1. Introdução
Ao escrever sobre arte inventa-se outra linguagem, outro texto. Mas a escrita é tampouco separada do ver e do ouvir - e por que não do delirar? Existe o problema de ver a arte, ouvir uma música e conhecer sua própria escritura. E escrever sobre algo não é impor uma forma. Escrever, expor um trabalho, uma pesquisa, um estudo, é sempre um processo inacabado, no qual há um delírio, uma geografia como processo, um caminho artístico que pode ser ruidoso, sonoro e, muitas vezes, silencioso.
A arte age como sugestão sobre os músculos e os sentidos, ela apela para essa espécie de fina suscetibilidade do corpo. A euforia e o êxtase estão sempre presentes na interpretação da arte. Participar em conjunto de uma sinestesia é estabelecer uma misteriosa correspondência com o orgiasmo, o que remete à metáfora dionisíaca da confusão: as coisas, as pessoas, as representações se propagam por um mecanismo de proximidade. Uma forma de socialidade, uma participação diferenciada e aberta (Maffesoli, 1985).
As ideias dos filósofos e sociólogos, Michel Maffesolii, Gianni Vattimo, Gilles Deleuze, Jean Baudrillard, Martin Heidegger e Peter Sloterdjik, balizaram a interpretação, o comportamento e a poética dos eventos dos artistas brasileiros Floriano Romano e Gersony Silva.
Maffesoli (1987) suscita um esquema realmente complexo para o que chamou pós-modernidade; a socialidade com estrutura complexa orgânica da sociabilidade: com tribos afetuais em vez de indivíduos em organizações econômicas e políticas; pessoas em vez de grupos contratuais.
Segundo Flávio Kothe (2007) todo autor é um modelo de autoridade, que exerce poder quando elabora sua obra. É preciso compreender que é isso que gera a força do apelo pela orgia. Toda arte exerce uma ação tônica, aumenta a fama, o prazer.
1.1 O mundo sonoro e ruidoso de Floriano Romano
E o prazer gera o orgiasmo para Michel Maffesoli (1985), essa é uma maneira de propor a questão da alteridade. O êxtase, a embriaguez, o pathos no ser. O êxtase não é fenômeno de obnubilação, mas como o ser se apresenta, se representa a si mesmo como tensão, como uma tendência para transcender como característica do devir criativo (Slotedijck, 2014).
Floriano Romano nasceu em 1969, é doutor em linguagens visuais e docente na Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Trabalha com intervenções urbanas e sonoras e seus procedimentos artísticos vão de desenhos a poemas visuais, esculturas e instalações. Recebeu bolsa de artista residente na cidade do Porto, Portugal em 2001. Exposições, instalações e prêmios acompanharam Floriano durante toda sua carreira.
O artista carioca, entre os vários processos, trabalha com a cinestesia e a sinestesia (Marcondes, 2020). Cinestesia refere-se ao sentido muscular, conjunto de sensações que permite a percepção de sinestesia. Esta provoca um forte apelo aos prazeres sensoriais extasiantes sinestésicos para a aproximação de pessoas, que acontece em passeios por ruas e praças de cidade. Floriano Romano intitula-se artista visual e sonoro. O mundo é ruidoso e sonoro. O ruído existe antes da linguagem. Existe o orgiástico como fator de socialidade e existe o corpo enquanto instrumento de produção. O orgiasmo representa o exemplo do carpe diem que parece constituir o fundamento da sabedoria popular (Maffesoli, 1985). Assim, o mundo imaginal dionisíaco vai permitir pequenas disfunções da vida banal e assegurar a manutenção do querer viver societal.
Roger Bastide (1971) admite pelo método histórico-cultural a evolução das artes fonéticas como o acaso inicial do som, do grito; o homem, então, toma consciência de seu poder criador, e a sociedade, por sua vez, absorve esse poder e o socializa. O impulso e o som, a modulação sobre a articulação, a palavra. O homem percebeu, em circunstância fortuita, que com um fruto seco era possível gerar sons. Tomou consciência de seu poder criador de fazer sons. No estado totêmico dos povos, os primeiros instrumentos que emitiam sons eram simples cabaças, bastões e troncos.
Floriano demonstra que a arte atual muitas vezes se apropria das obras do passado - próximo e longínquo - e o torna contemporâneo; a arte cai na ordem do dia, do reciclável. A artista projeta obras, instalações e performances usando o som/ruído como material e objetos presentes no cotidiano, mas transformados (Bolsa de Arte, 2016).
Vivemos uma época culturalmente pobre, mas de exagero de busca por positividade, maximizando novas formas de violência. Ao mesmo tempo, estamos em uma sociedade que gera um cansaço e um esgotamento excessivo, o que nos leva a falar, metaforicamente em infarto da alma. Um artista que vê o que outros não conseguem enxergar exterioriza sua alma, seus sentimentos, expõe sua sensibilidade.
