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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.11 no.30 Lisboa jun. 2020  Epub 30-Jun-2020

 

Artigos Originais

Quatro jovens desenhistas: Bruno Tamboreno, Kaue Nery, Luciano Teston e Paulo H. Lange

Four young artists: Bruno Tamboreno, Kaue Nery, Luciano Teston and Paulo H. Lange

Alfredo Nicolaiewsky1  , Artista Visual

1Artista Visual,Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais. R. Sr. dos Passos, 248 - Centro Histórico, Porto Alegre - RS, 90020-180, Brasil.


Resumo

Este artigo trata de uma exposição - “Quatro Ases e um Curinga” - e dos quatro jovens desenhistas que dela participaram: Bruno Tamboreno, Kaue Nery, Luciano Teston e Paulo H. Lange. Em quais aspectos seus trabalhos se aproximam e quais são suas peculiaridades. Também discute se trabalhos com suportes e técnicas tradicionais podem ser contemporâneos.

Palavras chave: Bruno Tamboreno; Kaue Nery; Luciano Teston; Paulo H. Lange; desenho

Abstract

This article analyzes the exhibition “Quatro Ases e um Curinga” and the four young drawing artists who participated in it: Bruno Tamboreno, Kaue Nery, Luciano Teston and Paulo H. Lange. We analyze in what aspects your works are close and what are your peculiarities. We also discussed whether works with traditional supports and techniques can be contemporary.

Keywords: Bruno Tamboreno; Kaue Nery; Luciano Teston; Paulo H. Lange; drawing

Ao iniciar este texto, que trata da produção recente de Bruno Tamboreno (1989, Bagé/RS), Kaue Nery (1995, São Leopoldo/RS), Luciano Teston (1971, Iraí/RS) e Paulo H. Lange (1992, Torres/RS) - desenhistas fascinados pelo mundo real e pelo mundo visual -, me vem à lembrança uma frase de Martin Gayford, que diz:“Hockney certa vez especulou que desenhava quando era criança porque ‘tinha mais interesse do que as outras pessoas em olhar para as coisas’. Ou seja, queria desenhar porque o mundo visual o fascinava” (Gayford, 2012:34).

Esses jovens desenhistas, que reuni em mostra recente intitulada “Quatro Ases e um Curinga” (Galeria Gestual, Porto Alegre/RS, setembro de 2019), têm tanto aspectos em comum quanto características bastante diferentes em suas poéticas, o que motivou sua reunião neste texto. São egressos do Bacharelado em Artes Visuais (Instituto de Artes - Universidade Federal do Rio Grande do Sul [IA/UFRGS]): Tamboreno em 2017 e Nery, Teston e Lange em 2018. Todos trabalham com desenho (mas não exclusivamente) e todos apresentam trabalhos figurativos feitos a partir de imagens produzidas por eles ou captadas na internet (uma forte característica geracional). Todos usam, ainda, os suportes materiais e técnicas tradicionais para criar suas obras.

Comecemos a falar desses quatro artistas. Bruno Tamboreno é mestrando em Poéticas Visuais (IA/UFRGS) e sua produção se divide entre o desenho e a gravura. Em recente mostra, apresentou quatro trabalhos, dois em clara continuidade de sua produção anterior e dois experimentando novas possibilidades. Nos primeiros desenhos, há o uso exclusivo do grafite sobre papel, representando pessoas em atividade na rua. Chama imediatamente a atenção o ângulo em que os personagens são vistos, pois o ponto de vista é o de alguém que está bastante acima do modelo; todos os elementos estão em escorço: no primeiro (Figura 1) vemos um homem carregando uma grande ramagem vegetal representada fotograficamente (ocupando a maior parte do suporte) ao lado de um elemento de sinalização urbana. O homem aqui é representado de modo realista, mas inacabado, com partes indefinidas. Esses elementos surgem sobre o branco do papel, pois todas as referências do entorno das figuras é desconsiderado.

Figura 1 Bruno Tamboreno. Sem título, 2019. Grafite e pastel seco sobre papel, 108 × 153cm. 

