Introdução
Iniciado com Anamorphoses I, para clarinete e eletrónica, realizada em 1993, o ciclo de peças tem como elemento mais recente Anamorphoses IX, para violoncelo e orquestra, composta em 2017. Ao longo deste, Soveral vai integrando parâmetros de alteração anamórfica às seis frases melódicas escritas para a parte instrumental de Anamorphoses I. As deformações aplicadas a um ou múltiplos parâmetros musicais assumem-se como gerador de novas situações sonoras, reflexos de originais que ora se vão opondo, ora se complementado, e que Rosa (1996), sobre Anamorphoses III, para violino e eletrónica, descreve como um processo que permite uma dialética entre o original e a cópia, cuja identidade contraria, atrai, repulsa, mas que de tão opostos parecem desejar-se.
Em Anamorphoses V, para quarteto de cordas, o plano onde a projeção do material original é realizada, conduz à dimensão instrumental o elemento de quarto de tom, um conceito até então apresentado apenas na eletrónica. Tal deformação transporta a linguagem ao diálogo entre textura e melodia de contorno bem definido (MIC.PT, 2017). Ao fazê-lo, possibilita uma nova projeção no plano instrumental mais alargado, a orquestra de câmara e o violoncelo, em Anamorphoses VII. Sendo ambas as obras compostas por um elenco integralmente acústico, dá-se uma incorporação de elementos trabalhados do domínio da eletrónica de I, II e III, na prática uma nova morfose no âmbito conceptual da textura sonora.
Na busca do processo criativo, que leva pela deformação à geração de novos materiais sonoros, surge a necessidade de perceber um pouco do conceito basilar do ciclo, a anamorfose, procurando a sua origem teórica e fundamentação estética, sua funcionalidade e suas variantes. Segue-se a representação das diferentes dimensões de aplicação do conceito em Anamorphoses V e VII, procurando a demonstração da plasticidade sonora implícita na perceção dos elementos, entretanto gerados por deformação. Nesse sentido, utilizam-se estratégias de análise comparada, usando a gestalt na observação formal de cada elemento gerador e transformado, buscando referências processuais entre eles.
1. Da Perspetiva à definição de Anamorfose
Baltrušaitis (1976) afirma que o conceito de perspetiva é associado à restauração de um fator de realidade, a terceira dimensão de uma representação. Ao invés disso, a anamorfose projeta para fora dos seus limites as formas da sua representatividade, distorcendo-as de maneira a que só num determinado ponto seja passível de reconhecimento. Sendo uma técnica sobejamente conhecida já no século XVI, Lazzaro et al (2019: 353), apresenta o termo anamorfose como um neologismo de um termo grego do século XVII, anamòrfoṡis que pode ser traduzido como “dando nova forma a uma figura”, ou “moldando-o ao contrário”. Os mesmos autores definem:
Anamorphosis is a drawing intencionally distorted such that it can be reformed in the proper proportion when the observer stands at a given distance from the plane of the image, in a single, fixed and eccentric point (Lazzaro et al, 2019: 353).
O nível de deformação do original está diretamente relacionado com o espelho que projeta o contrário referido pelos autores. Nesse sentido, deve-se mencionar a diferença apresentada entre a denominada anamorfose perspetiva, correspondente a uma projeção resultante da alteração dimensional numa superfície reflexiva plana, e a anamorfose catrópica, cujas projeções são resultantes de reflexos em superfícies especiais, como as cónicas, piramidais, prismas, etc. A junção de ambas as abordagens resultam num processo de deformação multidimensional, através de formas livres, que permitem projeções diferenciadas, consoante a localização do ponto de observação. (Figura 1). (Sanchéz--Reyes & Chacón: 2016).
Mas o conceito não é apenas explorado sobre o ponto de vista da representatividade visual. Se, por um lado, Baltrušaitis (1976: I) defende que na história, a anamorfose, ao distorcer a perspetiva, a ordem e representatividade de mecanismos que governam as formas da vida, era associada ao contacto com o oculto e com teorias relacionadas com a dúvida, por outro, ela era vista como:
‘art of wonder’ that exploits its manipulation of the visual field in order to excite the viewer’s curiosity andinsist on herdynamic contribution to the process ofconstructing meaning […] an act of veiling, a deliberate attempt to conceal hidden knowledges from the uninitiated gaze (Cheetham, 2012: 2).
