1. Um performer da Amazônia e seus rastros
Victor de La Rocque (1985 - Belém, Pará, Brasil) é um artista que traz a performance ao cerne de sua obra, com uma produção diversificada entre videos, fotografias, instalações, objetos e projetos para lugares específicos. É o corpo e as micropolíticas que engendram seus trabalhos. Tatuagens, marcas a ferro e fogo (branding) e música também ocupam espaço neste território, no desenho da história do artista múltiplo que também produziu e tocou na noite paraense. Irreverente e crítico desde os primeiros projetos, traz a reflexão sobre o sistema da arte e as intersubjetivações, demarcando o seu percurso com um olhar agudo para a vida. Formado em Artes Visuais pela Universidade da Amazônia (Belém) o artista tem participado de mostras, festivais e residências no Brasil e no exterior, tomando parte em projetos relevantes, como em edições do Projeto Arte Pará (MEP, Belém), como na de 2008 em que recebeu o grande prêmio; Caos e Efeito - Contra Pensamento Selvagem, 2011 (Itaú Cultural, SP); Performance Arte Brasil, 2011 (MAM, RJ); The Performance Arcade, 2011 (The Papa Museum, Nova Zelândia); Amazônia - Ciclos da modernidade, 2012 (CCBB, RJ); Amazônia: Lugar da Experiência, 2012 (MUFPA, Belém); Pororoca: a Amazônia no MAR, 2014 (MAR, RJ); Amazonian Video Art, 2016 (CCA Glasgow). Possui obras em acervos do MAR (Rio de Janeiro, RJ), MARGS (Porto Alegre, RS), Defibrillator Gallery (Chicago, EUA), Casa das Onze Janelas (Belém, PA), Museo Ex Teresa de Arte Actual (México, MX), Fundação Romulo Maiorana (Belém, PA) e Coleção Amazoniana de Arte da UFPA (Belém, PA).
Este artigo concentra-se na produção de Victor de La Rocque, dando foco ao projeto Gallus Sapiens e alguns de seus desdobramentos. Suas propostas se configuram a partir da percepção do tempo histórico, de como macro e micropolíticas afetam o desejo e possibilitam encarar o trauma violento da colonialidade por meio de performances e ações mínimas. Para além da análise dos vários momentos que compreendem o projeto, estabeleceremos diálogos com textos do próprio artista e de outros autores que se debruçaram a refletir sobre o corpus gallus e suas distensões, dentre eles Fletcher (2015), Frey (2015) e Herkenhoff (2014).
2. A aparição do gallus sapiens
O projeto Gallus Sapiens Parte 01 aparece no 13o Salão Unama de Pequenos Formatos (2007), certame dedicado a trabalhos de dimensões reduzidas em formato ou em tempo de ações e vídeos. Consistiu na operação de levar para a abertura da mostra um galo e uma galinha vestidos com trajes de gala (Figura 1). Ali os animais transitaram soltos entre convidados. Questionador sobre o universo da arte e seus jogos, o artista deflagra o pensamento que se aprofundará ao longo de diversas proposições, amplificando o trabalho a partir da ideia de “galiformidade”.
Podemos perceber uma atenção aos jogos sociais estabelecidos no fluxo das relações presentes no território da arte, os valores atribuídos às condutas, às reproduções comportamentais, às forças coloniais recorrentes e normalizadoras de práticas. Tudo parece estar contido ali, naquele casal de galináceos vestidos para a festa em um salão de pequenos formatos. Entre as esferas das macro e das micropolíticas o artista nos convida a perceber relações indissociáveis presentes no carrossel das artes.
Já no ano seguinte, no 27o Salão Arte Pará (2008) o artista desdobra o projeto no Gallus Sapiens Parte 02, estruturado em três momentos performativos, que acontecem em etapas, em pontos significativos da cidade.
Ampliando este corpo, para além do simples ato de vestir-se, procurando estabelecer um corpo comum constituído pela soma desses duas espécimes. Nessa busca, encontra-se uma das potências do trabalho no momento em que o artista olha para a vida e quer identificar até onde nossa animalidade chega. A metáfora do “Gallus Sapiens” afeta por nos retirar dos papéis de conforto e nos colocar frente a frente com o estranho, com aquilo que não conseguimos dar conta. O artista, tal qual uma entidade de um culto ancestral, se coloca diante de símbolos de poder da cidade e os observa. O cansaço, a sofreguidão parecem dar lugar a um estado alterado de consciência nesse misturar de corpo vivo e corpo que morre em pontos estratégicos da cidade - Entroncamento, Cidade Velha e Avenida Presidente Vargas - locais escolhidos para as três ações que compreendem a proposição: “Glória Aleluia e a Mão de Deus”; “Come, Ainda Tens Tempo” e “Entre os Meus e os Seus”. (Maneschy, 2008:45).
