Introdução
Perscrutar-se-á, no presente artigo, Memograma, Insert (2010, vencedora da 6a edição do Prémio BES Photo) de Filipa César (Porto, 1975), à luz das noções de margem (Derrida, 1998), genealogia (Nietzsche, 2016; Foucault, 1966) e rizoma (Deleuze e Guattari, 2004), abrindo-as a um entender feminista das afectivas possibilidades da margem, da contra-memória, e da sua incomensurável importância para uma contemporânea experiência do objecto artístico e do mundo. A partir da leitura dialógica das três componentes expositivas nas quais se desenrola Memograma, Insert dois vídeos e uma série fotográfica que ocupam paredes distintas da sala do Museu se ensaiam os contornos de proposta genealógica de memória lésbica no contexto português do século XX. A sala do Museu vê-se transmutada em vestígios de uma rizomática contra-memória, história de rupturas cujos pontos de fuga o espectador deverá transitoriamente ocupar, a seu ritmo, forjando as suas próprias relações.
Desenhando percurso entre as três, num refazer da cartografia que em Memograma /Insert se acha, o presente artigo parte das relações dialógicas que entre a tríade de elementos se ensaiam explorando questões de resistência e transgressão -, perscrutando os contornos da natureza específica e corporalizada de uma subjectividade lésbica, historicamente relegada para as margens do discurso e, aqui, enfim assumindo posição discursiva.
1. Memograma
Memograma (Figura 1), instalação de vídeo em HD, a cores e sonoro, é registo documental da memória em torno da prática de degredo em Castro Marim prática judicial que, de profundas raízes colonialistas, em vigor da fundação de Portugal ao findar do Estado Novo, condenou centenas de mulheres e homens ao desterro, numa forma particularmente brutal de sanção social. Castro Marim torna-se, com particular intensidade no período do Estado Novo, primordial destino ao qual se condenavam mulheres de sexualidade desviante, exilando-as e submetendo-as a trabalhos forçados nas salinas. Esta memória, que em Memograma se materializa em multiplicidade de relatos, informa o carácter fronteiriço de Castro Marim. É vila-fronteira por força do seu posicionamento geográfico mas igualmente por força do carácter simbólico que a inscreve no imaginário colectivo como do âmbito de um fora que se insinua invisibilidade e proibição. É delimitação entre dentro e fora, mesmidade e alteridade, e, como tal, comporta em si mesma o excesso e a possibilidade última de transgressão e devir. A margem transmuta-se, neste sentido, da clássica noção de espaço residual que cimentava a inexorável relação dicotómica entre centro e margem -, num pós-moderno lugar de experimentação e produção de sentido. Assumindo tal carácter de margem, e lendo-o na sua inflexão derridiana (Derrida, 1998), Castro Marim torna-se potencial espaço de exploração e construção de sentido, abrindo caminho à subversão da dicotomia centro/margem ela mesma. Desenvolvendo linguística pós-Saussure, Derrida postula a linguagem enquanto conjunto de práticas significantes constituídas na realidade e, a margem (e o feminino), porque testemunho de excesso e insubmissão, enquanto incessante ameaça à pretensa estabilidade do sentido linguístico (sempre relacional e instável). Uma sexualidade feminina marginal à norma da heterossexualidade compulsória enquanto inata ao ser humano (Rich, 1980) vê-se coagida à margem do discurso e sistemas de representação, e, ora enunciada nas salinas-margem-fronteira, afirma-se no seu carácter múltiplo, fluido, diverso e nómada capaz de subverter essa condição de exílio que se lhe imputa e de aí se inscrever, nas dunas de sal e na História. Deste modo se poderá perscrutar, na obra de Filipa César, um discurso da margem, capaz de articular radical posição de enunciação feminina e, em particular, lésbica, de incomensurável magnitude política. Os depoimentos, simultaneamente sonoros e expressos na forma de legendas, de especialistas e cidadãos locais, testemunhas, que acompanham a experiência do espectador, marcam ritmicamente o plano fixo sobre a paisagem da salina. Nela se evidencia uma montanha de sal que se vai metamorfoseando como consequência, não só da posição do sol do seu nascente ao poente, transformando os valores cromáticos e lumínicos da cena e, em particular, do acúmulo de sal-, mas igualmente dos relatos que lhe estão justapostos. Memograma inscreve, pois, no firme tecido da História, o desejo lésbico enquanto processo material (de práticas sociais e institucionais) e semiótico (do foro do discursivo e das práticas simbólicas), derradeiramente transmutando aquele tecido.
