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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.11 no.32 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

 

Artigos Originais

O objeto incômodo

The uncomfortable object

Mauricius Martins Farina1 

Marta Luiza Strambi1 

1 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Instituto de Artes (IA/UNICAMP); Departamento de Multimeios (DMM/IA/UNICAMP). Rua Elis Regina, 50, Cidade Universitária “Zeferino Vaz”. Barão Geraldo, Campinas - SP CEP: 13080090 Brasil. E-mail: mauriciusfarina@gmail.com; martastrambi@gmail.com


Resumo

Neste texto relacionamos estratégias simbólicas presentes no trabalho de três artistas brasileiras, Erica Versutti, Lorena D’Arc e Marta Strambi. Artistas escolhidas a partir da observação de uma potência crítica, relacionada à presença de frutos que, em seus trabalhos, se tornam objetos incômodos, provocadores, quando os relacionamos com o princípio de sobrevivência, presente nas associações entre a vida, a natureza e a arte. Dessa maneira, tais objetos nos sugerem um alinhamento com dimensões ativas sobre o paradoxo da vida em sua dimensão globalizada. Algo que, no campo das artes visuais, admite-se como presença, situando a nostalgia da natureza perdida como uma distopia.

Palavras chave: arte brasileira contemporânea; objeto; natureza; vida em desalinho

Abstract

In this paper we relate symbolic strategies present in the work of three Brazilian artists, Erica Versutti, Lorena D’Arc and Marta Strambi. Artists chosen from the observation of a critic power related to the presence of fruits that, in their works, become uncomfortable and provocative objects when we relate them to the principle of survival, present in the associations between life, nature and art. Thus, such objects suggests to us an alignment with active dimensions about the paradox of life in its globalized dimension. Something that, in the field of visual arts, is admitted as presence, situating the nostalgia for lost nature as a dystopia.

Keywords: contemporary brazilian art; object; nature; disheveled life

Introdução

Pensar a natureza que nos cerca, como um fenômeno de presença, implica em interpretações historicamente muitos complexas. Estamos vivos e essa condição não pode ser banalizada pelos mitos. “Sei perfeitamente que a natureza se analisada, não revelará um propósito Divino, mas um jogo cego entre acaso e necessidade.” (Flusser, 2011: 140). A nostalgia idílica ambientada pela ideia de uma natureza limpa, de um sabor sem veneno, é uma imagem que não cabe para todos. Populações inteiras, que vivem nas periferias de cidades como São Paulo, convivem com situações sanitárias inimagináveis para o mundo “civilizado”. Existe um enorme abismo de oportunidades que lhes é imposto pela estratificação social. Implicando em relações traumáticas para a subjetividade coletiva, onde agora existe um caos na ideia de destino. No passado não se fazia diferente, apenas o grau e a escala que eram totalmente distintos. O desassossego do mundo (Maalouf, 2010), tomado pelo consumismo, pela necessidade de poder, esconde um vazio perigoso. A transformação da vida em coisa qualquer, desde a modernização tecnológica, está a assombrar o mundo com as misérias de um cotidiano em crise, diante de regulações éticas frágeis que não conseguem conter a sanha de um poderio econômico que se impõe, pilhando recursos materiais do planeta e apagando a diversidade das culturas.

Mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar “transversalmente” as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referência sociais e individuais. [..] Uma outra espécie de alga, desta vez relativa à ecologia social, consiste nessa liberdade de proliferação que é consentida a homens como Donald Trump que se apodera de bairros inteiros de Nova York, de Atlantic City etc, para “renová-los”, aumentar os aluguéis e, ao mesmo tempo, rechaçar dezenas de milhares de famílias pobres, cuja maior parte é condenada a se tornar homeless, o equivalente a peixes mortos da ecologia ambiental (Guatarri, 2001:25).

Existe algo que não se ajusta nessa relação entre o natural e a cultura, e as metáforas desse incômodo. Entre tantas questões problemáticas do mundo real, o predomínio do autoritarismo econômico pela política do mais forte é, desde sempre, causa permanente. Relações políticas invasivas abalam o próprio sentido da democracia, impondo sua necessidade ao outro, desconstruindo o princípio de civilidade a partir do menosprezo pelo estrangeiro, pelo diferente.

