas de suas obras se aproximaram da cultura indígena, em particular da Tukano, tais como Mater Dolorosa - In memoriam II - da criação e sobrevivência das formas (1978) e Nika Uiícana (1989), apontando tensões existentes na região e no país, como revela um dos curadores gerais da XXIII Bienal de São Paulo, Roberto Aguilar:
.A instalação Nika Uiícana, realizada com Regina Vater e apresentada em 1989 na Galeria Clocktower em Nova York, endereça homenagem a Chico Mendes, líder rural assassinado por latifundiário. Roberto trabalhou com as formas que instauraram a civilização na Terra: o círculo, o quadrado e o triângulo. Circulares as trezentas cabaças e o centro da instalação, quadrado o perímetro que ocupam e triangular a ascensão das penas em direção à luz. O todo presta contas ao título da obra, que provém da língua tucano e significa "união dos povos". Os velhos diplomatas diziam que um dos maiores prodígios brasileiros está em que uma mesma língua é falada em todo o território nacional. A obra de Roberto revela os limites da pretensão niveladora (Aguilar, 1996)
Para não esquecer do começo
Evangelista direciona seu olhar para as questões socioambientais e culturais de forma atenta, tanto no que tange às formas, quanto num plano mais profundo, como afirma Herkenhoff ao falar de Mater Dolorosa - in memoriam II: "A obra é decursoeconsumaçãodotempo. Trabalhandosobaorientaçãodeumpajé, Evangelista investiga o pensamento cosmogônico e a resistência da forma natural, primeira e simbólica. O artista busca uma medida essencial."(Herkenhoff, 1996). Observamos dois fatores de extrema importância para a compreensão da gênese dessa obra, uma das mais singulares e engajadas no repertório brasileiro da época. É o trabalho que enfatiza seu olhar para a cultura indígena, assim como inicia um percurso em obras intermidiáticas.
O primeiro fator a ser considerado é o da influência das artes cênicas que nos anos 1970 vivenciou, com o trabalho do Teatro Experimental do Sesc (Tesc), uma aproximação singular com a cultura indígena gerando representações que podemos entender como distanciadas de consolidados modelos artísticos vigentes daquele período, e que nos leva a compreender a performatividade que o artista ativa junto com os indígenas no filme.
O segundo é o estreitamento de laços do artista com culturas populares do interior do estado/região, em especial proporcionadas por sua inserção na religião espírita União do Vegetal (UDV) a partir de 1970 - da qual se tornou um dos precursores no Amazonas e mestre da congregação, o que fortalece sua relação com os povos da floresta, e a percepção sobre a importância vital da natureza. Nesse contexto conectou com o indígena tukano Bibiano Costa, que vemos no filme com sua família, após oito anos de uma estreita amizade estabelecida e que agrega posicionamento e densidade ao trabalho (Evangelista, 2018b).
Mater Dolorosa - in memoriam II (Figura 2), foi premiada no V Salão Nacional de Artes Plásticas, da Fundação Nacional de Arte - Funarte (1982) e alcançou grande repercussão nacional e internacional, participando de diversas mostras, festivais e exibições em TV aberta.
Cabe ainda destacar que mesmo tendo uma carreira de sucesso nos anos 1970/1980, sua produção passa a circular menos nas décadas seguintes, pois o artista direciona-se para suas relações comunitárias. Nesta conjuntura, o filme encontrava-se distanciado do circuito de exibições artísticas até o ano de 2010, quando a obra foi reativada pela curadoria da mostra Amazônia, a Arte, realizada no Museu Vale (ES), e no Palácio das Artes (BH), na itinerância da mesma exposição: entre as duas mostras, o filme ainda integrou sala especial do Projeto Arte Pará, no Museu Paraense Emílio Goeldi (PA). Destacamos esses três momentos expositivos que colocam em diálogo e circulação esta obra, pois foi neste ano de 2010 que o filme retorna ao circuito da arte e volta a afetar sobremaneira público e crítica, mais de trinta anos depois de sua realização, tendo integrado, a partir daí, outras mostras no contexto nacional e internacional.