“Glória Aleluia e a Mão de Deus” (Figura 2) aconteceu no Memorial da Cabanagem, obra de Oscar Niemeyer localizada no Complexo Viário do Entroncamento. Neste ponto nevrálgico na entrada / saída da cidade de Belém foi erguido, em 1985, o monumento com 15 metros de altura e 20 metros de comprimento, em memória da insurreição popular que se opôs ao governo regencial e que constituiu um governo republicano e abolicionista no século XIX, sintonizada com ideários iluministas. Esta revolução brasileira pôs em circulação cobres remarcados - empregando carimbos sobre as moedas, no caso o carimbo do Pará -, fortalecendo a legitimidade do governo revolucionário.
Foi nesse lugar simbólico e cheio de memórias que o artista realizou seu primeiro movimento, subindo a mão estilizada que compõe a construção. Ali, quando alguns dos galos amarrados ao seu corpo soltaram-se no processo, foram capturados por sem-teto que dormiam sob a obra do famoso arquiteto brasileiro, para aplacar a fome. A crítica social de La Rocque nos aponta, quase dois séculos depois da Cabanagem, é a de que os excluídos sociais que habitam aglomerados nas cercanias do memorial padecem das mesmas circunstâncias de vulnerabilidade tal qual os indígenas, negros e mestiços que ocupavam amontoados as cabanas que denominaram a revolução. O título de sua performance ainda faz alusão ao louvor religioso e nos remete às pregações de pastores evangélicos neopentecostais que se apresentavam, aos berros, em uma praça nos arredores. O local também conta com um imenso templo da Igreja Universal em suas proximidades. Há um questionamento sobre as complexas relações estabelecidas pelas estruturas da sociedade e suas implicações na constituição das subjetividades.
No segundo movimento da performance, “Come, Ainda Tens Tempo”, o artista dirige-se ao prédio do Museu do Estado do Pará - MEP, 1994, localizado no Palácio Lauro Sodré, antigo Palácio dos Governadores (Figura 3), antes sede do Estado do Grão-Pará e Maranhão, construção de 1771, do período Pombalino no Brasil. O edifício, uma obra do arquiteto italiano Antônio Landi que viria a ser moradia e palácio governamental, é símbolo politico e arquitetônico por sua elaboração erudita iluminista, um marco da monumentalidade arquitetônica do período nessa capital. Esse ambiente que seria um dos palcos para várias reviravoltas políticas é onde funciona o MEP e ocorre a mostra principal do Projeto Arte Pará, o mais longevo projeto de arte da região norte do Brasil.
Ali, o gallus sapiens de Victor de La Rocque apareceu durante o vernissage de abertura do salão. Dessa vez, o artista vagou pelo entorno, posicionou-se nas proximidades da entrada do museu, tencionando a dimensão de seu saber-do-corpo diante da construção portentosa do prédio secular. Outros confrontos estão em jogo. Novamente ocorre o embate silencioso desse ser diante das instâncias políticas. Enquanto a abertura da exposição acontecia, com a exibição de uma pluralidade de linguagens artísticas pelos salões do museu e os comensais serviam-se ávidos no coquetel que se sucedia no átrio do palácio, o artista posiciona-se do lado de fora ressoando a potência de vida em seu “saber eco-etológico”. A professora universitária, psicanalista, curadora, crítica de arte e da cultura Suely Rolnik irá expandir o pensamento sobre esse saber que amplia a subjetividade do sujeito, deste “saber-corpo”, “saber-do-vivo”, na composição e recomposição de nossos corpos e experiências:
Diferentemente da comunicação, o meio de relação com o outro nessa esfera de ressonância intensiva, na qual não há distinção entre sujeito cognoscente e objeto exterior, como é o caso na experiência do sujeito. Na experiência subjetiva fora-do-sujeito, o outro vive efetivamente em nosso corpo, por meio dos afetos: efeito de sua presença em nós. Tais efeitos se dão na condição de viventes que ambos compartilham e que faz deles um só corpo. Ao se introduzirem em nosso corpo, as forças do mundo compõem-se com as forças que o animam e, nesse encontro, o fecundam. Geram-se assim embriões de outros mundos em estado virtual, os quais nos produzem uma sensação de estranhamento. (Rolnik, 2018:111).