Floriano Romano é um artista viajante, viajante de espaços geográficos e sonoros, artista que recarrega seu material sonoro em praças, ruas e espaços de exposições, transformando-os em evento no sentido heideggeriano (Marcondes; Martins, 2018), em Ereigns, possibilitando a mundanidade. Joga com o espaço simbólico do sujeito no qual é confrontado com a abertura de vários mundos, com sua finalidade e com seu destino.
A rua é um prolongamento do estúdio, do não lugar, do acontecimento, do lugar virtual do acontecimento. Instalação Máscara Sonora (Figura 1) a rua é a sede de confusão da massa, confusão real do ato e signo. Nenhuma vontade de comunicação. A única pulsão é ocupar este não lugar (Baudrillard, 1996). A situação da máscara é o problema da relação entre ser e aparência (Vattimo, 2017). O artista com capacetes sonoros põe-se a sussurrar, e a “linguagem alcança o limite que desenha de seu interior e se confronta com o silêncio” (Deleuze, 1996: 158).
Um devenir sempre contemporâneo. As palavras sonadas pintam e cantam e no caminho e vão se dividindo e se compondo. Floriano sabe que a comunidade é emocional, instável, mas aberta. A ambiência comunitária induz à reflexão. Resulta certa desordem afetual no objeto cidade como uma sucessão de territórios onde as pessoas enraízam-se, ou se retraem, buscam abrigo e segurança. Esta é a hipótese da socialidade. Seria o fato de partilhar um hábito, um ideal que determina o estar junto. Floriano sabe a importância das aparências ou da teatralidade na cena cotidiana e pratica no colorido de ruas e praças a proposição sutil, a dialética entre o mostrar e o esconder, no estar junto à toa. O uso da máscara é o problema da relação entre ser e aparência (Vattimo, 2017).
No ano de 2015 a exposição Errância no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro exibiu a situação errante de Romano, que com corpo microfonado e em pedaladas errantes por ruas e bares na cidade do Rio de Janeiro narra a própria história e cria imagens sonoras (Das Artes, 2015). O registro foi apresentado com caixas de som sobre tripés. As caminhadas errantes noturnas em quatro pessoas contam sobre vivências como se fosse do próprio artista a experimentar o flaunerismo. Charles Baudelaire (2004), por exemplo, mergulhava em Paris para desvelar as representações das ruas e dos pedestres.
Em suas obras o artista utiliza o ruído e objetos sonoros retirados cotidiano, tais como: máscara sonora em capacetes falantes, guarda-chuvas sonoros e em mochilas sonoras. Ruído como expressão do mundo e influenciando os sentidos. Poema Tornado (Figura 2) é um poema-instalação em que imagens da escrita, sons e sentidos se especializam na Galeria Reserva Cultural em Niterói, Rio de Janeiro em 2020 (Romano, 2020). Sua produção artística é um processo físico com predomínio cinestésico munido da sinestesia.
As manifestações de Floriano são como um ludismo dionisíaco (Maffesoli, 1985). A família, o grupo, a cidade, o bairro são vetores de comunilização e de orgiasmo, são formas festivas que resumem a união do estático e da dinâmica, são figurações e a movência dos afetos. Floriano realiza troca simbólica e certa anarquia, mas gera um princípio de ordem, uma sinarquia. Aproxima-se do processo poético que retoma uma ordem complexa, orgânica que favorece o êxtase e a comunhão, a socialiadade que se apresenta sempre como um misto de desejo, de animosidade, uma provocação que prepara a uma integração. Participar de um comum, de um conjunto, de uma cinestesia permite a perduração do corpo social e o orgiasmo social. Os espíritos livres fazem sua entrada na cena mundial. Como o lema de Platão: poder viver em todo o lado (Slortedjick, 2014).
Nuvem é uma instalação que erige o som como chuvas sonoras irradiadas pelos guarda-chuvas em anárquico e cacofonismo. Em Nuvem, no Espaço Furnas no Rio de Janeiro, Brasil há ruídos da natureza e da chuva, instalação (Figura 3) é composta por guarda-chuvas sonoros dispostos na galeria além de performances com sapatos sonoros.
Intervenções em lugares abandonados, reabilitação de ambientes carcomidos pelo tempo são espaços escolhidos pelo artista que denotam a rota da atenção do artista a participar das vidas. E de tornar mais conhecido o patrimônio oral das culturas: o arquitetônico artístico como no evento, Muro de som, idealizado especialmente para o Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas, no bairro de Santa Teresa, centro do Rio Janeiro (Das Artes, 2015).
