1. Sobre a mesa, uma proposta
Sobre a mesa, a proposta: uma visão em direção aos corpos, apropriados por uma dança que os renova no ritmo da intensidade, no brilho de uma respiração interior. Sobre a mesa, uma proposta de ilusão, de uma expansão estética que se acerca das subjetividades, em renovada e constante sedução (Almozara, 2017). A criatividade da arte pode ser ardilosa, sedutora, e humedece as superfícies, as tintas, as matérias de expressão.
O que se adivinha é uma expansão plástica, sensorial, das artes visuais, uma reconciliação com os corpos (Rekalde Izagirre, 2018; Escuder Viruete, 2017). De significantes, os corpos são agora significados. As sensações agarram-se às superfícies, agora vivas (Brächer, 2015).
2. Convocar sem metafísica
Mas não é uma ilusão: a materialidade das cerdas, dos materiais, é assertiva e afirma-se com uma tranquilidade sem metafísica (Fernández Fariña, 2010; Gomes, 2014). A materialidade da arte repousa em si mesma, enquanto convoca a contemplação, o toque, a demora, a sua própria apresentação em si mesma (Corona, 2019; Cirilo, 2012). A matéria resgata-se a si mesma, apenas por se manter em exposição, ou pronta para esse momento (Marques, 2017; Martin de Madrid, 2020; Grando, 2016).
A materialidade é substancial, ocorre na presença potencial de uma receção (Prieto, 2013, 2018). Os corpos são convocados para uma presença feita de calor e de respiração, aqui e agora. As alternativas são experimentáveis e também esquecíveis, na possibilidade da reprodução (Ortuño Mengual, 2012; Paquete, Fernandes-Marcos & Bastos, 2021).
3. Encontro do autor ausente
A exposição pode então ser um encontro aguardado de há muito, encontro do autor, que pode até estar desaparecido, ausente, já morto, com novos leitores, espectadores, públicos (Salvatori, 2016). O objeto reativa-se tranquilamente, como um gato semiadormecido aguarda o seu redor, com uma sabedoria de gerações. A arte vive nas proximidades, e pede a tranquilidade da existência, o carinho da guarda, o silêncio do acervo.
O curador é hoje o novo espectador (Silva & Melim, 2020).
4. Quinze artigos na Revista Estúdio
As obras como que sabem do seu destino real ou futuro, com a sabedoria do silêncio, e aguardam, numa concretização reificada e tranquila (Serra, 2008; Maneschy, 2018). Assim também os artistas olham as obras de outros artistas, como neste número 34 da Revista Estúdio, e os quinze artigos aqui reunidos.
Margarida Penetra Prieto (Portugal), no artigo “Rui Macedo e o jogo do 'faz-de-conta'” debruça se sobre uma exposição do pintor português Rui Macedo (n. Évora, Portugal, 1975) que esteve patente no Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa, em 2019, especificamente uma das instalações propostas explorando o conceito de camuflagem e de faz-de-conta. Na sequência de outras propostas do artista que se apoderam dos acervos de museus e galerias de exposições internacionais, também aqui Rui Macedo parte das obras e dos contextos para instalar superfícies e objetos pintados segundo uma técnica de trompe l’oeil. Surgem encostados às salas e escadarias do museu pinturas embrulhadas ou alternativas das mesmas pinturas a pare de paredes rústicas em tijolo e cimento, inteiras, aguardando trabalhos aparentemente em curso. Todas são pinturas de Rui Macedo. É assim uma proposta de inquietação e de metalinguagem, em que a pintura simula o seu próprio invólucro, ou embalagem, em trânsito.
No artigo “Mauro Trastoy y la complicidad con el material” Sara Coleman (Espanha) analisa os processos do artista Mauro Trastoy (n. 1971) licenciado pela Universidade de Salamanca. as suas obras em arame ou serapilheira propõe uma reflexão sobre a intermediação entre o orgânico e o químico, entre o humano e o tecnológico. Os fluxos entrecruzam-se em ritmos de estrutura e de repetição, revisitando as realidades têxteis. É uma proposta de infinito e de expressão material. São “quadros para pentear” feitos de corda de cânhamo, discutindo o ato de fazer, escutando as possibilidades estruturais de uma revisitação da arte ao universo têxtil.