É esse corpo-vivo do artista que opera um outro saber, nessa fricção de corpos - humano e não-humano - enlaçados no estranhamento de uma experiência extrapessoal e extrasensorial em que seu corpo e os dos galináceos constituem-se em um re-corpo extrassensorial que potencializa as temporalidades presentes nos ambientes atravessados pelo gallus sapiens. As tensões presentes e os devires desestabilizam os territórios em seus desígnios institucionalizados. O mal-estar propiciado pelo gallus sapiens é convite à desterritorialização e ao desejo.
Tal qual uma entidade de algum culto afroindígena, sua passagem por lugares-símbolos de poder belemenses (o Monumento à Cabanagem, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer; a fachada do Museu Histórico do Pará, local de ocorrência do Salão Arte Pará; e a Avenida Presidente Vargas, situada na área comercial da cidade), vestida por vinte galinhas vivas compradas em feiras locais (algumas dessas galinhas morriam no processo da ação), fez-nos insinuar estados de consciência alienados e alienantes, visto este ser criado pelo artista perambular, estranhamente, entre o cansaço, a sofreguidão e o clamor silencioso por uma ajuda ausente. (Fletcher & Chaves, 2015:7).
Se no primeiro movimento ao ascender a “mão” desenhada por Niemeyer o artista simula a busca de uma elevação/salvação simbólica que não virá, neste segundo movimento é a fome e o desejo que deflagram as dinâmicas da operação e levam o gallus sapiens ao salão de arte, campo estratégico de negociações, arranjos, eleições e modos vigentes da arte.
A afetação nas dinâmicas relacionais ocasionada pela proposição do artista, que irrompe no espaço público ao deslocar-se pela urbe em seu corpo alterado, gera um estranhamento para o observador. Em um país que traz suas feridas abertas advindas da colonialidade, complexas conexões são deflagradas pela construção estética da proposição em que galinhas caipiras de cores diversas foram empregadas, das acastanhadas de penas vermelhas na primeira ação, às brancas na segunda e as galinhas carijó (penas salpicada de manchas pretas e brancas) no ato número três.
No terceiro fluxo empreendido, La Rocque atravessou a Avenida Presidente Vargas, onde alguns edifícios demarcam momentos de distintos ciclos de modernidade que ocorreram na Amazônia. Evidências erguidas enquanto frutos de projetos desenvolvimentistas para a região entre os século XIX e XX. Ali, famílias abastadas experienciaram uma vida de metrópole, em que o privado e a vida social coexistiam lado a lado. Ao longo do bulevar encontramos desde a Associação Comercial, passando pelo moderno Hotel Central e a sede social do clube Assembléia Paraense, símbolo da burguesia local, passando ao largo da Praça da República, o Teatro da Paz, o Cinema Olímpia - o mais antigo em funcionamento no país -, o Instituto de Educação do Estado do Pará e o Edifício Manuel Pinto da Silva, que se manteve ao longo de décadas sendo o mais alto prédio da cidade (26 andares), dentre outras construções marcantes do modernismo da Metrópole da Amazônia. Hoje a via ainda mantém alguma beleza com seu túnel de mangueiras centenárias, mas alguns de seus prédios estão abandonados e o glamour dantes reside boa parte nos prédios históricos, já que as calçadas dividem-se entre camelôs, pedintes e transeuntes apressados bem diferentes dos flanêurs do passado. Foi ali que o gallus ativou “Entre os Meus e os Seus” (Figura 4), terceira fase do ciclo em que o mergulho na multidão não facultou o anonimato, ao contrário, foi o risco, o imprevisto o estranhamento máximo que sua travessia pode suscitar.
