Contextualização: a Razão
Ana Albuquerque (1964) começou a sua aprendizagem no curso de Escultura na Escola de Belas Artes de Lisboa (1994), contudo o seu objetivo foi sempre a joalharia, porque, embora ambas tenham características comuns, na joalharia, a abordagem da forma escultórica pressupõe sempre um corpo.
A joia tem características específicas pelo facto de se relacionar duma forma privilegiada com o corpo e tem um tempo próprio de perceção e fruição. Quando usada, tem-se consciência da sua presença, mas essa presença dissolve-se no inconsciente, porque é sentida num momento e esquecida no momento seguinte. É um sentir intermitente que estabelece uma relação com o tempo - o tempo de usufruir.
Outro aspeto relevante é o facto de a joia ter uma escala menor que a escultura, o que possibilita a relação diária com uma obra de arte, quer no espaço privado, quer no espaço público.
O percurso de Ana Albuquerque remete-nos para o Renascimento, onde vários artistas italianos como Filippo Brunelleschi, Antonio Pollaiuolo, Lorenzo Ghiberti, Luca della Robia, Andrea del Verrocchio, Sandro Botticelli, Domenico Ghirlandaio, Michelozzo Michelozzi, ou ainda como Albrecht Dürer, o mais famoso artista do Renascimento nórdico, que aprendeu o ofício com o seu pai, e outros que, conhecendo a versatilidade deste ofício, o praticavam a par da Escultura e da Pintura.
A oficina de ourives foi uma escola de treino importantíssima para os artistas devido à clareza do desenho, o estudo da forma, a escala, os materiais, o peso e a proporção em relação ao corpo. A aprendizagem de várias técnicas, com os mestres, influenciou a arte que viessem a praticar, no rigor, na liberdade criativa e na plasticidade. Os ourives italianos não se inspiravam em desenhos ou livros porque sabiam executar a sua própria criação, o que os mantinha em posição de igualdade e com um estatuto equiparado aos escultores, pintores e até arquitetos do Renascimento (d’Orey,1997:17).
Apesar da passagem pelos cursos das escolas de joalharia do AR.CO e do Contacto Directo (1987/1992), e de ter feito um estágio na oficina de ourivesaria da Nuno & Garrido, Ana Albuquerque também trabalha diariamente com um mestre ourives durante muitos anos com o senhor Lenine e, mais recentemente, com o senhor José Carlos dos Santos, da José Carlos & Filhas Joalheiros, Lda, em Guimarães. A artista manteve uma relação muito interativa com o senhor Lenine, discutindo com ele as peças que criava, acompanhando a execução das mesmas na sua oficina e colhendo os seus ensinamentos e resoluções técnicas. Este rigor e conhecimento dos materiais aparece na sua peça Mar, uma
encomenda de um colar, com o tema do mar, para o qual o cliente lhe forneceu as pedras. É a partir da ideia de ondulação que a artista escolhe os materiais e desenha a forma (Figura1).
É por este sentido de medida, de conhecimento das qualidades dos materiais, de harmonia, de racionalidade e de conhecimento da Geometria (que Ana pratica quase diariamente) que podemos considerar que Ana é uma joalheira do Renascimento na atualidade.
O Sentimento: o Encontro
[…] quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objectos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. (Calvino, 1990: 138).
O questionamento sobre a vida, o nascimento e a morte constitui uma questão recorrente na vida da artista que, por volta dos vinte anos, se exacerbou a tal ponto que a levou a entrar numa depressão que culminou num ingresso na Universidade Católica, onde estudou Teologia durante dois anos, abandonando esse estudo por incompatibilidade com o curso de Escultura na Escola de Belas Artes. Durante este percurso, Ana foi percebendo que a vida só faz sentido vivida com os outros, na partilha e no encontro.
