Introdução
Este artigo é sobre o trabalho de pintura do artista Rui Macedo (1975) que foi instalado, em 2019, no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado (MNAC), em Lisboa, no seio da colecção exposta. Rui Macedo é um artista internacional que se foca essencialmente na pintura e tem uma vertente da sua produção pictórica dedicada à instalação em Museus e em colecções musealizadas. Com um inventário interessante de exposições em instituições desta ordem, podem-se salientar as que foram realizadas para o Museu de Évora (Nimium ne credere colori) em 2010, para o Instituto Valenciano de Arte Moderna (La totalidad imposible) em 2011, para o Museu de Grão Vasco (Caleidoscópio) em 2012, para o Museu Nacional de Artes Decorativas de Madrid (Un cuerpo extraño) em 2013, para o Palácio do Catete e Galeria do Lago do Museu da República do Rio de Janeiro (Mnemosyne); para o Museu Nacional do Conjunto Cultural da República em Brasília (Replay), o Museu de Arte Contemporânea - Niterói (In Situ: Carta de Intenções) em 2015, para o Museu Nacional Machado de Castro (Avesso da Norma) em 2016 e, mais recentemente, para a Tabacalera de Madrid (Sfumato) em 2019-2020. Foi várias vezes bolseiro da Fundação Calouste de Gulbenkian que o apoio em vários destes projectos.
Rui Macedo vive e trabalha em Lisboa e a sua formação académica inclui um doutoramento na área das Belas-artes, onde investiga profundamente as intervenções em espaços museológicas que têm sido concebidas ao longo do século XX. A sua investigação neste domínio tem sido também um programa de trabalho artístico. A obra deste artista português investiga as potencialidades da pintura instalada (site-specific), decorrendo da especificidade dos espaços onde se mostra ao público.
1. Um projecto desafiante
Na proposta realizada para o MNAC, o artista apresenta sete grupos instalativos de pintura, unidos por critérios sempre diferentes, cujo denominador comum é a camuflagem. O título da exposição (in) dispensável ou a pintura que inquieta a colecção do museu é já uma leitura crítica sobre a necessidade de trazer novidade e dinâmica expositiva às colecções musealizadas estáveis, uma necessidade que é apoiada institucionalmente no sentido de tornar a oferta cultural dos museus interessante para uma revisitação.
O MNAC institui-se num edifício de estrutura pombalina. Alterado nos anos 90 para melhor dar a ver colecção e melhorar a sua função, demonstra uma descaracterização que é mais evidente nos espaços herdados recentemente, a saber: o complexo arquitectónico que desenha um quarteirão no centro histórico da cidade e que partilha edifícios e instituições outras, com funções distintas e espaços comunicantes. No Museu há um único circuito de visita liderado por critérios temporais e historicistas que exibem a colecção dedicada à arte portuguesa mostrando essencialmente pintura, escultura e desenho.
Todas as instalações do artista vêm inquietar o museu e estão ancoradas a peças da colecção. Relacionam-se ora com épocas, ora com artistas, ora com obras escolhidas, articulando modos diversos de se integrarem na visita, sempre camufladamente. Algumas das estratégias repetem métodos testados em exposições anteriores deste artista. Contudo, desta vez - e de cada vez - a sensação é sempre de novidade, de estar a ver como se da primeira vez. O jogo que o move é o “faz-de-conta”: faz-de-conta que esta obra é antiga, faz-de-conta que está ainda embalada, faz-de-conta que foi feita por outro artista, faz-de-conta que foi esquecida, faz-de-conta que nem sequer é pintura.
2. Faz-de-conta que esta pintura é antiga
No seu jogo de camuflagem, Rui Macedo procura conceber uma exposição para se mostrar dentro de outra, pré-existente, e com o objectivo de se integrar, sem apagar protagonismos pré-estabelecidos, sem mexer no posicionamento das obras expostas, ou seja, interferindo o mínimo no espaço arquitectónico (a evitar furar paredes, alterar iluminação ou deslocar obras expostas) e explorando, assim, soluções menos convencionais para mostrar pintura. Orientada por este princípio, a camuflagem manifesta-se pela integração de obra contemporânea que é estranha ao museu e ao contexto da sua fundação, mas que com ele interage através do diálogo com as outras pinturas lá expostas, mimando, em pastiche, um fazer - um pintar - como noutros tempos.
