Não posso produzir um trabalho e ser apenas uma observadora, interesso-me por lugares, reais ou fictícios que impulsionam minhas próprias utopias. (Romy Pocztaruk, 2014:58)
Desde sua própria natureza silenciosa e reflexiva, Romy irradia, em seu trabalho artístico, dos mais vigorosos ímpetos da intervenção, através de distintas formas. Estas assumem vértices marcantes na sua produção de arte, e veem-se crescentes, com o tempo, em suas numerosas criações. No entanto, esses ápices acabam por se entremear em seus fluxos transversais e interconectados. São como sinalizações, que decorrem da sua aguçada percepção sobre a degradação irreversível do mundo, este intensamente fragmentado, em meio a surpreendentes violências políticas, sociais e culturais. Mas também ela vê emergir profundas crises e extinções ecológicas, biológicas e mnemônicas. Romy, desde tempos mais remotos de sua produção, manifesta viver a experiência da decomposição do tempo e do espaço e sabe, tal como Bruno Latour expressou há algum tempo que “as coisas têm mudado tão rapidamente que se tornou difícil acompanhá-las.” (Latour, 2011:143)
A impetuosa aceleração e os deslocamentos desses quadros espaço-temporais, conhecidos na história recente, nas geografias humanas e territoriais, na arte e, em particular na memória, apontam à perda da nitidez de fronteiras, à imprevisibilidade do passado, presente e futuro, aos sentimentos ambivalentes das perdas, aos desenraizamentos culturais e, muito em especial, aos ocultamentos de incontáveis fatos e produções vinculadas à memória cultural e histórica. São os que eclodem hoje vivamente em muitos dos trabalhos de arte, impulsionados a delatar conflitos de poder e as subterrâneas políticas da memória que afloram, marcantes, na constituição de grande parte da produção contemporânea da arte.
Romy Pocztaruk se vê imersa nessa atmosfera, repleta de encruzilhadas em suas incessantes leituras do mundo; seu trabalho explode em diferentes manifestações perceptíveis por acentuada nostalgia, nesse momento, de índole retrospectiva. Ela traz à luz muito do que fora abandonado e esquecido, como parques de diversões do passado alemão em guerra, em uma produção de imagens e vídeos envoltos em uma misteriosa névoa esbranquiçada, quase invisível, como os do Kulturpark Plänterwald Berlim, a partir de conhecimentos seus sobre o Holocausto (2010) (Figura 1).
Seria como se este recurso fotográfico trouxesse, a partir da imprecisão dos fatos no tempo, o seu olvidamento sobre a mais dura verdade da guerra, do poder, das discriminações e extermínios, enfim, tudo o que merece, na perspectiva da artista, ser eternamente lembrado. Esse ato nos leva a recuperar o pensamento de Freud (Freud, in: Huyssen: 2000, p. 18), quando ele aponta que “o esquecimento é uma forma de memória escondida”. Historicamente, esses parques haviam sido de diversão no passado, com suas elegantes rodas-gigantes, gangorras e balanços. Durante longo tempo, ficaram entregues à atmosfera da ausência mais absoluta, a um profundo vazio, ao descaso social e expunham a perda da consciência histórica, por seus lamentáveis apagamentos da vida alemã de outrora, quando alegravam tantas crianças, jovens e mesmo adultos.