Este impacto não se dá apenas pelas potentes imagens que articulam questões de memória e transmissão cultural, mas ativa resistências, suscitando compreensões para além da geometria, ultrapassando o conteúdo formalista da materialidade sobre a qual o artista se concentra ao desenhar formas com cuias e madeira de miriti (tipo de madeira balsa da Amazônia), em sua performance ambiental junto com os participantes da ação no Lago do Arara, no rio Negro (Amazonas), para ativar fenomenologicamente o viver a Amazônia, e ainda bradar em nome dos povos aniquilados, massacrados pelo homem branco. Na voz do artista, uma concepção de universo pode ser assimilada:
.De boca ao ouvido, durante muitas luas, as linhas foram passadas. As informações das linhas. As formações das linhas. As linhas. Com elas, sem que eles soubessem, redesenhamos a vida e sobrevivemos. As nossas primeiras ferramentas de armar, geradas do sol e da água. Luz ou água quem estava no princípio? Os velhos diziam: juntas, sempre estiveram (…) Os velhos contavam: no princípio nunca foi o caos. E o primeiro nunca dormiu. Olho imenso. Bojudo. Luz de muitos olhos. Flutuante. Circulante. Circulando. Circulações geradoras. O círculo-alimento; entranhado no corpo. As misteriosas relações do espírito e do estômago: no fundo, a mesma forma. Sol alto, alto e sem sair do meu corpo. Daí, água e ar desenharam as linhas impensáveis. E o círculo gerou todas as formas (Evangelista, 1978)
Esse desdobramento de um pensamento geométrico que se expande para uma relação simbólica das formas rearticula um esforço construtivo que atravessa a humanidade, ampliando sua perspectiva, como nos acena o curador Guy Brett (2005) em seu Brasil Experimental - Arte/vida: proposições e paradoxos: "seu texto oral e as declarações do próprio Roberto falam em reinvestir o círculo, o quadrado e o triângulo com a energia e a carga simbólica que eles tradicionalmente carreguem na Amazônia indígena e em outras culturas" (Brett, 2005:243) (Figura 3, Figura 4, Figura 5, Figura 6, Figura 7, Figura 8).
Há uma profunda reflexão proposta pelo artista com esta obra, ativando, ainda, conhecimentos atávicos de um determinado campo espiritual. É nesta experiência que Brett irá sinalizar que Evangelista usa as águas do rio como suporte, como um campo aberto a uma experiência, "um vácuo de uma experiência abstrata" (Brett, 2005:243).
Sensíveis ao significado da obra de Roberto Evangelista, trazemos aqui um pouco do que foi dito no Brasil acerca de sua produção artística, buscando somar as nossas vozes pontuações significativas que amplifiquem a o entendimento da obra.
"Roberto Evangelista não é só um precursor da videoarte, mas um dos primeiros artistas a produzir videoarte com alta qualidade estética que não fosse experimento tecnológico ingênuo. Ele colocou os meios técnicos avançados a serviço do imaginário ancestral" (Herkenhoff, 2012:126). Este filme detém importância não apenas pelo conteúdo e qualidade estética, mas pelo ineditismo das questões que apresentava no momento em que foi concebido. Ao abordar o trabalho do artista, Paulo Herkenhoff enfatiza sua relevância:
A obra de Roberto Evangelista politiza o olhar da Amazônia no horizonte da sobrevivência. (…) Evangelista opera sobre a totalidade e o contínuo de devastações das queimadas, massacres de índios e de populações caboclas, falência da cultura ocidental" (Herkenhoff, 1996).
São forças seculares ativadas nas obras de Roberto Evangelista por meio de objetos do cotidiano que se revelam em um processo místico e artístico, que transcendem a natureza da forma, aliando corpo e espírito, terra e céu, forma e a desmaterialização na "superfície instável deste mesmo rio, o artista vai ao encontro de uma essencialidade (…) em uma ação política que repensa uma cosmogonia. Política, a obra de Evangelista aponta para uma resistência, a despeito da imensa violência que assola a região, entre massacres, desmatamentos e dinamitação cultural" (Maneschy, 2010:46). Resistência esta que prossegue, desde 1500 e que se amplifica no momento atual com o projeto de país que se implanta, fragilizando ainda mais a situação dos povos da floresta, com a Medida Provisória No 870, de 1o de Janeiro de 2019, lançada pelo governo no momento da posse do presidente, que coloca as terras indígenas e a Amazônia Legal sob a tutela do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, passando "palavra final sobre as terras indígenas e quilombolas para os ruralistas, que tradicionalmente comandam a Agricultura." (Valente, 2019), ato este que, com a transferência da demarcação dessas terras para o referido ministério, já estimulou a invasão de terras indígenas na Amazônia de forma ilegal e violenta nestes primeiros dias de 2019, como a recente invasão na terra indígena Arara, no sudoeste do estado do Pará, dentre tantos outros conflitos pelo país, que vem tendo como resposta uma agenda de mobilização denominada #JaneiroVermelho". Ontem e hoje, a obra de Roberto Evangelista continua pulsante e vibrando, em altas frequências por aquilo que temos de rico, potente e único, de uma força vital que clama e que o artista traduz com suas "mães dolorosas", Mãe Terra, princípio e fim, como podemos ver nas últimas cenas do manifesto fílmico, que nos conclama a perceber o que acontece não apenas na Amazônia, mas no mundo: "Mãe Terra, eu te decifro, eles te devoram. Mãe Terra, eu te decifro, eu te devoro e a ti devolvo; até a consumação dos círculos; até a consumação dos círculos; até a consumação dos círculos".