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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.12 no.34 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

 

Artigos originais

Interações Dialógicas no Processo Artístico de Cláudia Amandi: o Eu e os Eus-Outros

Dialogic Interactions in the Artistic Process of Cláudia Amandi: the Self and its I-Positions

Daniela F. Pinheiro1  2  3 

Teresa Almeida1  2 

Domingos Loureiro1 

1 Universidade do Porto, Faculdade de Belas-Artes. Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Av. Rodrigues de Freitas 265, 4049-021 Porto, Portugal. dloureiro@fba.up.pt

2 Unidade de Investigação, Vidro e Cerâmica para as Artes, VICARTE, FCT/UNL. Campus da Caparica 2829-516 Caparica, Portugal. talmeida@fba.up.pt

3 Doutoranda em Artes Plásticas e Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia Ministério da Educação e Ciência de Portugal. Portugal. E-mail: pinheiro.daniela@hotmail.com


Resumo

Este artigo procura abordar o movimento ambivalente e imprevisível que muitas das vezes dá conta da atividade artística e do processo criativo de um autor. Aproximamo-nos, por isso, da atividade artística de Cláudia Amandi e dos seus processos operativos, que induzem uma regularidade formal e sistemática, para explorar e analisar em que termos ocorrem pequenos desfasamentos e alteridades, no espaço de uma inscrição repetitiva. Numa aproximação à teoria do self dialógico e ao discurso polifónico de Bakhtin, analisamos o processo da criação artística a partir de um movimento oscilante entre a implementação reiterada e concreta de um conjunto de indicações processuais e a abertura dialógica que se fomenta pela imprevisibilidade circunstancial do acontecimento.

Palavras-chave: repetição; desenho; processo artístico; ideia; dialogismo

Abstract

This article intends to approach the ambivalent and unpredictable movement that often accounts for the artistic activity, as well as the creative process of an author. Therefore, Cláudia Amandi’s artistic activity will be approached within her operative processes that explain a formal and systematic regularity, to explore and analyze in which terms small derivations and alterities occur, regarding the space of a repetitive inscription. In an approximation to the self-dialogic theory and to the polyphonic discourse of Bakhtin, the process of artistic creation will be analyzed. Through an oscillating movement between the reiterated and concrete implementation of a set of procedural indications and the dialogical openness which fosters itself across the circumstantial unpredictability of the event.

Keywords: repetition; drawing; artistic process; idea; dialogism

Introdução

Perante as exigências criativas e imagéticas que regem o contexto contemporâneo, interrogamo-nos sobre a necessidade intrínseca que leva um artista a fazer uso de estratégias repetitivas, persistentes e regulares a fim de impulsionar, no seio da sua atividade, percursos deveras distintos, singulares e, de certo modo, imprevisíveis. Lançamo-nos, por isso, no processo artístico de Cláudia Amandi (n.1968), a partir de uma aproximação ao carácter flutuante e transitório das ideias e às ambivalências autorais que ressaltam no decorrer da sua atividade criativa, através de um discurso polifónico do self (Bakhtin, 2013; Hermans, 2001).