2. Insert
O caminhar de Memograma a Insert (Figura 2) desenha, no espaço real e na construção e desconstrução de memória do espectador, um perscrutar da ligação entre experiência do real e experiência cinematográfica, complexificando as suas possibilidades transformadoras. A memória histórica de Castro Marim sondada em Memograma transfigura-se, em Insert, em memória desdobrada, ficcionalizada, elidindo-se a fronteira entre uma e outra. O vídeo de 16mm, a preto e branco e sem som, perscruta as intrincadas relações entre exílio, espaço, corpo, memória e desejo, encenando na paisagem real das salinas, uma paisagem outra, da distância, proibição e enfim encontro. As duas personagens femininas que deambulam pelo espaço, trançando uma geografia do desejo, desenham-se corpos que se confundem um no outro e nos montes que habitam e que se transformam na sua passagem. A relação de encontro e desejo que entre si se desenrola é a inscrição plena de um discurso da margem, transformando Insert na concretização material última de Memograma.
Do foro de uma sensibilidade que destrona a visão e, por conseguinte, o Logos do império sensorial, essa transmutação do corpo em paisagem e da paisagem em corpo, elidindo os seus contornos e espelhando no corpo e no sal a inextricabilidade do espaço e da margem, é igualmente expressa no análogo carácter háptico da película de 16 mm. As disrupções hápticas na imagem pensam-se contíguas às disrupções no discurso: Insert diz-nos dos acidentes, dos silêncios e das fissuras da história. O teor simbólico da narrativa, assim como o particular grão, as características formais do dispositivo, as texturas orgânicas evidentes nas margens, os acidentes e disrupções da imagem, são também eles desenho em sal, cartografia de memórias-textura, traços genealógicos.
No seu postulado nietzscheano (Nietzsche, 2016) e posterior recuperação foucauldeana (Foucault, 1966), a genealogia assume-se subversivo método de análise histórica, debruçando-se sobre as rupturas e descontinuidades da História e ameaçando, por conseguinte, o hegemónico esforço por ordenação cronológica sucessiva e hierárquica dos acontecimentos. Ontologia crítica do presente, a teorização foucauldeana re-introduz o corpo e a subjectividade aí onde tradicionalmente se concebia um omnipresente narrador (masculino), estrangeiro à matéria. Abordar Insert enquanto proposta genealógica é revelar a natureza sistémica e culturalmente construída da preponderante História através da introdução, aí, do corpo e desejo lésbicos. Perscrutando a margem e fazendo falar os silêncios, lacunas e paradoxos da história portuguesa do século XX, Insert produz pontos de tensão que concretizam uma abordagem afectiva, háptica e rizomática do tecido histórico e da memória colectiva. Modo não-determinista e não-linear de pensar a história e o sujeito, caminha das margens para o centro e desmonta, a um tempo, e por força da sua lógica interna, a dicotomia centro/margem ela mesma. O esforço genealógico em Insert existe, deste modo, num contínuo entre, intermezzo onde vive e se dissemina porque só assim vive o rizoma.