Numa das instalações, as obras eleitas são da autoria do pintor Columbano Bordalo Pinheiro e a parede escolhida para integrar as pinturas gémeas de Rui Macedo (Figura 1) que lidam com duas obras daquele artista e como o espaço vazio existente entre elas, como num jogo de encaixe. Neste processo de integração, mimam-se as molduras (douradas) e os temas: “a chávena de chá” (pintura de 1881) e “a luva cinzenta” (pintura de 1898) são actualizados para “a garrafa de plástico portátil” e “as luvas de borracha da limpeza doméstica”. Esta actualização dos elementos que tematizam as pinturas musealizadas não é desprovida de humor nem de sentido crítico. Por outro lado, o modo como as molduras se entrelaçam para originar uma única peça é uma estratégia que pensa a pintura com formatos menos convencionais: as shaped canvas. Se esta estratégia é tão antiga como a pintura adossada à arquitectura, num conjunto independente é mais inusual e são os artistas do século XX que a exploram num território de teste à Pintura como disciplina - o questionamento do limite é um tema clássico daquele século.
3. Faz-de-conta que a pintura está embalada
De um modo subtil, as shaped canvas são assimiladas na instalação da Pinturas-embalagem (Figura 2, Figura 3 e Figura 4). Trata-se de vários momentos de intervenção no Museu onde o artista coloca, no chão e encostadas à parede, pinturas que se assemelham a embalagens (pouco) técnicas de obras de arte, umas vezes isoladas, outras em aglomerados. Para criar um efeito de ilusão, o artista cria reentrâncias laterais no suporte rectangular de cada pintura, onde a representação pintada de fita-colas coincide. Esta estratégia só é possível porque o suporte é de madeira. A acentuar o efeito de embalagem são representadas micas coladas com informação referente a um possível conteúdo, destinatário e remetente. Em cada uma destas pinturas há uma pequena cópia de outras obras - obras de artistas que poderiam estar representados no museu ou obras de artistas que estão representados no museu mas pertencem a outras colecções. Propõem, no seu conjunto, a ficção sugestiva de uma exposição nova, com obras emprestadas e provenientes de outras instituições (Figura 2). Este ficcionar de um possibilidade expositiva que se enquadra na perfeição num panorama de calendarização do museu, vem acentuar a pertinência destas embalagens no museu mas, dado que estão pousadas no chão, mostram uma exposição por vir (em montagem) ou talvez a sair (em desmontagem), assegurando a dinâmica de um museu que actualiza a sua oferta permanentemente. Para o visitante inusual do museu, o encontro com estas instalações de Pinturas-embalagem, cujo posicionamento adere à lógica das peças expostas (por afinidade de autores, cronologia e tema) provoca a sensação de um museu que se está a reformular enquanto os visitantes circulam.
No seu texto sobre a potência dos posicionamentos específicos da pintura, Rui Macedo afirma:
A especificidade do posicionamento do objecto pictórico no espaço expositivo (no final da parede, lateralmente, junto ao chão ou rente ao tecto) é determinante e fundamental para sugestionar (...), acentuado pela representação concordante: o lugar dentro da composição pictórica (na ocupação do rectângulo pré estabelecido como suporte propriamente pictórico) e o lugar da instalação da pintura, no espaço propriamente expositivo, reforçam-se num acordo mútuo que visa desestabilizar as convenções museológicas e, a partir delas, o observador (Macedo, 2012:47).
Esta consciência de um acordo formal e conceptual entre a obra que se instala e o espaço (e colecção) que a acolhe é absolutamente estrutural para a eficácia das exposições de Rui Macedo. Ao longo da sua investigação é possível aferir como este critério assegura, também, uma diversidade de opções estéticas e estratégicas de interagir com a pintura em situações e contextos extremamente diversificados.
Em todos os exemplos (Figura 2, Figura 3 e Figura 4), as pinturas, isoladas ou em conjuntos, foram posicionadas atrás de um plinto e próximas de outras pinturas (da colecção do museu). O cuidado de utilizar uma imagem de referência, de sugerir um conteúdo para a embalagem através dessa imagem pintada, reforça a ficção de uma exposição que os visitantes perderam (já passada ou, ainda, por vir). Pela pertinência do seu posicionamento, as embalagens parecem próximas do lugar onde as pinturas que protegem poderiam ter sido (ou vão estar) expostas e estão semi-escondidas (atrás de plintos, próximo dos cantos da sala) num exercício de “gato escondido com o rabo de fora” que é sugestivo de uma obra em trânsito - uma obra que está de passagem pelo museu. Todas estas pistas são percepcionadas através de imensas subtilezas que imitam a vida. É nesta relação com uma possibilidade real que a camuflagem se torna eficaz como estratégia.
A referência a outros artista, a continua citação das suas obras, é igualmente uma das estratégias a que Rui Macedo recorre com frequência, sobretudo nos projectos isolados (ou seja, em exposições desvinculadas de colecções e de espaços museológicos). Contudo, nesta exposição, a citação tem um papel fundamental para a ancoragem de todas as instalações propostas.