Natural do Porto e com formação em Escultura (1993), pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, Cláudia Amandi vira-se, por volta de 2006, para o campo operativo do desenho a fim de explorar a repetição como princípio do processo criativo, através da inscrição sucessiva de um signo ou de um gesto, aparentemente padronizado e inócuo, sobre múltiplas folhas de papel. Apesar do desenho, ter integrado desde cedo o seu processo de trabalho, como meio para esboçar e registar as suas demais ideias para o espaço tridimensional, este movimento repetitivo leva-nos a abordar a sua prática artística a partir de dois posicionamentos interpessoais aparentemente divergentes. Consideramos, por isso, que a artista se movimenta, no espaço da sua criação artística, entre um “Eu que explora e procura”, no intuito de reordenar e definir um percurso operativo, e um “Eu perseverante e atento” que implementa e desenvolve o registo em causa. Assim, numa primeira análise reflexiva, sobre a sua obra “Desenhos Vazios”, acabamos por considerar que, enquanto função operativa e metodológica, a repetição revela uma dinâmica diferencial e plurivalente, que conduz - numa análise comparativa entre elementos - à perceção de pequenos desfasamentos formais que a vão reconduzindo num decurso criativo, de certo modo, imprevisível. Entre avanços e recuos, certezas e ambiguidades, compromissos e desfasamentos, próprios do desenvolvimento processual, Cláudia Amandi vai reestruturando e confirmando paulatinamente cada uma das suas propostas artísticas ao longo do fazer, num compromisso atento, simultaneamente, focalizado e aberto (Kastrup, 2016). No decorrer deste processo, as suas demais experiências, estratégias e indicações processuais vão-se afetando e condicionando mutuamente numa rede exponencial de relações, que se vai personificando no espaço concreto da sua Parede de Trabalho. A partir de uma aproximação ao discurso polifónico de Bakhtin (1895-1975) e à Teoria do Self Dialógico (Hermans, 2001), abordamos, consequentemente, a sua Parede de Trabalho como um espaço de pesquisa e deambulação que acompanha e explana um enredo polifónico entre as diferentes I-Positions que a artista possa ir tomando no decurso laboratorial das suas ideias e das suas propostas artísticas. Procuramos, essencialmente, nesta abordagem a Cláudia Amandi, analisar e realçar a dimensão do self dialógico que abraça o processo de criação artística de um autor, não só aquando a formulação de ideias, mas também nos percursos mais incertos e ambivalentes que uma ação aparentemente programática, regular e repetitiva possa ir promovendo no decurso de uma atividade artística autoral.

1. Entre a regra e a exceção: a repetição enquanto ação im-previsível

Perante a necessidade de se voltar a comprometer com o ato de criar em Arte, Cláudia Amandi vira-se, em 2006, para a realização de um conjunto modelar de pequenos e rápidos desenhos a tinta da china, intitulados “Desenhos Vazios”. Como o próprio título indica cada um destes desenhos apresentava um carácter inócuo que apenas pretendia responder à necessidade intrínseca, que urgia, em se ocupar durante um preciso e determinado período de tempo à execução de uma proposta artística autoral. Num tempo que lhe parecia escapar entre os afazeres e os compromissos sociais e familiares, Cláudia Amandi abraça o fazer destes desenhos como uma obrigação autoimposta, de si para si, de modo a preservar o engajamento com a prática artística que ansiava, de todo, não perder.

(…) não conseguia ter tempo para trabalhar dentro do desenho, ou de outra área. E, aquilo, estava a fazer-me muita confusão porque parecia que todas as outras coisas tomavam conta do meu tempo (…) e, então, nessa altura, eu comecei a fazer uns desenhos (…) que me obrigava a fazer mecanicamente, um desenho por dia, durante poucos minutos (Amandi, 2021, 3:25-4:00).

Num diálogo intrínseco entre os condicionamentos externos e as suas intenções enquanto autora, Cláudia Amandi passou a dedicar cerca de vinte minutos diários ao ato de desenhar, inscrevendo de forma automática e mecânica pequenas marcas verticais no espaço circunscrito de uma folha de papel. Com um único marcador de um negro opaco e sintético, a artista ia registando, durante esse curto espaço-tempo, de forma consecutiva e aleatória vários traços verticais, até os mesmos se dissolverem numa nuvem condensada e dispersa de sinestesias visuais (Figura 1).

Figura 1 Cláudia Amandi, Desenhos Vazios (1/80), 2006. Tinta da china sobre papel. Fonte: https://claudiaamandi.weebly.com  

Cada desenho apresentava-se assim como uma resposta plausível, no seio da sua tarefa objetiva e pragmática que se reiterava de dia para dia, sob uma nova folha de papel. Eram desenhos vazios, na sua constituição singular, porque apenas pretendiam assegurar esse compromisso diário com o ato da criação artística. No entanto, a expectativa depositada na realização de cada possibilidade caminhava para lá do simples fazer objetivo. Enquanto unidade modelar, esperava-se que cada desenho conduzisse a um discurso e a um movimento que, ao ser agregado aos seus semelhantes, extrapolasse a simples condição operativa da sua realização.

