1. Introdução sobre Cecilia Paredes e a série “Paisajes”
Este escrito versa sobre a série “Paisajes”, da peruana Cecilia Paredes (Lima, 1950). A artista estudou Belas Artes na Universidade Católica de Lima, na Cambridge Arts and Crafts School (Inglaterra) e na Academia de Belas Artes (Roma). A partir de 1983 vivenciou um processo de adaptação como imigrante, pois precisou deixar o Peru, já que o jornal de sua família foi tomado pela guerrilha que assolava o país, indo residir na Costa Rica. Atualmente, vive e trabalha na Filadélfia. Sua obra artística é exposta em vários países, destacando-se participação nas bienais de Havana e Veneza. Logo, os deslocamentos estão presentes em sua vida e lhe dão subsídios para a criação.
A série “Paisajes”, considerada pela própria artista foto-performance, transita entre fotografia, pintura e performance. Seu processo se desenvolve mediante encobrimentos têxteis e pictóricos do corpo e face, pintados com os mesmos padrões de estampas usadas no plano de fundo da composição fotográfica (Figura 1). Tais estampas derivam de lugares pelos quais Cecilia Paredes transita, estando relacionadas a padrões vegetais de flores e/ou plantas, ou ainda a lugares que se perderam no tempo.
Para organizar uma cena, Paredes conta com a ajuda de assistentes, que a auxiliam na elaboração de pinturas sobre o seu próprio corpo, com a reprodução dos padrões dos tecidos utilizados como plano de fundo para as fotografias. Esse processo chega a durar sete horas. Há um cuidado para que cada elemento pintado sobre a pele se encaixe com os grafismos do tecido que a circunda. Isso demonstra uma vontade da artista de se mesclar às estampas, já que o corpo se confunde com o cenário têxtil, considerado “paisagem” por Cecilia Paredes. Logo, na série em questão, mediante encobrimentos, a artista se mistura aos padrões decorativos que a rodeiam e lhe afetam.
2. Mimetismos na série “Paisajes”: nulidade x adaptações humanas
Essa espécie de mistura ou fusão entre o corpo e os têxteis, operada por Paredes, poderia se relacionar com o conceito de camuflagem, estudado pelas Ciências Biológicas. No entanto, pensa-se que esse conceito não seria o mais apropriado para analisar a série “Paisajes”, por envolver a capacidade de alguns organismos de se tornarem imperceptíveis, mediante semelhança de suas formas físicas ou cromáticas com o meio, para passarem desapercebidos diante de um predador ou presa em potencial. Cecilia Paredes, por sua vez, deixa nas composições alguns elementos corporais expostos, tais como os cabelos (Figura 2) ou os olhos (Figura 3), o que torna perceptível a sua presença nas imagens e não imperceptível, como ocorre na camuflagem.
Nesse sentido, seus procedimentos podem ser aproximados à concepção de mimetismo, palavra derivada do termo grego "mimetés", que significa imitação. Essa expressão, originalmente empregada para se referir a pessoas, passa a ser usada em Biologia a partir do século XIX. É uma propriedade inerente a algumas espécies de seres vivos, que possuem cores ou formas do corpo parecidas às de outros, com o fim de obter benefícios, tais como uma presa se proteger de predadores, ou predadores terem mais facilidade no trabalho de caça ou de reprodução. Tudo isso ocorre em razão de alguns seres vivos possuírem atributos físicos como cores, formas, posturas e comportamentos que os facilitam enganar outros. Pela semelhança com os demais, apesar de serem vistos, acabam por ser ignorados e confundidos com espécies diferentes das suas. “[...] o mimetismo é perfeito quando o organismo consegue enganar qualquer outro como se fosse um animal que ele não é” (Teixeira, 2012:59). Assim, predadores chegam a perceber e a interagir com o animal ou o inseto mimetizado, detectando a sua presença, mas confundindo-o com outro; iludidos, portanto, por sua aparência muito similar a uma espécie diversa.
Nas fotografias de Paredes, observa-se um efeito semelhante, porque, a um primeiro olhar, corpo e rosto humanos quase desaparecem em meio à falsa “paisagem” que os circunda; porém, logo ressurgem, em razão de alguns elementos físicos permanecerem descobertos de tinta, tornando a presença da artista perceptível nas imagens, mas passível de confundir-nos.
Cecilia Paredes (2015), em vídeo sobre a exposição “Oyendo con los Ojos”, no qual dentre outras obras apresenta a série de fotografias “Paisajes”, considera o quase desaparecimento corporal, em sua obra, uma revelação sobre nossa nulidade enquanto sujeitos no contexto contemporâneo. A artista afirma que, em seu trabalho, trata da adaptação humana a ambientes e de mudanças que um ser humano pode sofrer a partir de forças externas, que não são dele. Cita como um dos exemplos atuais, as transformações ocasionadas pelas migrações, necessariamente forçadas, tendo em vista que ninguém opta por deixar sua casa, sua comida, seus amigos, suas paisagens, perdendo espaço em seu lugar de nascimento para obedecer a forças externas que lhes ameaçam a partir.
Observa-se que o desejo de ocultação por meio dos encobrimentos e de se fundir ao entorno pode ter relação com esta sensação momentânea de nulidade, referida pela artista, ou até mesmo de impotência frente a forças externas que nos atingem, independentemente de nossa vontade. Mas, o ressurgimento das formas corporais, dentre os encobrimentos a que se submete Cecilia Paredes, revela outra ideia, talvez contraditória à de anular o corpo ou dotá-lo de passividade: a capacidade de adaptação humana a outros lugares, a outros ambientes e a situações diversas e adversas. Nessa direção, o ressurgimento das formas anatômicas frente aos encobrimentos pode manifestar, em “Paisajes”, uma vontade de ressignificar o corpo humano, de trazê-lo a público por intermédio das imagens fotográficas, enfim, de resistir contra a sua nulidade, em uma sociedade que, ao estetizar o corpo feminino, tenta justamente objetificá-lo e anulá-lo.
