Introdução
José Patrício é um artista brasileiro que em seu trabalho utiliza, desde a década de 1990, objetos populares feitos em série, como dados, botões e pregos. Fora de sua função original de uso, esses materiais são selecionados essencialmente por seus aspectos formais. A partir dessa escolha, um dos elementos mais recorrentes em suas obras são as peças de dominó.
Em montagens como as da série112 Dominós(Figura 1), o artista determina regras combinando a numeração aparente nas peças a uma lógica matemática, na forma de uma instrução a ser seguida para execução de cada obra. As obras têm, em sua maioria, a forma de uma espiral quadrada, em que quatro peças são posicionadas no centro, de forma a deixar um pequeno quadrado vazio, e todas as seguintes seguem postas uma após a outra até chegarem ao tamanho final definido de antemão. Essas determinações geram imagens imprevistas, que configuram-se ao longo da sua construção. O resultado formal é semelhante a grandes mosaicos, ou tapetes nas montagens no chão, em que se destacam as qualidades cromáticas e gráficas do material.
Fonte: Sérgio Guerini/Itaú Cultural, disponível em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10147/jose-patrici
Sob certa influência formal do Concretismo brasileiro, os trabalhos de José Patrício trazem a tensão entre a ordem e a possibilidade do acaso, e confirmam que mesmo a mais rígida das normas pode ter potencial para a expressividade.
1. Jogos poéticos
O artista americano Sol Lewitt, a partir de 1968, começou a escrever instruções para desenhos a serem executados diretamente na parede, a chamada "Drawing series" (Figura 2). Nessas instruções, elementos básicos - linha vertical, horizontal, diagonal esquerda e diagonal direita - são arranjados segundo algumas diretrizes: reta e não reta, tocando e não tocando, sólida e quebrada, quadriculada e arqueada, em uma enorme série de combinações possíveis a serem construídas dentro de módulos quadrados.
Na Arte Conceitual, cujas premissas estão cunhadas em ensaios escritos por Lewitt, a ideia ou conceito deveria ser o aspecto mais importante do trabalho - e assim, em sendo as decisões tomadas todas de antemão, a execução desses desenhos seria uma etapa menos importante.
Mas, em verdade, por conta de sua natureza impermanente - já que são feitos para serem executados na parede e o que é vendido é o direito de uso da ideia -, cada desenho é único. Além disso, algumas instruções são em algum grau abertas a interpretações. Assim, cada pessoa que lê as entende a sua maneira, e isso permite que cada montagem seja em algum aspecto diferente das demais. É na execução dos desenhos que realmente acontece a obra.
De forma semelhante, as instruções de José Patrício apontam a maneira como os fragmentos serão ordenados a fim de construir uma unidade. Mas cada montagem tem peculiaridades. Uma parte dos trabalhos construídos com os dominós, por exemplo, é feita diretamente no chão, com as peças perfiladas umas às outras sem cola, só posicionadas. Não são só efêmeras porque serão desmontadas após um tempo, mas também porque são um arranjo frágil, que pode por acidente ser facilmente desfeito.
Assim como em um jogo, esse tipo de trabalho segue regras ao mesmo tempo em que conta com a casualidade. No caso dos trabalhos de Patrício, alinham a precisão dos números ao jogo poético das suas representações pictóricas, e fazem uso do elemento formal da espiral para estender as combinações mais rígidas (as sequências numéricas determinadas pelas instruções) à sorte das possiilidades que só se confirmarão quando o trabalho for efetivamente realizado.
O mesmo número, que pode ser o condutor da dedução e da consequência, das fórmulas matemáticas e do rigor lógico, pode ser também o agente do jogo, do lugar onde a chance interfere e quebra as expectativas da ordem e do equilíbrio(Canongia, 2000:18).
Para Gadamer (1999: 111), o jogo é uma construção que acontece naturalmente, é parte da natureza do homem, e é um puro "representar-se a si mesmo." E o jogo em sua forma original, por existir espontaneamente e sem finalidade, fornece um modelo para a relação dos seres com a obra de arte. Dentro desse sistema, a arte possui um sentido de mediação. O autor ressalta que, na arte, o sujeitodo jogo não são os jogadores, mas a própria obra, que persevera. Assim, o sujeitodo jogo é sempre o próprio jogo que, através dos que jogam, ganha representação.
2. Ao infinito
Por ocasião da III Bienal do Mercosul, que acontece em Porto Alegre/RS, em 2000, José Patrício apresentou um trabalho intitulado "Dominós", de peças claras com pontos pretos (Figura 3). Essa obra foi instalada no chão, e obedecia a uma sequência que começava com uma peça sem nenhuma "bolinha" (0-0), seguia para as peças com a inscrição representando 0-1, em seguida para as peças com 0-2, e assim sucessivamente até chegar às peças com os números 6-6, e repetia então a mesma sequência ao contrário. A espiral final tomava conta de quase toda extensão da ala onde estava montada, e parecia à espera de mais peças a fim de cobrir todo espaço expositivo.
Na série de trabalhos chamada "From point" (1972-84), o artista coreano Lee Ufan confere uma sequência de pinceladas à tela de forma que a tinta contida no pincel vai esmaecendo, formando assim uma série de "pontos" uns ao lado dos outros, perfilados (Figura 4). Quando a tinta acaba, Ufan recarrega seu pincel com o azul vibrante e repete o procedimento - e assim o faz, sempre da esquerda para a direita, até completar a tela. Em alguns trabalhos, esse procedimento é feito em linhas, mas há os que são espirais e também espirais quadradas. Através das marcas e do gesto que se repete ritmicamente, entendemos a passagem do tempo da fatura ali registrado.
Fonte: Kukje Gallery, disponível em https://news.artnet.com/art-world/lee-ufan-verifies-denies-forgeries-540461
Como acontece nos trabalhos de José Patrício, esse gesto repetitivo que confere ritmo ao trabalho, aliado à forma espiralada, são a tônica que faz com que possamos olhar para as obras finalizadas e sentir que elas podem continuar, se desdobrar em um movimento sem fim.
Pode-se considerar que o movimento circular da espiral, a partir do seu ponto original, prolonga-se virtualmentead infinitum. Conectando a unidade e a multiplicidade, a espiral revela-se como elemento fundamental para a estruturação das obras(Bezerra Sobrinho, 2014:98).
Conclusão
O estabelecimento de regras estritas no trabalho de José Patrício com os dominós esconde a tensão entre o rigor e o lúdico, e se abre às possibilidades dos arranjos pictóricos que se desvelam à medida que as instruções são executadas. Entre o formalismo e a expressividade gráfica se configura o jogo poético, e o sujeito desse jogo, a própria obra, ganha corpo a partir dessa ambiguidade. O esto que se repete por centenas de vezes inscreve o cadenciamento das peças em um movimento que adquire ritmo e nos conduz, de dentro para fora das espirais, à possibilidade do infinito.