Introdução
Amélia Brandelli nasceu em Rio Grande, Brasil. Cursou o mestrado em Artes Visuais em Porto Alegre. A série que propomos abordar neste artigo foi realizada nos últimos dois anos, para uma exposição individual que foi denominada de “inverno, quase inverno” acontecida ao final do ano de 2019. Ali ela desenvolve uma relação de intimidade entre as plantaso motivo principal do trabalho, e o desenho, meio privilegiado escolhido pela artista, em contraponto com alguns elementos como o tecido negro, as barras de madeira pintadas de grafite, que pontuam e lembram certa tridimensionalidade oculta no desenho. São trabalhos em um diálogo constante com os materiais, onde o objetivo não é o de representar a natureza, mas de encontrar nas plantas e folhas os movimentos análogos ao tempo de execução de um desenho: veios, ramificações, rizomas, movimentos de continuidade (Figura 1). A justaposição destes elementos na montagem da exposição permitiram uma relação com aquilo que Marcel Duchamp denominou de “coeficiente da arte” (Duchamp, 1987), ou seja, o resultado entre a intenção da artista e sua realização. O artigo se utiliza de uma metodologia dialética para falar sobre o luto no desenho, e as diferentes interpretações sobre as sombras, os amálgamas de luz e os espectros que se revelam sutilmente no trabalho desta artista.
1. Tempo e sombra no desenho
Em um fluxo, onde cada desenho tem um processo próprio, há, segundo a artista, uma aproximação tanto com as origens do trabalho, bem como a um retorno ao básico e essencial do meio como linguagem visual. Poderíamos dizer que a artista nos faz, em um primeiro momento, pensar sobre a atitude de estar diante de uma planta: um resgate às origens do desenvolvimento de observação no desenho nos pequenos detalhes, como no comportamento do crescimento lento e invisível de um ser vivo. Entretanto, mesmo que nos convide a entrar nesta selva ao lembrar da nobreza das plantas, da fronteira entre e o desenho o real, o que nos fascina como potência nesta série é algo de natureza mais profunda: são as relações estabelecidas entre luz e sombra, desejo e ausência e consequentemente entre vida e morte. A percepção das zonas escuras e densas de grafite nos fazem lembrar de nossas próprias sombras, transformando-os constantemente. Se a fotografia frequentemente é associada ao luto da perda, a ameaça de uma perda, a exuberância do desenho vem trazer a permanência. Em sua atitude interrogativa de trabalhar estes elementos de luz e sombra como matéria e sujeito no desenho, a artista nos faz pensar sobre a analogia à placa sensível, uma tentativa de desconstruir o tempo do luto que se instaura no hiato aberto pelo processo fotográfico. Jean Lancri nos lembra que “fotografar é não ver, é não saber realmente o que se captura em uma foto no momento da tomada fotográfica” (Lancri, 2019: 68), um paradoxo apontado pelo autor ao se referir à fotografia analógica. Assim, criar, a partir da intenção da artista, corresponderia “não conhecer com exatidão o que se está criando” (Ibid: 68). A partir deste pressuposto o trabalho de Brandelli pode ser lido como um work in progress constante, como uma sombra que se mancharia até se transformar em uma profunda noite. Esta noite estaria localizada nas zonas de lonas pretas dos objetos tridimensionais que aparecem na montagem da exposição, nas barras de grafite negro justapostas ao desenho (Figura 2) e no inconsciente do observador. Mas retomaremos à sombra mais adiante, na conclusão deste artigo.
As variações do tempo tem também importância fundamental no processo artístico de Amélia Brandelli. O longo planejamento desta exposição, em contraste com certa incompletude nos desenhos, o zoom nos pequenos detalhes, a divisão em módulos, onde cada um deles funciona como uma obra própria e independente, ou então se encaixam alternadamente. Isso tudo, comparado com as grandes dimensões de algumas obras, são elementos que complementam um discurso onde as metáforas entre vida e morte, continuidade do visível e do invisível, e aparições espectrais se revelam. Os buracos negros remetem a lugares obscuros onde a memória se esvai. O jogo de claro e escuro dos desenhos, de aparecimentos/desaparecimentos, permite uma reflexão sobre os apagamentos da memória e os processos de absorção e transformação do desenho, análogo aos veios, ramificações, rizomas, movimentos de continuidade das plantas. As estratégias desenvolvidas no atelier, com a confecção dos trabalhos em módulos e em forma de grade põe o observador diante de algo que Guilherme Dable, ao se referir ao trabalho da artista, classifica de algo “quase cinematográfico” (Dable, 2019), mas que funcionariam como frames estendidos. Se lembram do conceito de imagem-tempo de Deleuse (Deleuze, 2007), sobre a insubordinação do corpo ao movimento e sobre o frame enquanto dispositivo criador de uma suposta cristalização do tempo, para Dable, ao contrário, cada um dos desenhos desta série possui uma sugestão de história e um clima diferentes, mas que apresentam novas situações ao olhar. Bazin (1991:24), lembra do frame como elemento de memória para “salvar-se da efemeridade da vida através da perenização dos instantes”. Por tais tentativas de extensão, mesmo que por meio da fixação das imagens, seria possível encontrar no processo de desenho da artista uma forma de tempo diferente, estendida e construída no atelier, para vencer a corrente que nos arrasta ao esquecimento.