Para o artista, curador e editor Tales Frey o confronto promovido pela obra de La Rocque opera na fricção do corpo resignificado do artista com a urbe:
um parâmetro que podemos melhor distinguir o nosso próprio corpo com relação ao do outro - seja o real e virtual em confronto, a massa tangível diante do seu espectro ou o “eu” em contraposição direta com o “outro” - e, sendo assim, é mediante à sociedade que podemos esclarecer também quem de fa(c)to nós somos e, talvez, seja justamente este o motivo que tenha feito Victor de La Rocque buscar, com veemência, o ambiente público para proliferar grande parte do seu discurso visual e, a partir dele, introjetar experiências para si em sua arte, a qual de forma alguma descarta uma legítima vivência. Claro, a experiência acaba por ser recíproca, porque o seu corpo destacado na multidão também é referencial para os outros corpos que ali se analisam quando ponderam o artista em sua performance. Nesse sentido, o trabalho funciona como um estudo antropológico num contexto específico escolhido, levando em conta o espaço e quem o habita, tal qual fazia Flávio de Carvalho com suas chamadas “experiências” realizadas até o início da segunda metade do século XX. Tanto no trabalho de Flávio de Carvalho como no de Victor de La Rocque, o artista e o observador são interpelados concomitantemente por uma determinada situação. (...) fundiam vários corpos em um único corpo híbrido, metamorfoseando um homem em animal e vice-versa, o que está completamente claro no título da ação Gallus Sapiens parte 2 (2008-2011). Nessa variante, o artista veste-se unicamente com as galinhas sem utilizar qualquer outro indumento sobre o seu corpo. (Frey, 2015:1)
Diante dessas ações que articulam o projeto, observamos a travessia, o deslocar do sujeito em um percurso estético-político no confronto com a cidade, suas memórias, em um embate decolonial. Se para alguns o terceiro ato de ir para uma das vias mais importantes do centro da cidade finaliza esse ciclo depois de buscar alguma “redenção” na “mão de deus” e buscar credibilidade no museu, ali, entre aplausos e indiferenças, ele potencializou a ilusão de uma possível purga, mas que não vem, como não veio a redenção. Após as três performances, uma videoinstalação (Figura 5) foi exibida no Arte Pará. Lá, galo e homem aparecem para, logo em seguida, vermos o gallus sapiens em seu percurso pela cidade.
Ao refletir sobre o projeto de La Rocque a artista Luciana Magno tratará sobre a dimensão do humano e nossa animalidade presente nas ações:
Em todas uma mesma cena se repetia ganhando contextos diferentes conforme o local onde eram performadas: galinhas eram amarradas ao seu corpo nu até que estivesse todo coberto e uma cena grotesca emergia: “O home galinha”, como chamavam nas ruas. Ele não canta nenhuma canção de ninar enquanto caminha com seu corpo frustrado de galinha que não pensa e por isso não se envergonha da sua condição insipiente de bicho.
Como Ícaro, ele agrega asas a si, não na intencionalidade do vôo alto para o infinito e além, mas no ato do homem que se sabe humano e não Deus. Em gesto ininterrupto ao pensamento suas asas não são derretidas, mas despetaladas pela gravidade que lhe lembra a todo custo o peso do corpo de homem que se é e por mais que se deseje não ser, não há longo período para a negação.
A gravidade mata esse corpo de galinha durante a execução da performance a morte agregada ao corpo do homem fica para sempre como memória. Ela, a gravidade, é impiedosa perante a realidade coletiva, aquela a qual somos o tempo inteiro berlinda de pedidos e acusações. A mesma que nos puxa do útero materno, que torna a queda inevitável. A vida, sem mistificações. (Magno, 2011:4-5).
A performance foi realizada posteriormente em outras cidades do país até ser interditada judicialmente no Festival Performance Arte Brasil, no recorte curatorial de artistas do norte do Brasil feita por mim. La Rocque, a curadora geral do projeto, Daniela Labra, bem como eu mesmo recebemos ameaças tanto pelas redes sociais, quanto no dia previsto para a realização da performance, por parte de ativistas, que irromperam no museu onde o festival acontecia. Retaliações já vinham ocorrendo a partir de sua apresentação em Belém e foram se adensando. Com a multa imposta para o caso da performance ser executada, a curadora geral cancelou a ação, também preocupada com a segurança das pessoas presentes diante dos gritos raivosos dos militantes. Todavia, um debate denso tomou lugar no museu, bem como a ação de compartilhar de um frango assado servido com farofa, resultando em um video que desdobra as questões do trabalho.
O que estava em jogo ali era a grande metáfora que De La Rocque propõe com seu Gallus Sapiens. O artista, ao pensar esse sujeito Gallus, não só trata da descartabilidade das relações ou do consumo desenfreado de bens, alimentos etc., sugere uma geografia, um percurso, em torno da própria condição humana. Com a performance De La Rocque ativa um estranhamento acerca do que é esse outro corpo. Gallus Sapiens tem vários momentos enquanto projeto, não se detém apenas nas ações em que o artista performa na cidade ligado as aves, com esse corpo medium entre ele e um outro, nesse corpo- ave, que não entende, que não voa, mas apresenta um pensamento sobre o que vimos constituindo em nossas relações de intimidade, em nossas construções no mundo, e suscita uma reflexão sobre o “arrastar” que o ser humano realiza ao longo da vida, tal qual as aves atadas a seu corpo. Que vida é esta que constituímos? O Gallus Sapiens nos convida a compreender o outro, a tentar nos colocar no lugar do outro, e perceber que a vida é risco e diferença, e que necessitamos constituir territórios para a experiência de enxergar o mundo de maneira diferente, reinventando-o, transformando-o, mesmo que na vacuidade de pequenas ações, como na obra O Ovo e a Galinha (Figura 6), apresentada na edição de 2010 do Salão Arte Pará (Prêmio Aquisição), que consiste em dispor um ovo fecundado em uma chocadeira, ampliando o Projeto Gallus Sapiens, ao ativar a potência da arte e da vida com o questionamento: “o que veio primeiro, o ovo ou a galinha?”. (Maneschy, 2011:40).