Nostalgia significa falta, um fato amargo e constantemente presente na produção de Romy. Segundo estudiosos, este sentimento traz profunda ansiedade, o doloroso sentimento da derrota humana. A artista, imersa nessa angústia, busca obsessivamente intervir, nutrida por um extremo vigor crítico, associado à nostalgia, ao denunciar à visibilidade pública as imagens do passado e tudo o que elas representam, aquilo que a história, inúmeras vezes, tentou e tenta obscurecer. Arriscar em provas mais exigentes causadas pelo sofrimento retrospectivo das lembranças traumáticas, ao trazê-las ao presente é percorrer dos trajetos mais difíceis perante a própria história, como refere Isabelle Stengers (Stengers, 2013: 5); é intervir, pelo máximo de potência possível em relação ao mundo devastado da atualidade. Essas atitudes são fortemente incorporadas pela artista em seu trabalho, sempre envolvidas em sua criação e em relação ao mundo. Elas se tornam testemunhas irrefutáveis desse clima de desamparo e de ruína aparentes nesse parque, em particular em sua roda-gigante. Além disso, a artista obtém fotografias das torres que apontam ao topo da “Montanha do Diabo” (Teufelsberg), em uma região de Berlim onde se encontra soterrada uma escola de formação técnica militar, construída pelos nazistas, hoje totalmente aterrada sob escombros recobertos por terra e árvores. Esse encobrimento diz respeito a um apagamento da época de formação dos soldados do III º Reich no próprio território alemão, porém tem-se convicção absoluta que a geografia jamais mentirá sobre a existência desse ocultamento (Figura 2).
As obras de fotos e vídeos, intituladas Traumberg, expõem as referidas imagens quase apagadas, ao denotarem o desvanecimento da memória daqueles lugares. Expressam fundamentalmente o quanto é árduo enxergá-las com clareza, assim como ao lembrá-las por suas remissões, talvez se tornem ainda mais difíceis revivê-las. Elas se situam para a artista como a sinalização das provas que Stengers evoca em relação à eclosão de catástrofes, assim como para Romy são as do Holocausto. A referida atmosfera densa, dilatada de pesar, se expande para ela de modo progressivo. Essas ruínas acabam por predizerem um futuro que se refere ao nosso presente desastroso, mas que se originam em um passado nefasto. Certamente elas recairão, em seu devir, na mesma calamidade vivida hoje. As ruínas, mesmo em sua decadência, de alguma maneira nos sobreviverão (cf. Dillon, 2011:11) (Figura 3).
O estado de espírito nostálgico de Romy acaba por se tornar aos poucos, cada vez mais crítico. Do estado da falta, da ansiedade e das inseguranças face ao futuro, projeta-se uma revolta embutida contra a convulsão histórica, em um desejo latente de obliterar seu curso. Ambos sentimentos, nostalgia e crítica se agregam em suas transversalidades, agora não mais apenas referentes ao tempo, mas tornam-se também simultaneamente espaciais. Nesse sentido, a pergunta central que se enuncia neste trabalho, é formulada juntamente com a indagação de Andreas Huyssen (Huyssen, 2000, op. cit.), quando ele interroga se esse lugar-comum universal da história traumática não teria migrado para outros contextos não relacionados.
A interrogação que o autor alemão levanta, veio a reforçar a que aqui se propõe, pois abre um problema fundamental vivido por Romy em seu processo de criação, valioso para os estudos da memória e da arte em tempos atuais. Tempo e espaço são categorias que se veem “intimamente entrelaçadas entre si, porém de maneiras complexas” (Huyssen, 2000: 10).
A dúvida deste estudioso (sobre a migração da história traumática universal para outros contextos não relacionados), implica em sua natural compreensão de outras geografias e culturas. Diversos estudiosos também se dedicam a repensar esta questão, que acaba por se tornar crucial nas ações da artista, movida, em permanência, por suas obsessivas investigações em outros espaços do globo e, a partir delas, em suas novas leituras do mundo, sempre relacionais. Nesse sentido, sabe-se que a história não se desenvolve somente no tempo, mas também no espaço. E seu entrelaçamento, mencionado acima por Huyssen, também é enfatizado por Schlögel (Schlögel, 2007:13), por Soja (Soja, 1989:4) e por Massey (2015), entre outros pesquisadores dedicados a estudar essas relações. E Soja aponta ainda que o espaço, mais que o tempo, nos encobre os fatos, pois estes escondem as relações de poder e a inocência espacial na vida social.