(…) a ideia seria que, eventualmente, quando os agregasse todos, esse vazio que (…) cada um iria aparentemente ter - porque não pretendiam propriamente responder a nada, apenas a essa necessidade de desenhar, de fazer alguma coisa - no final (…) ir-me-iam surpreender pela proximidade que iriam ter uns com os outros (Amandi, 2021, 5:02-5:27).

Neste espaço circunscrito do fazer, a artista esperava cruzar-se com um porvir (Derrida, 2006), com uma alteridade estrutural, que fomentasse um envolvimento com a forma para lá das regras e dos limites estabelecidos a priori para a tarefa mencionada. Tal como um viajante que se ocupava, todos os dias, durante vinte minutos, a caminhar sempre e somente pelas mesmas ruas - recuperando sempre o mesmo percurso objetivo, mas procurando registar diferentes dimensões da sua experiência -, também Cláudia Amandi procurava percorrer atentamente a sua proposta, na expectativa de reunir diferentes reverberações da trajetória formal que estava a construir. Numa atenção redobrada, parece-nos que a artista ia realizando o seu compromisso diário numa atitude de deixar vir (Kastrup, 2016): numa atitude aberta ao encontro e à afinidade com a imagem exponencial, que ia sendo alterada e contaminada, consecutivamente, pelas várias unidades em causa (Figura 2). Por outras palavras, parece-nos que Cláudia Amandi, numa atenção focalizada, dedicada ao cumprimento regular da sua tarefa repetitiva e programática, procurava viajar, dentro desse espaço circunscrito, pelas imediações e divergências, que essa mesma ação, a partir de pequenos deslocamentos, ia proporcionando (fig.2). Ora, de acordo com Virgínia Kastrup, uma concentração sem foco (aberta) alimenta uma atitude de deambulação e de encontro com a chegada imprevisível de uma ideia (2016) ou de um posicionamento no espaço da criação artística. Paralelamente, no âmbito da psicologia e da criatividade, Martindale propôs, em 1999, que a atenção envolvida em processos de criação não implica, isoladamente, uma condição ampla (aberta) ou uma disposição estreita (focalizada), mas antes uma flutuação constante entre ambos os estados de concentração (Carruthers, 2016).

Figura 2 Cláudia Amandi, Desenhos Vazios, 2016. Tinta da china sobre papel. 80 (28 x 30 cm). Fonte: https://claudiaamandi.weebly.com  

A atenção de Cláudia Amandi deambulava assim, no espaço da sua proposta, entre um estado focalizado e aberto, onde a imagem modelar se ia construindo numa reiteração sucessiva e numa divagação ponderada, pelos territórios mais movediços da sua implementação diária. Neste movimento oscilante, Virgínia Kastrup (2016) chega a referir que o território da criação é composto tanto por um esforço efetivo, como por um encontro ocasional, impulsionado por uma recetividade aberta à imprevisibilidade do processo. Na realização operativa de “Desenhos Vazios”, esse encontro confirmou-se tanto por via da repetição gestual, como pela efetivação dos vários desenhos que, por afinidade, se iam agregando num movimento dialógico contínuo. O esquema dinâmico não se assumiu, assim, estanque e imóvel face ao processo de atualização “em imagens concretas” (Kastrup, 2016:6). Acompanhou, antes, esse processo de forma irrevogável, alterando-se e reestruturando-se, através de uma interação consecutiva entre esquema e imagens (Kastrup, 2016). De igual forma, ao dirigir-se a “Sopro (Homenagem à série Cenas do Dilúvio, de Leonardo da Vinci)”, Paulo Freire de Almeida refere que Cláudia Amandi realizou estes desenhos, a partir da repetição de um conjunto de gestos que se iam reeducando a si mesmos ao longo do processo de execução (Almeida, 2018). De acordo com o autor, após uma dada interrupção, cada conjunto de espirais, apenas e só, abraçava a sinergia do conjunto, depois de uma longa e reiterada implementação da estrutura gestual que, apesar de sistémica, apenas se atestava visualmente nos pequenos deslocamentos que o registo manual ia tomando (Figura 3). Cada movimento ia, assim, contaminando o fluxo dinâmico do conjunto total (Figura 4), num balanço onde nem mesmo o fim podia ser tido de antemão pelo programa operativo.