O mundo artístico de Floriano é sonoro e ruidoso. Participar de suas exposições é estar em estado de tensão. Suas instalações criam uma história, com som, música e imagem. A história da cidade apresentava um revivalismo de formas desaparecidas, em vias de escapar ao apocalipse referencial, uma utopia na contemporaneidade. É um apocalipse não virtual, mas distópico. E tudo se passa em efeitos, em acontecimentos perversos. A desordem aparente é fecunda. Reviver o sentimento de uma sociedade põe-se em estado de congregação. É o ser/estar junto; em seguida, ocorre o estado de dispersão. De um caótico coletivo, coro de canções, o artista cria uma vivência aberta e complexa.
A reflexão como vivemos e ouvimos leva a efeitos indagadores e a questionamentos do mundo contemporâneo. Floriano é como Zaratustra, personagem de Nietzsche (2017), uma forma poética e fictícia de andanças do ser transacional do homem. Para Nietzsche, porém, a arte é um fenômeno do passado, mas que lembramos com profunda comoção. A sensibilidade dos outros é o outro lado de seu corpo estesiológico.
Suas instalações são complexas soam simultaneamente. Com diferentes objetos desde tubos de plásticos, caixas de papelão, máquinas de escrever, chuveiros e torneiras, todos fazem parte de cenários e compõem com performances junto ao público. Em cada ambiente há uma história ficcional. Jogar-se contra os limites da representação e subvertê-la é tarefa de Floriano. De acordo com Nietzsche, é preciso colocar sob suspeitas as chamadas verdades oriundas do sujeito (Vattimo, 2017). Os objetos do sentido interno, assim como dos externos estão representados no sentido do pensamento. O mesmo procedimento em errância, corpo impulso em Floriano que pratica a chamada patafísica, como superação da metafísica, que tem um novo significado e implica uma nova compreensão do fenômeno arte.
1.2 Gersony Silva: o corpo que se epifaniza
Gersony Silva, paulistana, estudou na Belas Artes de São Paulo, assim como na Pontifícia Universidade Católica e na Universidade de São Paulo. Ganhou prêmios e participou de residências no Brasil e no exterior. A artista faz a libertação entre ser e aparência; a libertação da aparência, da máscara como objeto. Assim se dá, em sua obra, o desmascaramento: a artista personaliza, incorpora o ambiente e caminha por mundos errantes. Desde cedo, dedicou-se a ministrar e orientar trabalhos em arte e educação e inclusão social. Coordenou o Departamento de Arte no Colégio Miguel de Cervantes, também em São Paulo. Suas exposições, instalações e performances já ocorreram em Portugal, na França, na Itália, na Grécia e nos Estados Unidos.
Sem máscara apresenta seu corpo com seus humores, sua sensualidade, suas exigências; defronta outros corpos e roça neles. É assim a tactalidade contemporânea, uma forma da relação com o outro, ato poético. Eis o corpo que se epifaniza (Maffesoli, 1996), uma lógica do estar junto.
Tendo como referência as obras de Kafka, a artista passa seu corpo como que sem órgãos, mas um corpo de juízos, sem hierarquizações, corpo anárquico. Ela costuma exultar com todo o brilho como uma presença de toda a Grécia (Sloterdijk, 2004).
Na performance, Passagem Permitida, ocorreu em 2013 no meio da avenida Paulista na cidade de São Paulo (Figura 4), a artista fala aos transeuntes “podem passar”, as pessoas aventuram-se atravessar a fenda no pano branco que continha o escrito “Acessibilidade = Liberdade”; de início, desconfiadas, pois se aproximariam da figura de grandes asas brancas que poderia levá-las ao infinito. E continua declarando: “finalmente é sério. O tempo não tem nada de sério. Estamos na praça cheia. Agora que deseja o mais. Que nós estamos decidindo, O jogo de todos. Agora é sua vez” (Silva, 2020:n.p).
Os movimentos do passeio ou do trabalho, da agitação, do tráfego e os fluxos lúdicos constituíram um ambiente específico de nova instalação/performance, como sob auspícios de Dionísio, a exultação dos prazeres. Como Zaratustra, a artista manteve-se em silêncio durante algum tempo, a ponto de não querer ver nem os olhares e de fazer-se de surda às perguntas. Com imensas asas Gersony reabriu os olhos e voltou a se comunicar. Para Albert Camus (2017) vale descrever que a cidadela cega se torna praça forte, muralha do mundo. A grande preocupação, nessa situação, é fazer calar ou propagar a esperança. Poder tudo, olhar com um espírito que nada perturba.
A instalação, Ruídos do Silêncio (Figura 5), promove a mutabilidade física; é conceitual e sensorialmente com a corrosão do metal pela reação com o suor da artista. Nas mãos o vermelho misturado ao suor alude a sangramento (Oliveira, 2020). Toda arte age como sugestão sobre músculos e sentidos, apelando para essa espécie de fina suscetibilidade corpórea. As sensações de euforia e êxtase estão sempre presentes na interpretação da arte. Participar em conjunto de uma cinestesia é estabelecer uma misteriosa sinestesia, uma correspondência de um orgiasmo.