Em época semelhante à de seus trabalhos sobre as ruínas de Berlim, Romy busca, em meio ao seu incessante nomadismo, deslocar-se a contextos diversos, tais como os da China, Bolívia, Espanha, Islândia e Estados Unidos. Suas obras em Berlim, a partir de sua inserção em uma história europeia, fundada no conhecido clima eurocêntrico e convulsivo das duas grandes guerras, sempre se tornam um modo de fazer o passado se manifestar no presente, nutrido de culpas e de nostalgia. Esta foi a sua meta capital naquele momento, constituindo-se em uma intervenção acentuadamente crítica sobre o que restou: ruínas espraiadas pelos territórios e mares, destruições, acusações de amnésia sobre os dramáticos fatos ocorridos e o aumento explosivo do esquecimento. O Holocausto, um acontecimento histórico de linguagem universal, pôde, nos percursos de Romy, pouco tempo depois, ampliar-se à distante Amazônia, dotada de um contexto cultural muito diverso, no extremo norte do Brasil, às margens do Rio Tapajós, no Pará. Levou-a a se confrontar com circunstâncias locais, que, em certos aspectos poderiam evocar o drama europeu das guerras, porém o fato histórico eurocêntrico não é relacionado com as causas locais do dramático acontecimento às margens do Tapajós; não são migrações que ocorrem daquele contexto universal da 2ª guerra mundial, mas podem ser abordadas como uma possível metáfora em certos atos, voltados a outras histórias, contextos e memórias (Figura 4).
Ambos episódios emergiram fortes na arte de Romy, ao identificar ela, nos dois fenômenos históricos marcados por buscas obstinadas pelo poder, uma pelo domínio da Europa e na defesa implacável da pureza racial ariana; a outra, pelo triunfo econômico extraordinário, no desejo de construir um Novo Brasil, o da Fordlândia, através da exploração desumana dos nativos e de terras da região do Amazonas, para o cultivo e extração da borracha. Foi um projeto idealizado e implementado em 1928 por um dos industriais de maior reconhecimento no mundo, o norte-americano Henry Ford, dedicado à indústria automobilística e de pneumáticos.
Pocztaruk, ao se defrontar com esta abandonada “Cidade Maldita” (Cf. Grandin: 2020), excluída da história, coloca em xeque, movida por seu mais agudo sendo crítico, a identidade política contida naqueles lugares. Na opressão dos trabalhadores discriminados que ali viviam contratados, sem quase nada receber, também presente no interior de suas moradias que restaram, em seus últimos objetos e aparelhos arruinados, emergem os vestígios marcantes dos ocultamentos da sua história e da sua memória. Fordlândia é encontrada pela artista povoada de ruínas, em meio às dramáticas imagens da decadência e do absoluto abandono geopolítico (Figura 5).
Edificada como uma cidade-modelo (1928), hoje ela expõe apenas a destruição de suas escolas, igreja, hospital, ruas pavimentadas, parques, piscinas, cinemas, padaria. Trazem o clima denso da perda desoladora das fantasias de outrora, transformadas nas mais dolorosas desilusões posteriores, no trágico desmanche de tantos de seus sonhos prometidos à população, esperançosos de uma vida melhor, idealizada para ser inserida no rico ciclo de progresso do mundo capitalista moderno.
O projeto de Henry Ford fracassou após 17 anos de tentativas frustradas e os trabalhadores se viram totalmente abandonados com suas famílias, entregues à sua própria sorte, à extrema solidão e à obliteração da ideia de futuro. Assim, a nostalgia que igualmente reina no mundo contemporâneo, ali se encontrava intensamente presente.
A catástrofe deste cenário devastador faz emergir, em Pocztaruk, seu mais ardente repúdio. Em sua memória proliferam, quase instantaneamente, associações com a nefasta história do Holocausto, onde também foram experienciados, com forte angústia, o abuso desmesurado do poder, as insaciáveis discriminações, muitas desigualdades sociais, assim como os extermínios de multidões.
Um pouco mais distante das experiências de desgosto de Berlim, o conhecimento da tragédia de Fordlândia levaram-na a conceber um trabalho que oferecia a ampliada nostalgia que naquele lugar exalava e que vivenciou, ao ser arrebatada pela transversalidade da crítica. Em uma autoconsciência sobre a necessidade de se aproximar, mais profundamente, das questões da alteridade, Romy extravasa seu arrojo crítico que incidiu de modo muito sensível em seu processo de seu trabalho (Figura 6).