Ao se ocultar e se manter praticamente inacessível ao olhar do espectador, na série em questão, Cecilia Paredes parece manter o corpo feminino numa espécie de “zona sagrada”, em sentido próximo à análise de Vesnin (2012), protegendo-o sob as tintas e os têxteis. Assim, os encobrimentos e mimetismos do corpo interessam em sua produção artística, na medida em que restaurem nossas percepções sobre ele, pois as formas físicas revelam-se, em seu trabalho (Figura 4), como um território repleto de sentidos e uma criação intimamente conectada ao ambiente circundante.
3. Resistindo contra a mesmidade do “eu”
Apesar de a série “Paisajes” de Cecilia Paredes possibilitar aproximações à concepção de mimetismo, advinda das Ciências Biológicas, tal concepção não se restringe à sua noção tradicional. Deleuze e Guattari (1995) julgam ser ruim a ideia de mimetismo vinculado à presença de um organismo mímico que se confunde com o ambiente no qual se encontra ou com outro ser vivo, por essa noção atribuir uma lógica binária a fenômenos naturais. Segundo os autores, esses fenômenos se dão de modo inteiramente distinto, visto que os seres vivos não têm a intenção de imitar as aparências de outros, e sim de pintar o mundo com suas cores, para tornarem-se imperceptíveis, a-significantes.
Na visão dos autores, os organismos não podem ser modelos um para o outro, nem se configurar como cópias um do outro, havendo devires de um no outro. Trata-se, portanto, da intercomunicação de organismos heterogêneos, que convivem ou se aniquilam, sem abandonar sua heterogeneidade. Dessa maneira, Deleuze e Guattari (1995) possibilitam pensar o fenômeno do mimetismo como um devir de se tornar outro, mesmo que momentaneamente.
Com base nesses autores, a série “Paisajes”, de Cecilia Paredes, é passível de ser apreciada como um modo de resistência contra a mesmidade do “eu”. O conceito de mesmidade é abordado por Ricoeur (1991), que o relaciona ao de “identidade-idem”, uma identidade absoluta, simultânea e igual. Trata-se da identidade de um indivíduo idêntico a si mesmo, imutável, contrariando a ideia de pluralidade, de “ipseidade”.
Na contracorrente da mesmidade do “eu”, considera-se que por meio dos mimetismos e encobrimentos, Cecilia Paredes constrói sua própria identificação com o ambiente, revelando outras possibilidades de “eus”, que transfiguram as padronizações e homogeneizações do sujeito contemporâneo, prestes a se adequar a padrões de comportamento socialmente aceitos e culturalmente codificados, bloqueadores da liberdade e da expressividade de cada indivíduo. Dessa forma, escapa da mesmidade do ser, ligada às aparências físicas e fisionômicas, ao recriar seu próprio corpo como componente da “paisagem”, promovendo uma possível simbiose entre o humano e a natureza, mesmo sendo ela uma natureza artificial e falsa, estampada e multiplicada em metros de tecido industrializado.
A artista reconfigura seu “eu” a partir desse contato com a alteridade. Isso porque, em sua produção, o que parece motivar-lhe são outros devires: um devir-paisagem, um devir-lugar, um devir quase imperceptível. Assim, evidencia-se, quem sabe, um desviar-se da mesmidade do “eu” para se fundir ao outro, abrindo-se a devires latentes que afastam o autorretrato da necessidade de exposição da fisionomia.
Conclusão
Como mencionado, o processo criativo da série “Paisajes”, de Cecilia Paredes, provavelmente é motivado por dados biográficos, tais como deslocamentos e processos de adaptação enquanto imigrante. Isso se reflete nos procedimentos adotados pela artista (encobrimentos de seu rosto e corpo e fusões desses com cenários têxteis), o que possibilita uma aproximação entre a série e a concepção de mimetismo, já que cores e formas pintadas ou sobrepostas ao físico se assemelham às estampas do plano de fundo da imagem, confundindo o sujeito com o ambiente que lhe rodeia. Esse processo, por um lado, pode manifestar a sensação de passividade humana, de nulidade e impotência de sujeitos que obedecem a forças externas às suas, aniquiladoras do corpo, o qual quase desaparece em meio ao entorno. Mas, por outro lado, pode funcionar como um modo de resistência, vislumbrando a capacidade humana de adaptação, de ressignificação de si e dos sentidos de um corpo, protegendo-o por meio dos ocultamentos pictóricos e têxteis, e também agenciando conexões entre corpo e ambiente circundante, integrando-os e tornando esse corpo parte atuante de uma totalidade, a qual passa a integrar. Assim, o ato de apropriar-se simbolicamente dos lugares e das coisas, incorporando-as à pele, pode desencadear processos de identificação com o entorno, com as porções do mundo onde a artista vive e habita, o que possibilita adaptar-se a ele.
Quando pensamos os mimetismos a partir da ótica de Deleuze e Guatarri (1995), que percebem o fenômeno do mimetismo como devir de um organismo se tornar outro, mesmo que momentaneamente, compreende-se que os mimetismos e encobrimentos operados por Cecilia Paredes na série “Paisajes” possibilitam uma abertura à alteridade e à ipseidade, resistindo contra a mesmidade do “eu” e reconfigurando-o a partir desse contato com a alteridade, que se dá nesse vir a ser outro, permitido pelos mimetismos e pelo contato inusitado entre o corpo e as estampas.