Por oposição não-absoluta a um modelo da raiz e da árvore, o modelo epistemológico avançado por Deleuze e Guattari (2004) na forma de rizoma, é criação e não reprodução cartografia e não decalque. Libertando-se da permanência em pontos de sedentarização e da correspondência a modelo transcendental a que o decalque presta referência, o rizoma diz do desejo, afirmando-se resistência. Multiplicidade de agenciamentos que rejeitam o ímpeto unificador e centralizador, é desterritorialização e, por conseguinte, redefinição última da actividade de pensar: a ideia como estado intensivo, activo, abrindo possibilidades à vida e à acção. De pontos livres de se conectar entre si, de modo não-hierárquico e em permanente mutação, Insert, porque rizoma, existe num entre, aí onde não se acha estratificantes início e fim, apenas meios, através dos quais a obra cresce e transborda, e tudo toma velocidade. Caminhando incessantemente entre pontos do rizoma, Insert existe entre documento histórico e ficção, contexto e objecto artístico, qual Castro Marim existe entre dentro e fora, paisagem e desejo, identidade-desejo e desterro-exclusão. Memograma e Insert, rizomático quase-espelho, sobrepostos na reflexão do acto de desterritorialização e reterritorialização de memória, são, não só exercício do uso da linguagem cinematográfica, de foco no princípio construtivo da montagem explorando a justaposição de cenas e a sua potencialidade na construção de uma narrativa variável e plurívoca -, mas exercício de vivências. São possibilidade efectiva e afectiva.
3. Lágrimas amargas
A série fotográfica (Figura 3) do processo de censura de “As lágrimas amargas de Petra von Kant” de Fassbinder (1972) é, também ela, inscrição de uma presença-limite. As folhas do guião submetido ao processo de censura são fotografadas e expostas em conjunto, desvendando uma fragmentação, violento acto, a um tempo material e simbólico, de preponderantes consequências para o processo de significação. Paradigma do posicionamento do Regime, o relatório da censura ao filme de Fassbinder procedia a impaciente esforço por apagar qualquer vestígio de desvio, rasurando discurso e traços simbólicos de uma presença lésbica na película e na ordem social. Revelando, num esforço genealógico, as notas manuscritas nas margens e as rasuras do texto, a série de Filipa César é território de tensão e desassossego pois é enfim testemunho e inscrição dos corpos e desejos dali expulsos por mão da censura. Derradeira epistemologia da margem, a obra em questão é concretização dos dois vídeos que a precedem, estriando o espaço liso da história e desenhando-se contra-memória diametralmente oposta à reprodução e estratificação caras à hegemónica história.
Conclusão
A memória inscrita (Memograma) e a memória ficcionalizada (Insert) da prática do degredo nas salinas de Castro Marim, e da prática da censura em Lágrimas amargas de Petra von Kant, recuperam o peso simbólico do exílio e da censura fascistas gravados no imaginário colectivo. Cartografam ora um patchwork de texturas que inscreve, nos montes de sal (e, em última análise, na história e na experiência do espectador), os corpos outros que os habitaram outrora e que os habitam ainda, em potência. Castro Marim é vila-fronteira, para pessoas-fronteira, um intermezzo a um tempo passado e presente, qual o guião censurado, inscrevendo a memória dos corpos dali violentamente expelidos. A partir da obra de Filipa César se experimenta, pois, a materialidade de uma contra-memória de resistência: do exílio-censura à inscrição, da salina à sala de cinema e do museu, do documental à ficção, da hegemónica história à rizomática genealogia, da memória à acção. Rizoma de paisagem e desejo, é topografia da transgressão e clandestinidade, entre corpo e espaço, obra e contexto, e entre as três componentes da obra instalada. Ultrapassando o carácter de (premente) registo histórico, de arquivo, Memograma, Insert situa a genealogia cartografia de uma história da margem de um país sob uma brutal ditadura fascista no presente, isto é, desenha pontos de contacto onde se pode situar o espectador e permitir que este se transforme e, por sua vez, transforme o que o rodeia. Os três elementos-momentos da obra desenrolam-se a velocidades distintas e relações múltiplas com o exterior, abrindo-se a um sentir háptico análogo à relação entre os corpos e os montes de sal. O necessário deambular do espectador pela sala, por forma a aceder aos três elementos da instalação, condu-lo a um entrar ritualístico na obra, aí onde todos os sentidos se abordam e onde um sentir háptico toma primazia, caminhando-se de ponto em ponto do rizoma.
Descobrem-se em Memograma, Insert essenciais coordenadas genealógicas da natureza específica e corporalizada (encarnada) de uma subjectividade lésbica continuamente processo, em multiplicidade de variáveis e em permanente mutação a atravessar, estriando e rompendo, o espaço liso de uma história heteronormativa, patriarcal e colonialista, e reequacionando, em última análise, as mulheres lésbicas e as suas experiências na produção de conhecimento.