Faz-de-conta que a pintura foi feita por outro artista
Na instalação onde Rui Macedo homenageia o pintor Jorge Pinheiro, cada uma das pinturas do conjunto faz referência a um trabalho distinto, como se afere nos próprios títulos das obras do artista (Figura 5). Trata-se de um conjunto pictórico inesperado que se inicia no canto de uma parede e vai subindo até ao tecto numa linha obliqua e, nesse movimento, assimila uma pintura exposta do próprio Jorge Pinheiro. É um exercício cheio de humor onde se questiona quem é o autor e, se não fossem as tabelas do museu, esta dúvida - inteiramente legítima - seria difícil de esclarecer in loco. Neste conjunto de shaped canvas, a segunda obra a contar de baixo é a de Jorge Pinheiro - e o raciocínio para a identificar é simples: é a única que está alinhada com as restantes obras da colecção exposta, respeitando o seu posicionamento convencional (o centro está à altura do olhar, a metro e meio do solo). A assimilação desta obra recupera e actualiza o conceito da “pintura dentro da pintura” estendendo-o à instalação, tal como é concebida por Rui Macedo, e o respeito pelas tabelas museológicas impede que se trate de um acto de canibalismo. Pelo contrário, a integridade da identificação das obras dos outros artistas é sempre ponto de honra e, numa época em que os direitos de autor são tão discutidos e ameaçados com a possibilidade do plágio digital, os métodos de exposição de Rui Macedo são uma lição sobre como fazer citações, alusões, apropriações dentro do que é consentido e regulado.
Ainda a propósito das shaped canvas, as cinco pinturas desta instalação (Figura 5) têm a particularidade de remeter para os balões de dialogo da banda desenhada e estão todos virados para o mesmo lado, acentuando a linha oblíqua que desenham na parede e um sentido de pertença e inter-relação formal de todas as peças, embora as suas imagens (as representações) se distingam e remetam, por sua vez, para obras muito diferentes na temática, na expressão e no suporte.
Faz-de-conta que a pintura foi esquecida
Na instalação da pintura intitulada Você está aqui... (Figura 6), Rui Macedo interage com um conjunto de paisagens do século XIX e XX. Neste conjunto de paisagens, a pintura musealisada eleita para o diálogo directo é da autoria de Artur Loureiro (1853-1932) e intitula-se Paisagem Auvers-sur-Oise. Nesta pintura é visível uma paisagem rural onde, no centro da composição, está representado o pintor (uma auto-representação) no seu cavalete fazendo desta imagem uma referência às práticas au plein air comuns na época (veja-se a escola de Barbizon).
A terceira pintura comentada é uma paisagem de Artur Loureiro realizada em França e que contém, minúscula no seu centro, uma possível auto-representação do pintor no acto de pintar frente à natureza e fora do atelier, numa situação que poderíamos entender como um tardio manifesto da pintura de ar livre. O pintor apenas pretende testemunhar que esteve ali, sozinho, minúsculo, mergulhado na possível imensidade da natureza, homem pequeno num vasto mar de paisagem e pintura (Porfírio, 2019:45).
A obra de Rui Macedo copia ao mesmo tempo que altera a composição da pintura original, e de dois modos: primeiro, pela cor e, segundo, pela introdução de um elemento geométrico no exacto ponto onde estaria a representação do pintor. A primeira alteração, sendo uma alteração cromática, transporta para os exercícios explorados no século XIX e inícios do século XX onde se analisa, através da pintura, os efeitos da luz no espaço natural. A segunda alteração remete para o GPS contemporâneo, substituindo uma figura por um símbolo indicativo que o título reforça: vocês está aqui, indicação de posição exacta - o topos dentro de um locus. Há ainda uma terceira alteração que se manifesta não na composição, mas no objecto pictórico: a rotação acompanhada pelo posicionamento junto ao chão e apoiado por dois paralelepípedos de espuma. Virar a imagem “de pernas para o ar” é colocá-la no território da abstracção pois, justamente o seu reconhecimento deixa de ser imediato e óbvio (embora esta estratégia seja particularmente eficaz com retratos, não deixa de ter o seu efeito com as restantes imagens). Ligeiramente deslocada de um eixo vertical que a colocaria como um quase reflexo - a imagem invertida - relativamente à pintura de Artur Loureiro, esta obra de Rui Macedo simula também que espera ser integrada na linha ritmada de obras expostas. É o rigor da posição da pintura de Rui Macedo dentro do museu e na relação com as obras expostas que abre a hipóteses ficcionais e, por isso, o conceito site-specific é absolutamente estrutural e estruturante a estas instalações.