No segundo desenho (Figura 2) o elemento principal é uma Figura masculina caminhando ao lado de um cone de sinalização. Nesse caso, Bruno trabalha com sobreposição de formas, surgindo elementos difíceis de identificar, trabalhados ora com luz e sombra, ora definidos somente por linhas de contorno. Sobre a camisa do personagem, há uma estampa de círculos sobreposta à roupa que não obedece nem as dobras do tecido, nem ao ângulo em que a Figura é representada. Todos esses elementos também são apresentados sobre o fundo branco do papel.

Figura 2 Bruno Tamboreno. Sem título, 2019. Grafite e pastel seco sobre papel, 108 × 153cm. 

O artista (2019), em depoimento sobre seu trabalho, explica:

A partir da janela do atelier, localizado no centro da cidade de Porto Alegre, observo e registro os movimentos do cotidiano e as transformações no corpo da cidade. Essas imagens do mobiliário urbano, das plantas da praça, dos trabalhadores, dos transeuntes e dos animais da cidade servem como referencial imagético para a produção dos meus desenhos há alguns anos. As ideias de transformação, acúmulo e apagamento que remetem ao ambiente urbano se transportam para o modo como construo esses trabalhos, e isso se torna possível devido às contaminações que ocorrem da relação entre meu ambiente privado de reflexão/criação e o contexto no qual esse espaço está inserido

.

Penso que esses desenhos de Tamboreno chamam a atenção, em primeiro lugar, pela competência técnica e domínio do material escolhido; em segundo lugar, pela representação do cotidiano da vida urbana, mas de um ponto de vista não usual, o que acaba por produzir um estranhamento em nossa percepção. Os outros dois trabalhos (Figura 3), que apontam novas possibilidades na pesquisa do artista, apresentam alguns pontos em comum com os desenhos anteriormente comentados, mas, em determinados aspectos, apresentam grandes diferenças. Mantém-se o requintado trabalho com grafite em alguns elementos e também a valorização dos espaços em branco; porém, nesses desenhos já não há as figuras em escorço e as referências à vida cotidiana também desaparecem, surgindo em seu lugar figuras como um papagaio, pássaros voando, uma cuia de chimarrão e folhas de plantas, tudo isso em sobreposição. Além disso, chama a atenção a entrada de um novo material - o pastel oleoso - e o uso da cor. Temos pretos intensos dialogando com a sutileza do grafite, temos toques de azul e laranja, linhas em um desenho livre em ocre e planos densos de cor rosa que ora recobrem partes desenhadas, ora criam planos de fundo para valorizar outros elementos, produzindo, assim, trabalhos mais dúbios. Percebe-se que há uma luta entre o gesto contido e o gesto mais expressivo, o que dá aos trabalhos um caráter extremamente instigante.

Figura 3 Bruno Tamboreno. Mirada I, 2019. Grafite,bastão de óleo e pastel sobre papel, 100 × 100cm. 

Kaue Nery tem sua produção dividida entre pinturas, livros de artista, objetos bordados e desenhos. Seus trabalhos (Figura 4 e Figura 5) têm dimensões variadas e são executados em guache sobre papel. Como modelos, Nery utiliza tanto bibelôs quanto imagens destes obtidas na internet, principalmente em sites de antiquários, que ele arquiva em seu celular.

Figura 4 Kaue Nery. Série bibelôs: nº3 (pato), 2019. Guache sobre papel, 50 × 60cm. 

Figura 5 Kaue Nery. Série bibelôs: nº 3, diptico, 2019. Guache sobre papel, 110×150 cm. 

Seus modelos, pequenos animais decorativos, de intenso colorido e com o brilho próprio da porcelana, o atraem desde a infância. Atualmente, ele os coleciona. Esses objetos são referências de um gosto do passado, tendo para nosso olhar contemporâneo um sabor kitsch. Dois aspectos chamam imediatamente a atenção do espectador: a técnica empregada e a maneira como o artista compõe os objetos no espaço da folha. O guache nestes desenhos é trabalhado muito diluído, como se fosse aquarela: são manchas de cores suaves, muitas extremamente delicadas e diáfanas, mas que não perdem a forma, sendo sempre reconhecíveis os modelos. Em termos de composição, esses bibelôs parecem espalhados aleatoriamente sobre o papel, às vezes isolados, muitas vezes sobrepostos, com a transparência da aquarela, criando áreas multicoloridas; mas enfatizo que as formas continuam legíveis. Nery (2019) comenta que:

Os desenhos da série “Bibelôs” surgem através de um repertório de imagens de objetos decorativos que fazem parte do universo kitsch. Tais imagens que possuem uma certa peculiaridade encontrada em sua artificialidade e no exagero das cores, formas e texturas. Essas características são exploradas nas composições dos desenhos como uma espécie de brincadeira insólita que acumula imagens que contam histórias

.