A anamorfose assume assim a capacidade de gerar multi-significados a um mesmo material, revelando estruturas de subjetividade à qual alude a teoria psicoanalítica de Jacques Lacan, nomeadamente à publicação “Le stade du mirroir comme formateur de la fonction du JE”, de 1949 (Cheetham, 2012: 21). Aí, “anamorphosis is indicative of a symbolic castration in the visual field, as it causes the imaginary perfection of geometric perspective to break down” (Cheetham, 2012: 28), sendo a castração entendida por Lacan como um processo organizado, através do qual as identificações imaginárias são substituídas pela função simbólica. Entende-se assim que as deformações anamórficas são geradoras de materiais entendidos como novos, visto a sua perceção visual ser adquirida de acordo com a subjetividade do seu plano de observação. A reflexão
provoca então novos entendimentos, fundados no que Lacan diz ser uma identidade assente numa ilusão, em que a coerência da unidade se atribui pela recusa do conceito de fragmentação e alienação. O espelho, elemento essencial no desenvolvimento da teoria, assume o papel central na desmistificação do objeto imaginário, na desconstrução do subjetivo e identificação da forma na sua totalidade pela validação posterior da junção de todas as partes. Assim, Lacan (2006: 570) define anamorfose como “existential divorce in which body vanishes in spatiality…artifices that instate in the very prop of perspective a hidden image, reevoking the substance that was lost there”. Neste contexto, a subjetividade é considerada pelo autor como uma auto-incerteza, uma negação dada como contorno figurativo pela anamorfose, cuja instabilidade inerente suporta a sua negação de auto-retrato espelhado, referente ao conceito Cogito da teoria Cartesiana (Cheetham, 2012).
Mais do que um resultado de operações aritméticas que alteram a estrutura geométrica de uma determinada entidade, a anamorfose é vista então como uma deformação geradora de novas unidades que completam e alimentam a identidade da sua forma inicial, um princípio de subjetividade aproveitada por, entre outros, Salvador Dali, não necessariamente na técnica de projeção das formas, mas antes pelo ensejo de, através delas, atingir a profundeza do subconsciente humano.
2. Anamorphoses V e VII: do ponto à trama
Ao longo do ciclo Anamorphoses, Soveral torna claro o seu intento de colocar no plano de criação de cada obra a dialética entre o original e seus reflexos. Dada a multidimensionalidade do objeto musical, estas versões alternativas do material gerador surgem nas diferentes dimensões do discurso musical: da linearidade à verticalidade, da clareza à densidade, da métrica frásica à forma global.
Anamorphoses V propõe ao ouvinte uma primeira descodificação: textura ou algo mais? Ao iniciar sob a forma de uma massa sonora no registo sobreagudo, em harmónicos, em deslocação por glissando, a sonoridade apresenta-se como um plano textural, onde se vão sobressaindo três momentos importantes para o discurso musical: o glissando, o trémulo progressivo e o trilo. Apresentados por esta ordem no violoncelo, a abertura em harmónico sul ponticello e entrada similar quase canónica nos restantes instrumentos, promove o som de trémulo progressivo seguido de trilo (Figura 2) para o elemento de condução do diálogo, surgindo novamente neste instrumento no compasso 5 (c.5), depois no violino II, ainda no c.5 (3º tempo) e violino I no c.6.
Esta entrada é desde logo exemplificativa de um processo anamórfico, nos
domínios métricos e intervalares. No primeiro caso, a figura 2 mostra uma duração total de movimento de 7 semínimas (4 trémulo + 3 trilo), mas no violino II a duração do movimento é de 5,5 semínimas (3,5+ 2) e no violino I dura 2,5 semínimas (1,5 + 1). Trata-se assim de uma compressão horizontal e progressiva do objeto, subentendendo-se uma ‘visualização’ sob anamorfose perspetiva. No que diz respeito ao conteúdo intervalar, a deformação aproxima-se da abordagem catrópica, pois o intervalo que surge no trilo do violoncelo é de 11 meios-tons, alargando ainda neste instrumento (c.5) a 15, chegando a 23 no violino II (c.5). Verifica-se depois uma rotação de direccionalidade no intervalo 13 do violoncelo no c.8, e completo alargamento de âmbito de alturas na primeira vez que surge na viola, no c.8 (6º tempo), assumindo-se o Lá do violino I (c.6), ao não possuir nenhum intervalo vertical na articulação de trilo, como ponto de equilíbrio de todo o processo.