“Nós somos plantas apoiadas nas raízes que têm de romper o solo, a fim de poder florescer no pé e dar frutos” (Heidegger, 2010:27). Gersony em depoimento de sua obra explica “para onde vai este estranho caminho? Recolhi num vidro meus suores e caminhei em terras macias […] suas interpretações concluem o trabalho da obra inacabada por essência” (Silva, 2020:n.p). O tema dos movimentos perpassa os objetos. Percebe-se a presença física da artista em seus trabalhos e a inevitável força muscular na corporificação da ideia na obra, na instalação, na performance e na perfeita cinestesia. Descortina-se uma extraordinária multipliclidade (Slordedjik, 2014).
Para Michel Maffesoli (1987) o corpo se pavoneia e se cosmetiza e tudo isso tem o papel sacramental e torna visível o estar junto, fator da socialidade. O alcance idealizador da arte de Gersony está sempre ligado ao de conceber o mundo visível, que a arte viria à luz de maneira plena, as moléculas originais tornam-se cada vez mais raras. A performance corporal e pictórica Dream Images acompanhada pela peça musical de George Crumb interpretada por Neide Marcondes no teclado, realizada em 2019 na residência artística L’Echangeur 22, em Saint-Laurent-des-Arbres, França, configura o espaço simbólico como processo físico que leva cada força e cada indivíduo aos limites de suas possibilidades. De acordo com a teoria da descontinuidade e teoria da catástrofe, a instalação é uma libertação, uma crítica e uma forma catastrófica. A aquisição da forma depende de um conflito.
“Como saltar por cima da própria sombra, quando não se tem sombra” (Baudrillard, 1996: 95). Na performance, Movimento 1-16, seu corpo coberto com vestimenta que corresponde à situação do instantâneo (Figura 6) “permite explorar elementos de grande plasticidade: as pregas, as dobras” segundo Deleuze (1996). A performer, com sua própria alienação e com sua própria ultrapassagem é a libertação efetiva da metáfora da liberdade; é o contágio das formas geradas das referências de um real produzindo uma criação/invenção sem limites como a informação na teoria da descontinuidade. Suas formas pictóricas em tons vermelhos e azuis expõem movimentos que se enrolam em dobras e desdobras. “O corpo é a construção social, cultural e simbólica é tomado como matéria de criação e (re) criação” (Oliveira, 2020:49). E, como no pensamento, esta verticalidade dos tons introduz-se nas estruturas dos suportes um vazio, um invisível. Produz sensação de envolvimento sensual que envolve, mas desvela o corpo. São formas que voam, formas volantes.
A metáfora da dobra, na multiplicidade da dobra do eu permite compreender a erupção de afetos. Há uma beleza poética às vezes uma sublimidade. E o corpo demonstra postura de movimento entre paixão e êxtase. Ao espectador, por sua vez, cabe renovar sempre o acontecimento. A artista durante a performance expressa-se: “não gosto de sentir limites de minhas possibilidades. Tensão no (in)visível”
O estudo filosófico da contemporaneidade em contato com a pesquisa de materiais resulta em pinturas, desenhos, instalações, vídeos, fotografias e objetos de Gersony Silva. Mas tal pensamento será sempre indispensável: o que calcula e a reflexão (Heidegger, 1959).
2. Conclusão
O artista é uma pessoa complexa, desenvolve identificações polimorfas que nos incorporam e que nos integram afetivamente. A produção artística de Floriano Romano e Gersony Silva apresentam versões do aberto e o desvelamento. É preciso ressaltar que os espíritos livres dos artistas fazem sua entrada na cena mundial. O mundo imaginal assegura a manutenção do querer viver societal e nos obriga a repensar a misteriosa relação que une o lugar, nós e o não lugar. Os artistas Floriano Romano e Gersony Silva estão entre aqueles que se ocupam de alargar a área de comportamento teórico à percepção das estruturas da vida prática e do cotidiano. Provocam o estar junto em características extáticas e o fenômeno do êxtase é despertado em seus procedimentos.
Cada fato, histórico ou cultural, está dotado de uma energia cinética que arranca o homem de seu espaço e o projeta no hiperespaço. Toda a obra é uma viagem, um trajeto que recorre a trajetórias interiores que a compõem, que constituem sua paisagem ou seu concerto musical. A arte abre um mundo, abre mundos possíveis. A relação obra e mundo é multiforme, cada obra dentro de sua compossibilidade revela aspectos da transmissão entre o pensado, o percebido e composto da coisidade e da mundanidade.