Nesta perspectiva, este traz uma dinâmica visivelmente diversa das captações de locais e de efeitos das imagens de Berlim, ao mascararem estas, sua nitidez como alusões aos esquecimentos da memória. Neste momento de agora, o processo busca diretamente o contato com o outro, o conhecimento vivo das comunidades e das histórias ocorridas e narradas por indivíduos que ainda vivem ou de seus descendentes que recordam fatos. Em uma ótica transdisciplinar, a artista coleta, de modo obsessivo, narrações repletas de curiosidades e surpresas da parte dos que ainda vivem, ou seus descendentes dos malditos dias de Ford; ela fotografa numerosos ambientes e objetos, vasculha sem trégua documentos, coleta filmes, livros e fotografias referentes à história da Fordlândia e de seus habitantes, em uma rede discursiva que coloca em xeque, com alto rigor de repulsa as ações de Ford e de suas equipes (Figura 7).
Sua vigorosa intervenção, nessas produções abre-se em dois veios: um deles, tal como em Berlim, expõem com sentido de denúncia, a memória do passado daqueles espaços e tempos, como uma reação aos atos de um “esquecimento intencional e do esquecimento cultural violento”, como lembra Harriet Flower(Flower, 2006:XX). Pelo outro veio, Romy intervém, a partir do seu próprio processo de criação entre as comunidades e, nesse aspecto, este trabalho difere da proposta de Berlim. A ação de Romy, em meio aos moradores de Fordlândia, ao conversar e interagir com eles, ao conhecer suas ideias e sentimentos, ao entrar em suas moradias e examinar todas as fotografias guardadas, são fatos que ficam embutidos no resultado final. São uma intervenção política da artista, de importância fundamental à constituição do corpo criativo das suas obras. Podem ser compreendidas, até mesmo como diria Hal Foster, como uma forma primária de site-specific na arte de Romy Pocztaruk. Sua autoridade sobre o próprio local e sujeitos reduz-se em suas trocas dialógicas com esses habitantes da cidade (Figura 8).
Os trabalhos resultam em inúmeras fotografias por ela selecionadas, reveladas em grandes dimensões que mostram, não apenas ambientes, mas realçam a atmosfera de sua solidão e do tempo que dali se esvaiu. As paredes cobrem-se de inúmeras fotografias de família, de entes queridos, de muitos amigos. Mas também ali se encontram referências ao futebol, a jogos e equipes, às taças para premiações, a flores artificiais comuns naqueles tempos em terras tão áridas como à margens do rio Tapajós. As mobílias da época, que igualmente aparecem nas imagens, algumas se veem preservadas, outras sob desgaste, assim como os aparelhos de televisão, ventiladores, barbeadores, entre outros. Em quase todos os interiores, a presença de pinturas da estrada Transamazônica e a evocação do nome de Ford ocupam lugares de destaque nesses espaços e apontam o subterrâneo dos espaços do poder norte-americano pela construção de um Novo Brasil, camuflados, como apontou Edward Soja, em meio à inocência social (Figura 9).
Mesmo que se encontre uma sugestão metafórica de aproximações entre uma história traumática, universal e eurocêntrica, como a que envolveu os trabalhos de Romy em Berlim, não se considera ter havido qualquer migração para a criação da artista em Fordlândia. Compreendemos serem duas culturas absolutamente distantes, com objetivos diversos, inseridos em contextos culturais, artísticos e históricos realmente muito distanciados.
O pensamento das ruínas de Berlim evidencia um tipo de modernismo, em uma concepção universal. Por outro lado, Romy, ao se dedicar a um foco específico em terras ao norte do Brasil, lida com uma modernidade alternativa, nunca binária, pois transita em um complexo de relações.
A artista parte de uma concepção ampliada de mundo e da geografia, ao conceber maneiras geográficas para compreendê-lo, em sua extraordinária transformação.
Com isso ela abre caminhos artísticos inovadores, igualmente para abordar a memória na arte, seus apagamentos históricos e culturais, em suas perspectivas e relações multifocais.