O conceito in situ ou site-specific permite especificar o posicionamento das pinturas pela exigência de um sentido de pertença relativamente ao lugar da sua instalação. (Releva-se deste sentido de pertença para integrar sem conflito, ou seja, sem confronto com as decisões museológicas que definem as pré-existências - a coleção exposta e o modo como e onde se expõe) (Macedo, 2017:24).
Faz-de-conta que nem sequer é pintura
Nas últimas grandes exposições de Rui Macedo, a saber: (in) dispensável ou a pintura que inquieta a colecção do museu no MNAC em Lisboa e Sfumato na Tabacalera, em Madrid (Macedo, 2019) existe uma obra que é o contraponto de todas as outras. Na exposição no MNAC, as duas grandes pinturas intituladas Pintura-muro #1 (Figura 8) e Pintura-muro#2 (Figura 7) exemplificam exactamente este contraponto com as restantes instalações da exposição. Estas duas obras são um exercício de pintura ilusionista - a sua representação mostra-nos pedaços de muro em construção. Posicionam-se no grande átrio classicista de acesso ao Museu, uma escadaria de grande imponência pela escala monumental e pelos materiais nobres com que está construída. Se toda a exposição tem uma recepção controversa, quer pela instituição que a acolhe, quer por alguns visitantes que, enganados pelo efeito de camuflagem, procuram as pinturas de Rui Macedo sem as encontrar e ficam perturbados por um Museu “pouco arrumado”, então estas pinturas-muro acentuam esse estranhamento. Rui Macedo, corajosamente, assume uma posição crítica perante as instituições e no, seu programa criativo, demonstra um olhar que difere do esperado.
A única salvação do que é diferente é ser diferente até o fim, com todo o valor, todo o vigor e toda a rija impassibilidade; tomar as atitudes que ninguém toma e usar os meios de que ninguém usa; não ceder a pressões, nem aos afagos, nem às ternuras, nem aos rancores; ser ele; não quebrar as leis eternas, as não-escritas, ante a lei passageira ou os caprichos do momento; no fim de todas as batalhas - batalhas para os outros, não para ele, que as percebe - há-de provocar o respeito e dominar as lembranças; teve a coragem de ser cão entre as ovelhas; nunca baliu; e elas um dia hão-de reconhecer que foi ele o mais forte e as soube em qualquer tempo defender dos ataques dos lobos (Silva, 1990:8).
Rui Macedo é um artista lidera algumas das mais interessantes instalações na actualidade, tomando a pintura como uma prática e disciplina e, contra um certo espírito do tempo que privilegia as linguagens digitais em detrimento das linguagens clássicas, arriscando pela diferença e pela resistência com propostas muito desafiantes.
Uma das duas Pinturas-muro faz, ainda, uma homenagem a Carlos Correia (1975-2018), artista, pintor e amigo de Rui Macedo. Não é por acaso que a imagem de um muro de tijolo, em construção, remete para um jovem artista que faleceu enquanto edificava o seu projecto de trabalho. A imagem simbólica desta parede potência imensas interpretações e conjecturas sobre a relação com a morte prematura de um jovem artista. Por outro lado, o espaço monumental desta entrada do Museu, mostra-se como um acesso nobre, iluminado através de uma enorme clarabóia que deixa entrar uma linda luz zenital, que, por sua vez, reverbera nas paredes brancas e na pedra marmoreada e nos dois patamares que ostentam, cada um, uma destas pinturas. Há um efeito de estranheza ao encontrar estas duas pinturas neste espaço: reenviam para o inacabado, mostram a crueza dos materiais de construção actuais (o tijolo, o cimento) e a sua fragilidade na fina espessura dos tijolos, por comparação às grossas paredes pombalinas. Evidenciam a monumentalidade, a historicidade, o cariz patrimonial do edifício, mas também apontam para a necessidade do seu restauro.
Conclusão
As instalações de Rui Macedo que se organizam no MNAC para, em conjunto, darem a ver (...) A pintura que inquieta a colecção do Museu, concretizam uma visão artística diferente, atenta e desafiadora. A experiência de visita ao museu fica transformada de um modo tão subtil e tão crítico que nem sempre os visitantes estão conscientes da exposição em diálogo, tal a sua camuflagem. Rui Macedo compreende que saber fazer - saber pintar - potencia ideias e se este saber é articulado com um pensamento sobre o lugar, sobre a pertinência de agir em colecções estáveis (e, por vezes, aborrecidas) abre-se um caminho na relação do passado com o presente, na actualização dos museus, da cultura e da história, numa lição pedagógica.