1. Objetos incômodos

A experiência da arte trabalha em espaços que nos fazem reconhecer a presença de sentidos improváveis e de destinações não previstas no ordinário da vida sobrevivente. As relações negativas, que advêm de uma realidade em desalinho, têm influência na arte contemporânea e, a partir disso, percebe-se a ocorrência de políticas singulares de reação diante desse corpo estranho. Ocorre, desde os anos 1990, uma forte presença de formulações conceituais relacionadas com políticas pessoais que, a partir de um trauma diante do cotidiano e das irritações com o predomínio da desigualdade, revelam-se como uma resposta para uma série de destinações que são impostas ao outro pela força. A sublevação às abjeções da vida surge como atitude e expressão no universo da arte, essa condição encontra causas para o enfrentamento das hostilidades que nos incomodam.

Mas existem forças poderosas em ação também em outras partes: o desespero ante a persistência da crise da Aids, doença e morte invasivas, pobreza e crime sistêmicos, o bemestar social destruído, inclusive o contrato social rompido (pois de cima os ricos não participam da revolução e de baixo os pobres são largados na miséria). A articulação dessas diferentes forças é difícil; em conjunto, no entanto, elas estimulam a preocupação contemporânea como o trauma e a abjeção (Foster, 2014: 157).

Processos articulados pela arte, que incluem a preocupação com a vida, com o social, atuam como um argumento vivo. Na arte, a causa do real não é apenas uma retórica do destino, mas uma marca da própria subjetividade que se põe como condição relacional.

Não podemos escapar das teias do destino, mas também não podemos escapar do fardo da responsabilidade pelo destino. [...] O que isso significa é que a dimensão da subjetividade (no sentido de agência autônoma livre) é irredutível: não podemos nos livrar dela; ela continua a aparecer em cada tentativa de superá-la(Žižek, 2017:73-74).

Na arte, a presença temática de elementos relacionados à natureza como trauma conduz metáforas de sobrevivência. Tal questão, implicada na ideia das “três ecologias” prevista por Félix Guatarri, revela-se com uma urgência inquietante. As formas de um acontecimento são imprevisíveis na arte, a escolha por formas e objetos se relaciona com o tempo.

2. O fruto como medida

Muitos artistas têm demonstrado interesse na presença de frutas como derivas simbólicas em seus trabalhos. Encontramos essa frequência nos trabalhos de Erika Verzutti (SP), Lorena D’Arc (MG) e Marta Strambi (SP), nas problemáticas da extensa produção de cada uma; com compleições relacionadas entre o que é natural e o que se aproxima da “natureza”, seja na criação das formas ou nas relações entre os objetos. Mostram em suas poéticas simulacros onde o poder, a feminilidade e uma arquitetura da ironia se apresentam.

Foto: Miguel Aun. Fonte: própria

Figura 1 Lorena D’Arc, Manga com leite, 2015, cerâmica, ferro, manga e arquivo sonoro. Dimensões variadas 

Foto: Miguel Aun. Fonte: própria

Figura 2 Lorena D’Arc. Manga com leite, 2015, cerâmica, ferro, manga e arquivo sonoro. Dimensões variadas 

2.1 Manga com leite

A instalação Manga com leite, de Lorena D’Arc (figura 1 e figura 2), apresenta uma atmosfera de memórias, recobertas em camadas, onde aspectos da cultura imaterial mineira são evidenciados. A relação entre o leite e a manga, considerada por muitos como uma mistura perigosa é, de fato, uma falácia que remonta as origens do Brasil colonial. As fontes de uma história transmitida pela oralidade relatam que, naquele período, o leite era escasso e de alto valor, destinado exclusivamente para o consumo da “Casa Grande”. A manga, ao contrário, era um produto abundante e os feitores de escravos diziam que, manga com leite, era uma combinação venenosa; tudo isso para evitar que os escravos consumissem o leite dos senhores.

Manga com leite (Figura 1) foi moldada em cerâmica, com pátinas de óxido de ferro a partir de frutos naturais e queimadas em alta temperatura, dessa forma se tornaram objetos de “quase-ferro”. O ferro, nesse caso, é também um resquício de um material abundante nas Minas Gerais. Junto com essas “mangas ferrosas”, outras mangas, as naturais, foram também patinadas com óxidos. Inicialmente se assemelhavam às cerâmicas, mas no processo temporal da exposição elas revelam a putrefação de sua natureza orgânica.

Na instalação, junto com as mangas, há um antigo recipiente, com história de uso para o transporte de leite em décadas passadas. No interior dessa leiteira enferrujada, um dispositivo emite sons de gotejamentos, com timbres variados. Para marcar a relação da memória colonial no trabalho, Lorena dispôs nas paredes formas assemelhadas com “palmas barrocas”, recobertas com folhas de ouro: influência do estilo rococó francês que, no século XVIII, adornava a arquitetura colonial mineira.