Nestes desenhos há, em paralelo, a preocupação de construção de um arquivo sobre as diferentes superfícies, projeto que revela uma preocupação de espírito museológico da artista, e que obedece às finalidades de organização, pesquisa sobre o conhecimento do meio, e conservação. Alias, uma pergunta aparece em suspenso em seu processo: porque desenhar, se certamente morreremos um dia? O desenho surge aqui como um trabalho de luto, uma tentativa de pensar e de eternizar o momento do antes da nossa queda, aquele antes do fim. Mesmo comprimido por certas faixas que dividem o espaço, ou placas de granito preto que remetem à morte que nos ameaça, o desenho é encarado pela artista como uma maneira de estender a vida: um work in progress constante, para esquecer a inevitabilidade da morte.
2. Desejo e sombra
Bem sabemos que toda a criação artística tem, pela simbologia da sombra, a parte que é ligada ao desejo. Isto vem desde a Grécia antiga, como mito da origem da pintura, de Plínio, o Velho. Quando a jovem Dibutade envolve a sombra projetada de seu amante na parede, ela buscaria apreender uma ausência. De onde podemos dizer que trabalhar com arte significaria completar as lacunas deixadas pelo desejo. Parafraseando Lancri, na origem do desenho estaria subentendido o “desejo de dar uma forma ao desejo”(Lancri, 2019:22).
Marilena Chauí une desejo a ausência (Chaui, 1995), a privação e carência, o que vai nos levar a buscar algo fora de nós, algo que seja capaz de preencher
o nosso vazio, a nossa falta. E eu poderia complementar: a nossa parte de sombra. Na psicanálise, o desejo também aparece como carência, na interpretação dos sonhos em Freud (Freud: 1985), em um movimento de busca da completude. Uma sombra, como protocolo de desenvolvimento de um processo de criação, como um projeto de uma exposição.
Desejo, ausência e sombra projetada sāo elementos que se aproximam no desenho, demarcando o terreno de nossa investigação sobre o trabalho da artista. Não poderia ser a vontade de complementar estas ausências que leva a artista a trabalhar? No lento processo do desenho iria se completando, passo a passo, estas lacunas. Jean Lancri lembra que Marcel Duchamp trouxe a metáfora do artista como “portador de sombra”, (Lancri, 2019:15) em uma tarefa infinita de preencher lacunas, os artistas. Os amálgamas de luz e sombra do papel, o negro do grafite, brilhante, justaposto com o negro profundo do carvão, paradigmas da presença/ausência, perda/permanência, são intervenções que lembram a vida nas sombras, e a relação ambígua e complementar entre escuridão e iluminação. Uma analogia ao nosso pensamento e à clareza das ideias diante de certo obscurantismo? A artista lembra que há exuberância, e pode haver vida inteligente nas plantas, ao contrário do que sempre se supôs. Em suas folhas e caules, estão traduzidas todas as variações de luz e sombra, raízes invisíveis de nosso pensamento.
Conclusão
Chegamos, então ao “coeficiente da arte”, aquilo a que se refere Sandra Rey (Rey, 2019 ap. Lancri, 2019) nos comentários finais de de A parte de Sombra na ultima obra de Marcel Duchamp, livro que ela traduziu e escreveu o posfácio. Ela lembra que a diferença entre aquilo que o artista projetou realizar e o que ele realmente realizou seria este coeficiente, entre a intenção e realização. Este seria o elemento que o artista absolutamente não domina. Portanto, entre o que deseja e escapa, se complementaria o vazio, a sombra, com o olhar do espectador. Nesta defasagem, neste descompasso entre projeto e trajeto, estaria o mistério que arriscamos a localizar, o chamado coeficiente da arte da série em questão, um buraco negro, projeção da sombra do observador. Ou seja, a nossa paradoxal sombra, ou nossa parte sombria do desejo.