Figura 3 Cláudia Amandi, Sopro (Homenagem à série “Cenas do Dilúvio”, de Leonardo da Vinci) (1/12), 2017/2018. Tinta da china sobre papel. Fonte: https://claudiaamandi.weebly.com  

Figura 4 Cláudia Amandi, Sopro (Homenagem à série “Cenas do Dilúvio”, de Leonardo da Vinci), 2017/2018. Tinta da china sobre papel. 12 (22 x 32 cm) Fonte: https://claudiaamandi.weebly.com  

2. Interações Dialógicas: entre o ato de ter uma ideia e a repetição de um gesto

O envolvimento de Cláudia Amandi, com este tipo de estratégias processuais, passou a prescrever, gradualmente, a sua dinâmica artística, assente num sistema onde a definição a priori de um conjunto de regras operativas impulsiona as suas demais propostas modelares. No entanto, o seu fascínio por mecanismos regulares e pela implementação de gestos rítmicos, ponderados e sistemáticos fazia-se já adivinhar no processo construtivo de algumas das suas obras escultóricas, datadas antes de “Desenhos Vazios”. Como, por exemplo, em “Quanto tempo dura o conforto da tua dor?” (2001): um conjunto de três marquesas de hospital, cobertas por uma manta contínua de milhares de agulhas espetadas cuidadosamente uma a uma; ou, em “Fortaleza” (2001): uma escultura cilíndrica próxima da estrutura de um castelo de cartas construída através de um processo de colagem paciente e controlado de múltiplas unidades, até sensivelmente dois metros de altura. Enfim, perante a dimensão destes trabalhos e a necessidade (Deleuze, 1999) de se aproximar, de forma mais imediata, do fazer artístico, as suas intenções e interesses formais redirecionaram-se, então, para o campo do desenho. Não, que o desenho não ocupasse já um lugar na sua prática artística, como ferramenta a priori para visualizar e registar as suas demais ideias ou suposições para o espaço tridimensional (Figura 5 e Figura 6), mas não nesta dimensão, como matéria intrínseca e objeto de trabalho.

Figura 5 Cláudia Amandi, Estudo para “Quanto tempo dura o conforto da tua dor?”, 2001. Fonte: https://claudiaamandi.weebly.com  

Figura 6 Cláudia Amandi, Estudos para “Fortaleza”, 2001. Fonte: https://claudiaamandi.weebly.com  

Ora, segundo Kastrup, após o confronto com uma dada ideia, aquele que cria vê-se obrigado a envolver-se ativamente com um conjunto de ferramentas, que o permitam transportar de forma eficaz e profícua, a sua idealização primária, até à realidade sensível (2016). Similarmente, Gilles Deleuze afirma que todas e quaisquer ideias já se encontram, à partida, assim como aquele que cria, vinculadas a um domínio ou a uma área de atuação (1999). Ter uma ideia em cinema nem tão pouco será o mesmo que ter uma ideia em filosofia ou em artes plásticas e, de certa forma, o campo operativo onde se movimenta um artista instiga, por conseguinte, o seu interesse e entusiasmo por determinadas conceções. De igual forma, as suas motivações levam-no a ampliar, se necessário, o seu campo de trabalho, no intuito de adequar os seus conhecimentos, técnicos e teóricos, às suas intenções. Posto isto, criar algo novo - seja no campo filosófico, científico ou em arte - depende sempre de um processo, que não se esgota no simples ato de ter uma ideia (Kastrup, 2016), assim como uma mesma ideia não se mantém estática e imutável ao longo do processo de criação. Como analisamos em “Desenhos Vazios”, a atividade artística desenvolve-se num movimento de vaivém, entre estados endógenos e exógenos (Kastrup, 2016), que se vai especificando numa interação dinâmica entre o fazer, a matéria a uso e as premissas do próprio autor. Consequentemente, as propostas de Cláudia Amandi, assentes num modus operandi conciso e regular, não se apresentam no decorrer do seu processo artístico como estratégias isoladas e circunscritas. Revelam-se, antes, propostas abertas que interagem e dialogam entre si, podendo de forma imprevisível e inesperada impulsionar outras experiências ou estratégias análogas, no espaço adiante da sua atividade artística. A proposta “Praga” (2014/2015), por exemplo, assumiu como ponto de partida o processo e o signo visual aplicado em “Desenhos Vazios”, em 2006. Similarmente, a proposta “Todos” (Figura 7) apresenta uma afinidade formal com as propostas “Afluentes” (2018) e “Grelhas” (2014/2015): ambas realizadas a tinta da china e a partir da utilização de um simples furador de papel.