Em função das imagens representadas (que evocam um passado não muito remoto), das transparências, da diluição das formas e da desordem aparente desses elementos, parece que está sendo representada a própria memória em processo de diluição, meio confusa, meio caótica, mas com forte poder de evocação. Luciano Teston trabalha há muitos anos na área de arquitetura de interiores.

Suas pesquisas o levaram a trabalhar também com fotografia, vídeo e objetos, além do desenho. Teston em depoimento (2019) coloca que “A reflexão tem origem numa constelação de ideias sobre os tecidos, seus volumes, camadas, movimentos, e o questionamento sobre os seus significados na contemporaneidade”. O tema inicial de seus trabalhos eram as roupas, os tecidos que cobrem os seres humanos, que definem quem é o que, sempre carregados de significados sociais e políticos. O conjunto era formado de uniformes militares, uma burca, um figurino sadomasoquista ou roupas de alta costura. Um desses trabalhos é a representação (Figura 6) de um vestido de noite, com bordados e transparências, mas ele está vazio, não representa a pessoa que o veste, mas somente o que a cobre. Essa representação realista feita exclusivamente com grafite, quase em escala real, já chama a atenção para o virtuosismo do artista. Ao mesmo tempo em que nos aproximamos, e examinamos os detalhes, podemos perceber o desenho como uma abstração, ou paisagens ou arabescos gráficos.

Figura 6 Luciano Teston. Sem título, 2018. Grafite sobre papel, 152 × 100cm. 

Os outros desenhos representam peles (Figura 7). Segundo depoimento do artista é

peles de animais desenhadas, um indício metafórico de outras camadas da nossa subjetividade que não estão relacionadas com a matéria, mas com a ideia de isolamento ou contaminação; de recobrimento ou do desejo de sermos outros a qualquer instante. Por isso, criar uma pele. (Teston, 2019)

Figura 7 Luciano Teston. Sem título, 2019. Grafite sobre papel, 152 × 105cm. 

Essas peles, ao mesmo tempo em que se apresentam quase fotográficas, que nos seduzem e nas quais queremos passar a mão, invertem esta percepção. Nesses desenhos, Teston deixa uma margem em toda borda do papel, em branco, uma espécie de “moldura” que nos mostra que estamos diante de um desenho, apenas, conforme afirma o artista, “há uma trama de traços para serem observados”. Nosso olhar fica dividido entre perceber a ilusão da pele de um animal e a percepção de um emaranhado de traços de grafite sobre o suporte da obra. É belo e instigante.

Paulo Lange tem sua produção dividida entre o desenho e a pintura. Aqui, apresentamos três desenhos executados a pastel seco sobre papel. No primeiro desenho (Figura 8), vemos uma mão, e no segundo (Figura 9), duas. Essas mãos, em uma escala muito maior que as mãos reais, pairam realisticamente no papel. Podemos percebê-las como inacabadas ou dissociadas de um corpo. O restante do suporte tem pequenas interferências e alguns traços de desenhos apagados, que reforçam a sensação de incompletude. Este aspecto “sujo” contrasta com o primoroso acabamento dos elementos desenhados. Também chama a atenção uma série de buracos queimados na folha de papel, que não são aleatórios: no primeiro, a sequência de buracos cria uma linha em curva que atravessa a palma da mão. Não é difícil perceber uma referência às chagas de Cristo, o que dá um caráter místico à obra. O recurso do papel queimado surge também no segundo desenho, que apresenta duas mãos. Nesse caso, os vazios sugerem algo líquido, escorrendo de uma mão para a outra; no entanto, o que é aparentemente líquido em verdade são vazios queimados - novo estranhamento. Lange (2019) afirma que:

Dei-me conta de que o cigarro que fumava enquanto desenhava poderia furar o papel e construir em qualquer mão desenhada a chaga de Cristo. Fiquei curioso sobre a ideia de “construir” uma chaga, como se tratasse de somar um elemento. Então furei e logo dei-me conta também de que ao furar um desenho elaborava uma ambiguidade conceitual: uma informação adicionada que atende pela falta, uma camada adicional de sentido pela retirada de matéria.[...] Mas ainda creio presente o jogo entre lê-lo como um ferimento sagrado, símbolo do sacrifício físico redentor e o mais absoluto desprezo que é apagar um cigarro na mão de alguém.