Como a artista elegeu o ouro como material de execução das suas peças, pensou que, o mais natural seria vender a sua obra nas Ourivesarias. Contudo, depara-se com um mercado de joalharia em série, com modelos vindos da China, cujo preço rivalizava com as suas peças únicas ou de pequenas séries, o que torna incompatível esse objetivo. Percebe também que esta atividade para ela é um negócio no sentido etimológico do termo, de negar o ócio nec + otium- no sentido de viver em paz e com o que é positivo da vida, portanto não era um modus vivendi para ganhar dinheiro apenas e abandonou esta ideia. Mas Valentina Garcia, uma amiga e uma das suas melhores clientes propõe-lhe fazer de mecenas, tal como Lorenzo de Médicis, mecenas do Renascimento italiano da segunda metade do século XVI, em Florença. Para além de lhe encomendar peças, propõe-se divulgar a sua obra. Deste encontro com Valentina Garcia nasce o projeto “meetjewelry”, em 2003. A partir daí, Ana Albuquerque deixa de assinar as peças com o seu nome e passa a assinar meet.
O espírito do partilhar e do encontro leva Ana a concretizar outro projeto que são as alianças de casamento feitas pelos noivos. O casal vai para o seu atelier, em Carcavelos, e com cera mole, ele molda a aliança dela e ela molda a aliança dele, ficando assim as impressões digitais deles marcadas no material, sendo estas alianças depois fundidas em ouro. O processo de fundição é realizado nas oficinas do senhor José Carlos dos Santos, em Guimarães, com a supervisão da artista, sendo depois assinadas, ou seja, são-lhes soldadas uma pequena chapa com a palavra meet,
Pelo processo de trabalho e pelo depuramento das formas as peças de Ana Albuquerque remetem-nos para Donald Judd, escultor minimalista e com formação filosófica, a qual o tornou um amante de Platão, que mandava executar as esculturas em oficinas, sem ele ter qualquer intervenção. Quando os seus Specific Objects eram pintados, enviava-os para a fábrica das motas Harley Davidson, que lhe garantia uma pintura completamente homogénea, sem um único grão de areia. Contudo, no caso de Ana Albuquerque, muitas vezes as peças eram construídas em diálogo com o senhor Lenine e com intervenções suas.
Aspetos relevantes
A joalharia subentende uma forma de comunicação a três, ou seja: o criador exprime-se através da peça que cria; o portador que se apropria da joia e que lhe pode reforçar o significado ou atribuir-lhe outro; e uma terceira pessoa que é o testemunho, o espectador. A joalharia tem uma especificidade diferente dos outros géneros de arte que se prende com o reconhecimento da existência duma outra pessoa para além do seu criador (Daunay, 1997: 83).
Se, por um lado, a artista procura um autoconhecimento, num processo interno de aprendizagem e de questionamento, encontrando respostas nas formas que vai criando, as quais são o resultado das suas preocupações e que, ao mesmo tempo lhe permite relacionar-se com os outros sem ser necessário usar palavras, por outro lado há um trabalho muito racional onde revela a sua preocupação com as propriedades da matéria, como os limites físicos e químicos dos materiais que usa, como tensão, pressão, temperatura, alongamento e ductilidade do ouro (Figuras 2 e 3).
Estes aspetos foram objeto duma exposição realizada na galeria Reverso, em Lisboa, porque achou interessante valorizar tudo em que se pensa na feitura duma peça de joalharia. O catálogo, a que chamou Caderno Inacabado, foi feito com fotografias das peças que aparecem na parte do canto direito das folhas, fazendo um flip book, de modo que, ao ser folheado rapidamente, se possa ver a continuidade e sequência das formas.
Outro aspeto relevante é o movimento e a sua relação com a gravidade e o corpo. Do movimento resulta o som que é também um modo de relacionamento com o outro, porque o som é produzido à medida que nos movemos e causa um efeito em quem o ouve (Figura 4 e 5).