Figura 7 Cláudia Amandi, Todos, 2020. Tinta da china sobre folhas dobradas, furadas e sobrepostas. Fonte: https://claudiaamandi.weebly.com  

Associamo-nos, por isso, a Hebeche (2010), quando refere - sustentado na teoria do discurso polifónico de Bakhtin - que a vitalidade de uma ideia não se encontra plasmada, de forma a priori, na sua estrutura intrínseca enquanto conceção isolada, mas antes na interação e no conflito que essa mesma ideia possa contrair com outras suposições (Ou, no nosso entender, com outros índices do seu enquadramento formal: como alterações circunstanciais ou obstáculos ocasionais provenientes, por exemplo, dos materiais a uso [Kastrup, 2016]). Mikhail Bakhtin, ao longo do seu livro “Problemas da Poética de Dostoiévski” (2013), defende que ao longo da poética do escritor não existe apenas um criador, que autodetermina o rumo e o desenvolvimento da história, mas múltiplos visionários e pensadores, que se desdobram em personagens fictícias que não são tratadas como escravos ou servos obedientes, ao serviço de um autor-pensador, mas antes como sujeitos independentes e autónomos, na sua forma de pensar, agir e expressar opiniões. Segundo Bakhtin, cada herói é entendido e assumido, por Dostoiévski, não como um elemento objetificado da sua visão artística final, mas como um sujeito livre, dono da sua própria ideologia.

Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais “são”, em realidade, “não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante”. Por esse motivo, o discurso do herói não se esgota, em hipótese alguma, nas características habituais e funções do enredo e da pragmática, assim como não se constitui na expressão da posição propriamente ideológica do autor (Bakhtin, 2013:5).

Neste sentido, as propostas de Cláudia Amandi, não se esgotam nos seus enunciados autodeterminados a priori ou na sua consequente implementação regular. Cada esquema operativo conduz, antes, a um confronto com experiências imprevisíveis que, entre avanços e recuos, vão conduzido a hipótese formal num determinado sentido. Devemos ter em consideração que “buscando uma coisa, podemos [sempre] encontrar outra e reorientar todo o processo”, uma vez que todo e qualquer encontro apresenta “sempre uma margem de inesperado” (Kastrup, 2016:6 [ênfase nosso]). Dito isto, no espaço artístico de Cláudia Amandi, o processo de execução de cada uma das suas propostas modelares não se inscreve num movimento contínuo, linear e ininterrupto. As suas ideias interpelam-se e interrompem-se umas às outras, redirecionando a sua atenção, por vezes, num outro sentido ou proposta operativa. Uma ideia “não é uma formação psicológica individual subjetiva com sede permanente”, é antes “interindividual e intersubjetiva (…) [numa] comunicação dialogada entre as consciências” (Bakhtin cit. por Hebeche, 2010:14-15 [ênfase nosso]). Neste sistema inter-relacional, a Parede de Trabalho (Figura 8) de Cláudia Amandi parece apresentar-se, no seio do seu trabalho artístico, como um gráfico que sustenta e inscreve as suas demais intenções, estratégias e encadeamentos operativos.