No artigo “Por una reflexión social: el poder de lo gráfico y lo reivindicativo en las (video)construcciones performáticas e instalativas de Manuel Casellas,” Ramon Blanco-Barrera apresenta a sua reflexão sobre a obra do artista sevilhano Manuel Casellas (n. 1979). Artista hoje radicado no país basco, recorre a trituradoras ou a palavras agrupadas em filas de fósforos, que se destroem, enquanto funcionam ou ardem, ou trituram curricula de candidatos a emprego, por exemplo.
Marta Negre Busó, no artigo “Àngels Viladomiu, Flores y plantas: la naturaleza como tema de exploración artística” apresenta a obra da escultora Àngels Viladomiu (n. 1961, Barcelona) incidindo sobre a sua exploração temática. Os eixos em torno da ecologia, do território, das ciências naturais e sociais são abordados dentro desta proposta artística de natureza interdisciplinar. As árvores, estabelecem pontos de partida para Àngels, as suas “Dendrografías (mapas foliformes),” os “projetos botânicos,” a “Botânica Radical,” ou o livro de artista “Plantes Rares,” o projeto “híbrid contemporani,” ou ainda “Herbarium nigrum,” pontuam a criação em torno deste tema ao longos das décadas do século XXI.
Berio Molina Quiroga, no artigo “As técnicas de escapismo na obra de Alejandra Pombo,” apresenta a obra desta última artista nascida em Santiago Compostela em 1979. Nas suas fotografias e filmes, Alejandra Pombo representa-se através de desdobramentos e sobreposições, camuflagens e inserções estranhas. Propõe, no seu “Curso de escapismo,” já em 2004 quando apresenta na Fundação de Serralves (Porto) a peça ¿Y ahora qué?, propondo a sua metodologia: fazer ações e intervenções a partir de um manual de escapismo criado coletivamente para cada ocasião. As operações desdobram-se em espaços vagos, buscando tensão, desequilíbrio, queda, passeio, desaparecimento, sobrevivência.
Daniela F. Pinheiro, Teresa Almeida & Domingos Loureiro, no artigo “Interações Dialógicas no processo artístico de Cláudia Amandi: o Eu e os Eus-Outros” abordam a obra em desenho da artista portuense Cláudia Amandi (n. 1968). Desde a prática modular dos seus “desenhos vazios,” a tinta-da-china, explora-se a processualidade do “porvir” potencializando as suas construções no sentido da configuração e do esquema, implicando uma relação dialógica entre o passado e o presente imediato.
Elena Mendizabal Egialde, no artigo “June Crespo: Cuerpo atravesado” aborda a escultora basca June Crespo (n. Irun. Pamplona, Espanha, 1984). Inserindo-a numa nova geração da escultura basca, com artistas como Elena Aitzkoa Reinoso, Oier Iruretagoiena, Sandra Cuesta o Clau dia Rebeca Lorenzo. Partindo do uso de moldes, busca-se uma beleza estranha, cruzada de corpos e de texturas, amplificando-se a fragmentação e a justaposição. A massa do betão contraria o seu calor orgânico, reeditando uma disciplina visual de sujeição subtil, entre o solo, a mesa e a arquitetura.
No artigo “Bethielle Kupstaitis e a cegueira: reflexões sobre uma prática plástica” Eduardo Vieira da Cunha debruça-se sobre esta artista brasileira, natural de Pelotas, Rio Grande do Sul (n. 1976). Bethiele Kupstaitis formula “uma cegueira como teoria,” proposta de cegueira vidente para uma série de fotografias e objetos que se debruçam sobre a invisi bilidade. As ações de cobrir, adicionar, enterrar são apresentadas suas sequências em que o assunto é uma espécie de escurecimento.