Ao associar o leite com a manga, Lorena faz mais que rememorar acontecimentos, sua instalação carrega em si metáforas sobre as contradições ruinosas de uma cultura de exploração de uns sobre outros, do poder que usa a mentira para exercer seu controle.

2.2 Brasília Pintura, Brasília TV

É recorrente a opção por elementos retirados do universo orgânico nas criações de Erika Verzutti. Entre as formas que materializa, há ocorrência de abacaxis, de abóboras e de jacas frutas que se desenvolvem plenamente em países tropicais e que aparecem em sua produção, como uma espécie de troféu insólito, elevando a fruta à categoria de objeto. Para isso, utilizou cortes precisos, fundidos em bronze (Figura 3) ou, como faz posteriormente, acrescendo-lhe tinta óleo branca.

Fonte: http://www.verzutti.com/pt/obras/brasilia-tv

Figura 3 Erika Verzutti, Brasília TV, 2011, bronze e tinta acrílica, 32 x 21 x 17cm 

Fonte: http://www.verzutti.com/pt/obras/brasilia-pintura

Figura 4 Erika Verzutti, Brasília Pintura, 2019, bronze e óleo, 42 x 25 x 25cm 

Foto: Mauricius Farina. Fonte: própria

Figura 5 Marta Strambi, Molotove-me, objeto/ performance, 2019, porcelana, tecido, capacete militar e suporte de madeira, 110 cm x 40 cm x 40 cm 

Foto: Mauricius Farina. Fonte: própria

Figura 6 Marta Strambi, Molotove-me (detalhe), objeto/performance, 2019 

Erika propõe uma visualidade a partir de um ideal moderno recodificado pelo insólito da escolha. Sua operação poética, inspirada por um tipo de política que se vê no Brasil, situa-se num território de imprevisibilidades. Nestes trabalhos específicos, o aspecto da fruta in natura, versus sua condição como objeto fundido em bronze, coloca em diálogo o mole da origem e o duro da forma fundida, o visgo e a textura da fruta original, o vazado e o contorno branco que se apresentam como “desenho” ou como vazio, em oposição à perenidade do bronze vazado ou pintado de branco. A fatura de Brasília Pintura (Figura 4), em certa medida, pode dialogar com as latas de cerveja de Jasper Johns (Ale Cans, 1964), mas o processo de intertextualidade não é direto, ainda que o procedimento da fundição e pintura aproxime Verzutti a Johns.

Num outro caminho em relação ao neodadaísmo de Johns, Brasília Pintura de Verzutti, atravessa sentidos culturais e políticos, que estão articulados como uma espécie de lógica invertida pela liberdade daquilo que é insinuado pelos deslocamentos que produz. Faz isso, elegendo a fruta e não o produto industrializado, submetendo a dureza do bronze à moleza da tinta, o objeto ao sentido plano e monocrômico, produzido pelo branco que se insinua como desenho. Há ainda algo que se recobre de uma fina ironia naquilo que a artista insinua no título do trabalho.

2.3 Molotove-me e Infrutessência

Em Molotove-me (Figura 5), de Marta Strambi, o conceito de incômodo situa pelo avesso o que poderia ser apenas uma cesta de frutas, pois tem outra destinação. O trabalho apresenta “frutos cítricos”, limões/seios de porcelana, sacrificados a “molotoves” e queimados a 1320ºC, onde a transformação da porcelana se dá em estado pétreo. Esses “frutos” foram enrolados em panos, como se fossem “pequenas bombas” e, posteriormente, condicionados no interior de um capacete da polícia militar (figura 6), utilizado por volta dos anos 1970: tempo sombrio da ditadura militar no Brasil, na Argentina, no Chile e na América Latina em geral.

Esses frutos/seios, com marcas de fuligem, foram submetidos a uma ação durante a abertura de uma exposição, onde dez performers, com isqueiros nas mãos, atearam fogo nesses frutos, cujas chamas foram apagadas posteriormente. A partir de uma manufatura visivelmente feminina, que relaciona o seio com o alimento tangerina, e a vida ao veneno, existem linhas subjetivas que dizem respeito às sementes que não irão brotar, uma espécie de terço que caem das formas. Repara-se que há algo que denuncia uma natureza envenenada, algo que pode ser transparente na beleza dos frutos, mas que não se aparta de uma dimensão profundamente articulada como o meio ambiental e com os problemas políticos e sociais.