Figura 8 Vista da Exposição “Parede de Trabalho” (reprodução da Parede que acompanha continuamente a artista no espaço de ateliê), em Espaço Estúdio UM, Escola de Arquitetura da Universidade do Minho, Guimarães, 2020. Fonte: https://claudiaamandi.weebly.com  

3. A Parede de Trabalho enquanto personificação dialógica: o Eu e os Eus-Outros

A Parede de trabalho apresenta-se, para Cláudia Amandi, como um espaço de disseminação de registos, apontamentos e associações entre as mais diversas e díspares informações visuais. Intitulada, também, pela artista como espaço das coisas, a Parede de Trabalho afigura-se num movimento de aglomeração de pequenos indícios, mais ou menos relevantes, que a vão permitindo criar e visualizar, pontualmente, o seu universo de trabalho. Entre recortes de imagens e fotografias, esquemas e desenhos ocasionais, anotações e impressões escritas, Cláudia Amandi vai estruturando a sua Parede de Trabalho numa atenção aberta, que privilegia uma procura descentralizada e plurivalente pelos mais díspares e heterogéneos interesses pessoais. Por conseguinte, apenas aquilo que regista dentro dos limites da sua Parede de Trabalho lhe comunica intrinsecamente algum sentido, apesar do material reunido ostentar, muitas das vezes, uma ordem aleatória, ambivalente ou inconclusa. Paulo Freire de Almeida ao dirigir-se à sua Parede de Trabalho, acaba por descrevê-la como uma “espécie de Sala de Pânico, onde a aparente segurança das metodologias de trabalho é negociada com a ameaça de uma crise de formação de novas ideias” (Almeida, 2020). Diríamos, então, que num arrumo às avessas (Almeida, 2020), esta é uma ferramenta de trabalho que acompanha a artista pelos movimentos mais heterogéneos da sua criação artística, instigando consequentemente hipóteses, expectativas, curiosidades, dúvidas e/ou inquietações.

No seio da Teoria do Self Dialógico (TSD), Hermans - sustentado nas abordagens de identidade (self) de William James (1980) e na metáfora polifónica de Bakhtin (2013) - designa o self (“Eu”) em termos de uma multiplicidade relacional entre várias I-positions, relativamente dinâmicas e autónomas (Hermans, 2001). Segundo Hermans, o “Eu” consegue flutuar entre diferentes e até opostos posicionamentos que, de forma interativa, comunicam e discutem entre si, sobre as mais diversas e variadas objeções. Tal como as personagens fictícias de Dostoiévski, também as várias I-Positions, tomadas por um self, são munidas de uma voz imaginativa, que lhes permite discorrer e interagir umas com as outras, a partir do seu próprio arbítrio e experiências apreendidas. De acordo com Verhosfstadt-Denève, estas são vozes e protagonistas que tanto podem reportar e aludir a um mundo “exterior” - no sentido em que, graças à imaginação, um outro indivíduo toma lugar num self multivocal - como podem integrar e prescrever o nosso mundo “interior” (Hermans, 2001) . Posto isto, o self dialógico redige-se numa combinação intrínseca entre continuidade e descontinuidade. Continuidade, porque de acordo com James existe uma estreita relação entre as várias posições assumidas pelo “Eu” (ex.: “Eu como Artista”) e aquilo que é atestado como “seu” e alvo de reflexão num determinado momento (ex.: “a minha obra” ou “a minha Parede de Trabalho”) (Loureiro & Meira, 2020). Descontinuidade, porque - tal como na metáfora polifónica de Bakhtin - o self assume várias I-Positions que explicitam perspetivas divergentes ou até mesmo estados motivacionais antagónicos (ex.: “Eu persistente” ou “Eu cético”). Ora, Cláudia Amandi afirma que o carácter latente das ideias e das operações, inscritas na Parede de Trabalho, conduz aquele que cria a um estado psicológico menos defensivo e, por conseguinte, mais aberto ao “jogo das possibilidades”, garantindo uma predisposição e uma tolerância acrescidas “para atender aos diversos estados de incoerência, conflito e contradição, usuais no desenvolvimento processual” (Amandi, 2012:18). Diríamos, então, que a Parede de Trabalho é este universo plurivalente que, ao procurar reunir um conjunto de coisas diversas, potencia um diálogo interpessoal entre as várias I-Positions tomadas pela artista. Por outras palavras, catalogando uma multiplicidade de núcleos de interesse, a sua Parede de Trabalho parece explicitar uma negociação e hierarquização constante entre diferentes posicionamentos do “Eu”. Enfim, a Parede de Trabalho pretende, apenas, ser esse espaço de confronto e diálogo entre vestígios em suspenso, que mais ou menos explícitos, vão possibilitando resgatar memórias, denotar similitudes e estimular a germinação de ideias no espaço da sua criação artística.