Esta sequência, enquanto gesto musical, volta a ser usado na viola (c.26 e 27) como ponto de transformação do material apresentado até então: textura criada pelos movimentos em glissando; articulação em trémulo; articulação em trilo. Este último, até então estático em termos de alturas, funde-se com o glissando na criação de um efeito sonoro descrito na partitura como whispered e vai revelando uma trama contrapontística de melodias expandidas temporalmente, iniciando no violino II no c. 31, passando para violoncelo e violino I no c.35, juntando-se os três no c.40 (Figura 3), para criar um dos primeiros pontos de rutura no
c.48. A articulação ganha então um contorno, uma identidade melódica que se multiplica em diferentes linhas sobrepostas, projetando-se depois novamente para o domínio da textura, em virtude do desenho apresentado pela viola.
Noutra dimensão encontra-se a transformação operada ao uso da articulação trémulo. O seu surgimento progressivo sobre uma única altura ganha nova dimensão ainda na secção inicial, no c.10, ao ser aplicada ao domínio dos sons harmónicos em glissando e antecedendo a importante entrada do primeiro elemento de maior recorte melódico até então (no c.11). A sua reentrada no c.28, nos violinos, atribui-lhe nova identidade, resultado da projeção do intervalo 11, central no gesto anterior, como elemento tímbrico e ao uso de sons fundamentais. A transformação operada a este ‘objeto’ assume maior relevância em Anamorphoses VII, com grande relevância no papel do violoncelo solo, como acontece nos c.12 a 15 (Figura 4).
Este recurso assume ainda nova transformação nesta obra, dadas as suas características percussivas. Trata-se de uma perda de identidade em termos de altura, que ocorre quer nas cordas como nos sopros, com recurso ao legno contra as cordas, ou nos sopros sem vibração. São disso exemplo as passagens dos c.32, 39 e 41, funcionando plasticamente como a sombra do elemento original executado pelo violoncelo solo, ora ressoando (c.39) ora dando a articulação ao solista (c.41).
3. Anamorphoses V e VII: linhas e recortes
Sobre o c.22 da partitura de Anamorphoses V, Soveral escreve expressivo, indicação que reforça ao longo da obra em diversas passagens onde a linearidade sobressai no todo. Esse momento conclui a primeira secção da peça e distribui pelos quatro instrumentos um dos elementos melódicos mais importantes da mesma (Figura 5).
Com efeito, o elemento apresentado na figura 5 é um dos reflexos de um gesto melódico, cuja apresentação surge pela primeira vez no c.11, num movimento de oscilação rítmica, que condensa informação no centro e alarga nos extremos, aproximando-se ‘visualmente’ de uma anamorfose gerada por uma alteração côncava da superfície (Figura 6). A linha melódica apresentada aqui é refletida: no c.13, no violino I, desta feita apenas em accelerando rítmico; no c.15, na viola, em andamento mais lento e assumindo um papel melódico; no mesmo c.15, alargado ritmicamente à melodia representada na figura 5, e, antecedendo essa projeção, apresentada multi-instrumentalmente entre o violoncelo (c.15 e 16), violino II (c.16 e 17) e violino I (c.18).
Das diferentes projeções que o gesto possui, mantém-se inicialmente como um movimento único e completo, sofrendo deformações ao nível do alargamento ou encurtamento do intervalo que separa cada altura, respeitando nesta fase a direccionalidade do mesmo. No quadro 1 verifica-se o seu comportamento do ponto de vista intervalar, realçando-se a variação para o quarto de tom concretizada no movimento multi-instrumental referido no c.15. A variação da primeira para a segunda projeção do movimento indica uma variação regular de um meio tom, ascendente ou descendente, mantendo alturas idênticas de duas em duas notas, até à 9ª, sugerindo um plano regular de projeção anamórfica. Nas seguintes, a dinâmica de variação intervalar é maior, com alargamento no movimento ascendente inicial do c.15 da viola (intervalo 15), enquanto a entrada do violoncelo reduz a meio o intervalo inicial do gesto apresentado no c.11.