Na ideia formulada por Jacques Derrida (2005) a partir de Platão, o princípio do pharmakon do paradoxo remédio/veneno, ajusta-se a uma condição em que o princípio que cura também pode matar.

Há mais de 50 anos, isto é, ao menos desde o célebre livro de Rachel Carson, Primavera Silenciosa (1962), sabemos que os pesticidas industriais lançaram a espécie humana numa guerra biocida, suicida e de antemão perdida. Como bem diz seu nome, um pesticida industrial é um produto químico que visa exterminar uma “peste”, termo que designa no jargão produtivista toda espécie que compita com a humana pelos mesmos alimentos ou tenha algum potencial de ameaça à produtividade ou saúde humana ou de espécies que servem de alimentação aos homens [...] O princípio dá prova cabal da insanidade da agricultura industrial: envenenam-se nossos alimentos para impedir que outras espécies os comam (Marques, 2018: 214).

A aparição de frutos antropomorfos, como em Molotove-me e Infrutessência, que são tornados híbridos por uma sugestão de fruto e de corpo, está a decorrer a partir da sugestão possível desse paradoxo relacionado entre o veneno e o alimento, apontando para uma relação inquietante onde múltiplos frutos se ajustam num cacho (figura 7), e se implicam em desejos delicados.

Considerações finais

Sabemos que as dimensões ecológicas da sobrevivência, em países menos desenvolvidos socialmente, são influenciadas por interesses adversos à preocupação com o outro, com a sua permanência salutar no gozo da vida. Assim, configura-se um cenário político onde a dimensão da sobrevivência vai se impondo de muitas formas, como por exemplo no trato da agricultura, onde uma guerra entre os pesticidas e as pragas apresenta-se como uma tragédia anunciada. Reconhecemos que na arquitetura simbólica dos trabalhos aqui referidos enunciam-se perturbações visivelmente políticas que se apresentam no hic et nunc de um tempo difícil, resoluto em brigas, difamações e abjeções de toda ordem. A condição crítica desses trabalhos, articulada em seus próprios termos, sugere a ocorrência de um alinhamento inclusivo diante de uma emoção traumática, relacionada com a complexa ambiência da vida, ainda agora sob

um ataque dissimulado por políticas reacionárias e antiecológicas.

Nessa dimensão de problemas enunciados considera-se reconhecer a ideia do fruto presente nesses trabalhos, como metáfora ampliada aos outros contaminantes, que impulsionam a produção artística contemporânea pela via de uma arte política (Foster, 1985: 139). Não é apenas o veneno que se impõe ao

Foto: Mauricius Farina. Fonte: própria

Figura 7 Marta Strambi, Infrutessência, 2019, porcelana, tecido e sementes de tangerina, 70 cm x 40 cm x 30 cm 

fruto, mas a ignorância do poder egoísta que se impõe diante de uma comunidade fraturada de si.

Os trabalhos aqui relacionados, com estratégias muito próprias, não representam numa linha direta um tipo de ativismo, mas num sentido ampliado podem demonstrar a afetação destes problemas em relação às subjetividades envolvidas. O incômodo não está na arte, mas ele é um impulso que parte da vida para se tornar um acontecimento.

Referências

Derrida, Jacques (2005) A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras. ISBN 85-7321-222-5 [ Links ]

Flusser, Vilém (2011) Natural: mente: vários acessos ao significado de natureza. São Paulo: Annablume. ISBN 978-85-391-0260-0 [ Links ]

Foster, Hal (1985) Recodings: art, spectacle, cultural politics. Seattle, Washington: Bay Press. ISBN 978-09-419-2004-9 [ Links ]

Foster, Hal (2014) O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac Naif. ISBN 978-85-405-0466-0 [ Links ]

Guatarri, Félix (2001) As três ecologias. Campinas: Papirus. ISBN: 9788530801069 [ Links ]

Marques, Luis (2018) Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp. ISBN 978-85-268-1468-4 [ Links ]

Maalouf, Amim (2010) El desajuste del mundo: cuando nuestras civilizaciones se agotan. Madrid: Alianza Editorial. ISBN 978-84-206-6928-1 [ Links ]

Žižek, Slavoj. (2017) Acontecimento: uma viagem filosófica através de um conceito. Rio de Janeiro: Zahar. ISBN 978-85-378-1652-3 [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2020; Aceito: 21 de Janeiro de 2020

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