Estas peças foram executas para a exposição MEET, promovida pelo Hospital Ortopédico de Sant’Ana, na Parede, uma iniciativa de aproximação aos seus utentes, com a convicção que as atividades lúdico-culturais são importantes no processo terapêutico.
A possibilidade de expor objetos de joalharia na antiga dispensa deste Hospital provocou a reflexão sobre o que na vida é dispensável para cada pessoa.
Um tema que lhe interessa particularmente são os direitos da mulher. E é nesta linha que escolhe três formatos de decote: de camisola de malha, de T-shirt e de vestido (Figuras 6, 7 e 8). Sendo a fronteira entre o público e o privado, a divisão entre o interior e o exterior, Ana desenha e interpreta o decote a três dimensões, num binómio vestido/nu (Braz Teixeira: 2008).
Estes decotes, de formas depuradas, têm incisões, perolas e ágatas e fazendo a ligação ao têxtil são, pontualmente, adornadas/cosidas com linha de seda (Figura 9).
O decote, para a artista, denota o papel da mulher no mundo. A estátua da Liberdade, símbolo da Revolução Francesa, é uma mulher quetem um decote enorme, em contraponto coma burka da mulher árabe. A liberdade da mulher de poder mostrar ou não o corpo está relacionada com a sua condição e os seus direitos.
Sendo o decote a orla entre o oculto e o que é visível, este remete-nos para o mito do Anel de Giges, que Platão refere no Livro II, da República, um objeto metafórico que dá ao possuidor um poder mágico, dado que este anel, quando tem o engaste voltado para a parte de dentro da mão, lhe concede o dom da invisibilidade e, quando voltado para fora, o torna visível (Platão, 1993: 57).
Nesta linha também está a peça A medida do Palmo, um retângulo em ouro amarelo, com a medida do seu palmo, onde está gravado dum lado DO CORAÇÃO AO UMBIGO e do outro DO CENTRAR AO PARTILHAR. Este retângulo que pode ser usado dum lado ou do outro, portanto há sempre um lado que está visível enquanto o outro se torna invisível, está suspenso num fio feito em burel cor de sangue de boi, que reforça esta ideia de invisibilidade/ visibilidade, pois lê-se ou não as palavras consoante o movimento do corpo do seu portador (Figura 10).
Considerações finais
Escala, estrutura, forma, tensão, gravidade (peso e movimento), materiais, textura, acabamento e a relação com o corpo constituem o léxico do processo de trabalho da autora, quer seja na peça única ou no múltiplo e sempre entre a razão e o sentimento.
Para Ana Albuquerque, a joalharia está ligada a um processo de questionamento interior e de encontro com os outros, que se traduz em formas que a surpreendem, como se as respostas às suas inquietações e aos seus pontos de vista se revelassem através das formas que vai encontrando por um lado e por outro, usando um racionalismo muito elaborado. As joias são objetos muito pessoais, com os quais normalmente há relação próxima, mais ostensiva nalguns casos, e bem discreta noutros. Ana entende a joia como um adorno para ocasiões especiais, e algo que para fazer sentido deve ser de grande valor, deverá ser imbuída da carga que se pretende transmitir quando se usa. Cada peça pode ter uma simbólica própria que pode ser transformada pela pessoa que a usa, mas também pode ser feita à partida com a simbologia da pessoa que a encomenda. Há joias que pertenceram a uma pessoa e que ao ser herdadas é como se trouxessem com elas um pouco do carácter do seu portador anterior e podem constituir objeto de proteção, de força, ou de magia. Uma peça de joalharia deverá estar sempre com o seu dono porque estimula os nossos sentidos duma maneira especial, estabelecendo relações íntimas com o outro. Ao ser usada cria uma simbiose com o seu portador, de tal forma que o espectador acaba por não ver a joia real, mas a relação entre ela e o seu portador.
O processo cognitivo, que leva Ana Albuquerque a escolher materiais e formas, é muito misterioso e introspetivo, porque é quase como se trouxesse notícias do seu interior.