Da difração criada no c.15, e mais tarde afirmada no c.22, com a condução melódica a ser estratificada pelo elenco instrumental, resulta a projeção de novas situações melódicas que são afirmadas como novas identidades. É disso exemplo o c.31 de Anamorphoses VII. O desenho melódico do violoncelo solo e o do violoncelo orquestral correspondem na íntegra aos do violoncelo e viola no c.15 de Anamorphoses V (Figura 7). Contudo, quer a articulação como a dinâmica empregue nestes instrumentos, como a orquestração usada, conduzem à identificação de ambas como novas projeções, cujos processos criativos resultarão noutras situações de enorme expressividade e lirismo da obra orquestral (é disso exemplo a passagem do c. 45 ao 53).
As reflexões criadas pelo espelhamento anamórfico dos diferentes materiais da obra criam estratificações que se multiplicam noutras tantas projeções. O processo reflexivo acontece quer no domínio do intervalo como da própria frase, ou até secção de música. No c.72, de Anamorphoses VII, por exemplo, o violoncelo solo apresenta sozinho uma frase globalmente descendente, sul tasto e legato que corresponde ao retrógrado gestual da melodia referida nos exemplos anteriores. Por outro lado, a reflexão cria também o próprio gesto, como é o caso do c.57 no violino II, enquanto a deformação altera a ordem de surgimento dos seus elementos (c.54 a 56 do violino II) (figura 8).
Observando o resultado de uma anamorfose catrópica com uso de uma superfície exterior cilíndrica, constata-se que a reflexão é cíclica, isto é, a sua deformação é menor nos limites exteriores da projeção, passando por um espaço de maior afastamento do elemento que lhe dá origem. No caso de Anamorphoses VII, podemos constatar esse momento entre o c.53 e 57, onde a textura orquestral atinge o seu ponto de maior densidade, chegando à dinâmica ffff. Nesta secção o contraponto que se verificava dá origem à projeção do gesto do c.11, com uma direccionalidade ascendente mais acentuada e com conteúdo intervalar reduzido ao âmbito do quarto de tom, que alterna entre o violino I
e o violoncelo, conduzindo a uma descida homorrítmica liderada pelo violoncelo solo, num gesto retrógrado do anterior, com articulação bem marcada e acentuada, chamando ao movimento a unidade de todas as projeções até então. Nesta obra, esta é uma secção central, enquanto que em Anamorphoses V é com a mesma textura que termina, realçando-se assim a interligação entre os diferentes momentos sonoros nas suas diferentes dimensões de entendimento.
Conclusão
Isabel Soveral (2018) descreve anamorfose, de forma muito simples e sucinta, como um processo físico que acontece porque um espelho possui um corte que permite a correção da deformação do objeto que espelha. Neste processo, as diferentes reflexões espelhadas, enquanto não encontram o corte que as corrige vão-se assumindo como verdadeiros opostos, que se moldam noutras projeções e, na busca da sua identidade, criam uma dialética com o objeto refletido. A análise feita a Anamorphoses V e VII, expõem esse diálogo entre a textura e o gesto, comparando o tratamento dado a diferentes projeções do mesmo material a conceitos de plasticidade, sujeitados a deformações que originam novos objetos: por um lado, o processo que conduz micro-elementos à definição de macro-estruturas - no caso da articulação à secção formal; por outro, o recorte do gesto melódico, a sua estruturação e deformação - a geração de novos materiais pela alteração gradual de parâmetros já existentes.
A multidimensionalidade de aplicação do processo permite seguir procedimentos semelhantes e contrastantes em duas obras geneticamente próximas mas musicalmente distintas, constatando a estratificação do objeto em diferentes projeções, que são soprepostos, sucedidos, interrompidos, intercalados, afastados, fundidos. No meio desta trama, é o conteúdo expressivo de cada elemento que conduz o processo criativo.
Sendo parte de um ciclo, a abordagem feita pela compositora ao conceito de que lhe dá nome é de per si cíclico: não no sentido de um fim que corresponda ao retorno a um ponto de partida, mas antes da capacidade do processo anamórfico concretizado permitir a reorganização sucessiva de novas ideias, novos gestos, novas secções.