Conclusão

Esta abordagem, realizada ao processo artístico de Cláudia Amandi, leva-nos a realçar que a implementação de um sistema modelar, sistemático e repetitivo, apesar de condicionar o princípio operativo de uma dada proposta, não prenuncia, de todo, as suas características mais peculiares e intrínsecas no decurso da sua confirmação. Como analisámos em “Desenhos Vazios”, o processo criativo vai-se confirmando e reestruturando ao longo do fazer, através de uma articulação constante entre as intenções, expectativas e hesitações do próprio autor e os condicionamentos externos impostos pelo próprio contexto (ex.: materiais a uso ou efeitos visuais decorrentes da aleatoriedade gestual). Cada proposta modelar edifica-se, assim, entre movimentos circunstanciais, que oscilam entre uma atenção focalizada e aberta pelos percursos mais singelos da criação artística. Posto isto, as indicações operativas, autodeterminadas e impostas, no seio destas oscilações processuais, parecem certificar-se com um recurso primário, que permite ao artista equacionar e trespassar um conjunto de impasses incongruentes que, muitas das vezes, adiam o seu envolvimento com o fazer. Ao determinar a implementação regular de um conjunto de regras e indicações processuais o self assume, numa comunicação dialogada entre I-Positions, uma meta-posição (Loureiro & Meira, 2020), que com maior proeminência, condiciona o percurso criativo numa dada direção. Ainda assim, a repetição sistemática de um determinado signo visual consente um conjunto de desfasamentos e alteridades visuais, que à medida do fazer são tidas em consideração pelo próprio autor no decurso de um discurso polifónico. Os diálogos interpessoais, mais ou menos dissonantes, vão conduzindo, por conseguinte, a uma elucidação tanto da ideia, como da conceção formal da proposta artística.

Enfim, temos ainda a crer, que este movimento dialógico permite abraçar, de igual forma, o carácter experimental de execução de um exercício, como ponto de partida para a realização e criação de um conjunto de propostas autorais. Tenha-se, por exemplo, a série de desenhos “Retângulos” (2019) de Cláudia Amandi, realizados a partir de uma inscrição contínua de linhas verticais e horizontais, com base num exercício escolar de destreza manual (Almeida, 2019). Talvez a aproximação a um exercício ou a enunciado autoimposto, auxilie, em determinado momento, aquele que cria a redirecionar a sua atenção para uma dada ideia, objetivo ou necessidade intrínseca. Questionamos, por isso, se esta relação entre enunciados autoimpostos e o self dialogic poderá auxiliar alunos, no contexto de formação e educação em Belas Artes, no desenvolvimento do seu projeto artístico pessoal? Num mundo plural e deveras diversificado, decerto não será difícil perdermo-nos e ficarmos presos em expectativas e dubiedades. Resta-nos apenas descobrir ou definir as estratégias operativas que nos permitem redigir e clarificar o nosso universo ideológico.

Agradecimentos

Este artigo resulta do apoio financeiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e do Fundo Social Europeu (FSE) através da concessão de uma Bolsa de Doutoramento (SFRH/BD/144944/2019).

Referências

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Recebido: 15 de Fevereiro de 2021; Aceito: 01 de Março de 2021

1 Daniela F. Pinheiro é artista visual, bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia a frequentar o doutoramento em Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. As suas principais linhas de investigação são a Arte e processos de Criação Artística em Pintura, em torno de enunciados repetitivos e sistemáticos. Email: pinheiro.daniela@hotmail.com

2 Teresa Almeida é artista visual e professora na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Doutorada em Estudos de Arte pela Universidade de Aveiro. Morada: Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto, Av. de Rodrigues de Freitas 265, 4049-021 Porto, Portugal. E-mail: talmeida@fba.up.pt

3 Domingos Loureiro é artista visual e professor auxiliar na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Doutor em Arte e Design pela Universidade do Porto. Morada: Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto, Av. de Rodrigues de Freitas 265, 4049-021 Porto, Portugal. E-mail: dloureiro@fba.up.pt

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