Figura 8 Paulo Lange. Countyourblessings 2 (a descoberta do fogo), 2019. Pastel e grafite sobre papel, 152 × 94,5cm. 

Figura 9 Paulo Lange. Count your blessings 3, 2019. Pastel e grafite sobre papel, 152 × 98,5cm. 

O terceiro desenho (Figura 10) tem algumas características diferentes dos dois anteriores. Nesse, além do pastel seco, temos partes do trabalho feito a grafite. A obra foi elaborada a partir da reprodução de uma pintura barroca (que o artista não localizou a autoria) que representa o julgamento de Galileu Galilei.

Figura 10 Paulo Lange. Casting beautiful graffitis out of thin air, 2019. Pastel e grafite sobre papel, 97×150 cm. 

Dessa pintura, Lange se apropria dos dois personagens, representando-os em grafite, e os coloca sobre uma superfície coberta por manchas, grafismos e elementos geométricos- todos executados em pastel seco, em diversas cores, predominando as cores verde, laranja e preto. Esses elementos, ao mesmo tempo em que compõem o fundo da cena, também se sobrepõem aos personagens, jogando-os para dentro desse emaranhado “quase” confuso. A profusão de grafismos, feitos de maneira muito solta e livre, sugerem um grande movimento, talvez interior às figuras. Esse desenho porém, também apresenta os queimados, aqui em uma escala e com significado diferente dos dois primeiros trabalhos comentados. Nesse trabalho os queimados são pequenos pontos feitos a partir do dedo indicador de Galileu, criando uma linha curva no suporte, sugerindo a representação no espaço das teorias do cientista. A sugestão de movimento é evidente, reforçando a sugestão de movimento criada pela solução gráfica do todo.

Após a apresentação desses quatro jovens desenhistas, gostaria de chamar a atenção para uma questão: a da atualidade ou da inatualidade do desenho. Vemos atualmente, pelo menos no meio onde atuo, na universidade (mas acredito que não somente), jovens artistas e críticos que entendem que o desenho feito sobre os suportes e com os materiais tradicionais não é “contemporâneo”. Segundo Étienne Souriau (1999:566) o desenho é tradicionalmente dividido em dois grandes grupos: o desenho como estudo e projeto ou o desenho como obra final. Quando, no início deste texto, os defino como artistas contemporâneos, não me refiro à contemporaneidade temporal, mas sim à contemporaneidade “conceitual”. E porque digo isso, já que os suportes e os materiais utilizados são absolutamente tradicionais? Explico: com certeza, no caso de nossos quatro desenhistas, estamos falando de obras finais; porém, pelo menos dois deles - Tamboreno e Lange -, apresentam obras que embaralham a divisão entre estudo e obra final. Nery brinca com a composição dos elementos, que parecem ter sido espalhados aleatoriamente sobre o suporte, e Teston, ao deixar uma “moldura” branca em torno do desenho hiper-realista, mostra que a imagem não passa de um desenho, de riscos sobre o papel. Com isso, quero dizer que esses artistas tornam seus trabalhos contemporâneos através da maneira com que suas imagens se instauram.

Do meu ponto de vista, fica claro que não são somente os materiais (ou suportes utilizados) definem a contemporaneidade de uma obra. Outro fator fundamental é a permanência da figuração e o recurso ao modelo a partir de imagens digitais. Penso que as obras dos quatro artistas aqui apresentados refutam claramente esse tipo de preconceito.

Referências

Gayford, Martin (2012). Uma mensagem maior: conversas com David Hockney. São Paulo: DBA Editora. [ Links ]

Lange, Paulo (2019). Depoimento escrito ao autor, em 19 de agosto de 2019 [ Links ]

Nery, Kaue (2019). Depoimento escrito ao autor, em 18 de agosto de 2019. [ Links ]

Souriau, Étienne (1999). Vocabulaire d’esthétique. Paris: Quadrige, Presses Universitaires de France. [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2020; Aceito: 21 de Janeiro de 2020

Correio eletrónico: alfredo.nicolaiewsky@gmail.com

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