O artista irá abordar a luta, o fracasso, os embates humanos, demasiadamente humanos, entre momentos de alegria, sofreguidão, entrega e dor. As pulsões se manifestam nesse corpo aos pedaços, re-corpo que se reconstitui a cada embate com a vida. Selvagem, amazônida, destemido, que lança-se em vôo impossível, para tentar... planar sobre os olhares dos juízes. Galináceos não voam... Atravessa o Brasil, vai performar junto com o grupo Corpos Informáticos em Brasília... Oferece suas asas ao público, máscara, escudo de proteção, que só revela o olhar quando está protegido por um terno (Figura 7 e Figura 8). “Coloco-me então como homem-chulo que se envergonha de sua condição obscena e parasitária, a fuga vertiginosa é a única saída. Eis o significado do processo da galiformidade.” (La Rocque, 2018).
Todas essas experiências sobre o sujeito, apontam para estratégias de invenção de outras formas de existência, reativas sim, que buscam operar sinais de alerta, ativar a ampliação de sentidos, por meio de um estado de alteridade em um corpo resignificado.
O Corpo animal entra em cena como dobra à anatomia humana pela abertura literal produzida pelo abate. O degolar das cabeças e o momento-cone.(Figura 9 e Figura 10). É por isso do fracasso instaurado através de ficções e realidades ordinárias, num movimento que implica a aquisição de formas flexíveis do corpo na linguagem. Em L’animalité, Dominique Lestel explica que a animalidade é um espaço de sentido entre o homem e o animal, antes mesmo que ele se constitua como um espaço físico ou geográfico. (La Rocque, 2018:3)
Se no personagem de Frankestein o corpo morto ganha a vida e na mística judaica o Golem é o ser artificial feito a partir de material inanimado, na metáfora de La Rocque é a fricção de corpos vivos que ativa o desejo alquímico de um corpo comum, pulsante e crítico frente aos lugares da história, mesmo que partes desprendam-se, mesmo que partes morram... Vivo, demasiadamente vivo, mesmo diante do iminente fim, certo a todos. De La Rocque nos alerta para a potência que nos ativa diariamente para seguir adiante, para dar mais um passo, fazer mais uma tentativa, salto no vazio..., bater as asas..., por vezes proteger-se com elas. Sobreviver! Germinar ovos em O Ovo e a Galinha, pôr-se à toda prova e oferecer o corpo pronto para degola no Momento-Cone. Victor fez isso na arte, faz na vida. Entre tantos estranhamentos aciona em nós um reconhecimento do familiar da luta de todes nós em país que sucumbe às artimanhas do neoliberalismo, que ceifa as artes, a vida, o Brasil.
O cocoricó do gallus sapiens é um brado de uma terra que queima, sangra aos pedaços desde muito tempo. Nos convida para a não-neutralidade diante de todas as violências que nos são imputadas por todas as colonialidades que não conseguimos extirpar, mergulhados que estamos nas garras mais violentas do capitalismo neoliberal. É necessário violentar a violência (Herkenhoff, 2014:15) e não negociar o inegociável (Rolnik, 2018:197)
O gallus sapiens não pretende impedir a catástrofe. Talvez acionar uma perspectiva diferenciada de corpo e de tempo para exigências da existência das quais não podemos nos alienar. Ao adensar o projeto Gallus Sapiens, há uma tentativa do artista de por meio desse outro, duplo, uno, mestiço, frustrado mas que não desiste mesmo com o corpo entregue próximo da lâmina que está pronta. De de cabeça para baixo, no cone de abate, o artista parece nos lembrar que nesta condição em que os critérios de moralidade já não são percebidos, a resistência persiste no combate insistente em suas veias, na insubordinação presente no abusado cocoricó, para além de toda a lógica daquele que tenta entender o que veio primeiro. Talvez gallus sapiens ao falar de tudo isso nos conclame à reinvenção, a torcermos o corpo, tentarmos o vôo, e a “pegar sua contemporaneidade com a vida” (Agamben, 2009: 60). Quem sabe ali esteja a pista para desanestesiar a existência frente ao presente e, mesmo estando com o corpo desmantelado imerso em tanta “bandalha”, seja possível encarar as rinhas da galiformidade sapiente.