No artigo “Marcello Grassmann: poética da linha no desenho e na calcogravura” Claudio Luiz Garcia apresenta a obra deste gravador desaparecido recentemente. Marcello Grassmann (São Simão, Brasil, 1925-São Paulo, 2013) introduziu inovações na gravura em metal e ácido, numa busca inovadora de expressividade gráfica que vai além da repetição dos métodos tradicionais. Através da interferência com detergentes e isolantes, Marcello Grassmann consegue iluminar a gestualidade do desenho nos materiais de gravura a água-tinta.
Silvia Helena Cardoso, no artigo “Sérgio Muniz, Roda e Outras Estórias” apresenta o cineasta brasileiro Sérgio Muniz (n. Santos, Brasil 1935), e o seu primeiro documentário “Roda e Outras Estórias,” de 1965, no contexto do Novo Cinema Documentário brasileiro, na senda de Glauber Rocha (1939-1981).
No artigo “Habitus para um corpo possível: Caminhar com os objetos-roupa de Martha Araújo” Susana Maria Pires aborda os penetráveis de Martha Araújo (n. Maceó, Brasil, 1943). Produzidos nos anos 80, como a série “Hábito/Habitante” (1982-1985) neles o público era convocado a vestir a obra. A performance interroga a experiência da roupa na sua relação com a habitação ou com os corpos.
No artigo “Pontes para ti: a delicadeza de Incorpos” Joedy Bamonte debruça-se sobre a obra de Susana Pires (n. Évora, Portugal, 1980). Artista na área da arte têxtil, Susana Pires apresentou obras implicadoras pela sua fisicalidade expandinda. Os “abraçatórios” (2004-2010), ou o mais recente “incorpo,” propõem uma extensão de um abraço sem peso e sem tempo.
No artigo “A Pintura Mitológica de Carlos Reis: Arte, História e Nacionalismo entre a Monarquia e a 1ª República” Maria José Coelho debruça-se sobre a obra do pintor naturalista Carlos Reis (Portugal, 1863-1940). Artista vibrante, intérprete da vegetação e dos horizontes portugueses de grande intensidade, reivindicando a herança ar livrista de Silva Porto, e inovando na presença assertiva da sua cor e arrojada composição.
Sabina Couto, no artigo “Do refúgio na Natureza à criação do Museu Ecológico e Artístico Frans Krajcberg” aborda a obra de Frans Krajcberg (Polónia, Kozienice, 1921 - Brasil, 2017). Especificamente, o Sítio Natura, construído em 1966 pelo autor, na Mata Atlântica, no sul da Bahia. É um projeto ambicioso de um Museu Ecológico para a preservação e pedagogia.
No artigo “As paisagens cariocas de Augusto Herkenhoff: da reinvenção à incogruência” Almerinda da Silva Lopes reflete sobre a série de pin turas “Paisagens Cariocas,” de Augusto Herkenhoff (n. Espírito Santo, Brasil, 1965). Os motivos florais, como em “Superflowers,” e as paisagens oníricas, como em “paisagens cariocas” são apropriadas pelo artista para uma submersão material e plástica feita de um cromatismo tropical e aceso, proposta para uma sensualidade exuberante em busca de uma geografia estética plasmada no olhar.
5. Desafio: Manter a intensidade e amar a arte
O desafio reunido neste conjunto de artigos, é manter a intensidade de amar a arte (Felinto & Silva, 2020).
Vimos que a materialidade da arte é serena e sábia: que ela aguarda a visita. Mas também sabemos que a arte esta próxima, do amor, muito próxima. Que o estatuto dos que a olham, contemplam, se aproxima do estatuto dos amantes. A arte quer ser vista, visitada, sentida, transida. Ou de outro modo, queremos ver, sentir, visitar, amar, a arte dando-lhe assim novos sentidos, ou recuperando antigas sabedorias. Pode ser esta uma estética da materialidade adormecida, expectante, sequiosa. Pode ser esta a síntese de uma relação que une emoções, vivências, com artefactos tão raros e únicos como estes objetos frágeis.