1. Introdução
Frans Krajcberg (1921 - 2017) de origem judaica, nasceu na Polónia (Kozienice) e vai para o Brasil no período de pós-guerra para esquecer a perseguição nazista, bem como a destruição do seu país e perda da sua família no Holocausto. Krajcberg, no início da Segunda Guerra Mundial, vivia em Czstochowa e pela sua origem judaica foi alvo de muitas perseguições por preconceito racial e nazismo.
O autor foi o único sobrevivente da família devastada pelo Holocausto e durante a sua infância isolou-se nas florestas, como um lugar de refúgio. Na fase da sua adolescência, já com interesses artísticos, revelava angústia pelo racismo e isolamento provocado pela religião. Durante este período, começou a manifestar uma revolta contra a violência do homem e culminou um desejo de se expressar através da arte e da pintura. Viveu com muitas dificuldades financeiras e no período de guerra, fugiu dos campos de concentração e refugiou-se na União Soviética, onde iniciou a sua formação em engenharia e artes na Universidade de Leningrado. No período de 1941 e 1945, tornou-se oficial do exército polaco e chegou mesmo a participar na batalha. Com o fim da guerra imigrou para a Alemanha e estudou na Academia de Belas Artes de Stuttgart, na qual teve oportunidade de aprender com um dos fundadores da Bauhaus, Willi Baumeister (1889-1955), os principais movimentos da arte moderna (Filho, 2015).
Em 1948, aos 27 anos, imigrou para o Brasil por incentivo do artista plástico Marc Chagall (1887-1985), sem noção do idioma e sem recursos, viveu na rua durante uma semana na cidade do Rio de Janeiro. Mais tarde, com ajuda foi para São Paulo e começou a trabalhar na manutenção do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP). Aqui trabalhou como assistente de Mário Zanini (1907-1971), Waldemar Cordeiro (1925-1973) e Alfredo Volpi (1896-1988), que se tornaram importantes artistas plásticos brasileiros e com quem criou amizade. Esta experiência de guerra, de perseguição, preconceito racial, de sobrevivência e perda levou-o a querer tratar e expor a barbaridade do homem. Mas, foi o ano de 1948 que ditou o rumo da sua prática artística pelo impacto do que assiste das ações humanas sobre as florestas brasileiras. No entanto, é na 1ª Bienal Internacional de São Paulo (1951) que consegue expor duas pinturas e assim, inicia a carreira artística (Fernandino, 2014).
Krajcberg refugiou-se na Natureza e direcionou a sua prática artística para uma linha naturalista, na qual, utiliza diversas expressões e materiais, estabelecendo uma obra de invocação poética e político ambientalista acentuada. Para Krajcberg é fundamental a experiência no espaço, assim como a recolha dos materiais provenientes dele, salientando que o autor assumia as suas obras como manifesto sobre a fragilidade do nosso planeta e para a destruição compulsiva da Natureza (Piva, 2016).
A sua obra plástica é diversificada expressando-se em diversos meios e processos, da pintura à escultura. Destaca-se por tentar exprimir a revolta do material e simultaneamente a dele, através de: madeiras mortas e queimadas que denunciam a exterminação das florestas; de raízes destruídas e resíduos da Natureza que nos interpelam sobre a complexidade do natural; a troncos de madeira pintada com pigmentos com tons de vermelho, negro, óxido de ferro e manganês recolhidos diretamente da terra (Oliveira, 2015).
Procura-se abordar a prática artística de Frans Krajcberg, focando essencialmente no Sítio Natura construído em 1966 pelo autor, na Mata Atlântica, em Nova Viçosa, no sul da Bahia. Espaço preservado e isolado, em que construiu vários ateliers/oficinas com os meios necessários para processamento, registo e arquivo, e que, em 2001, é criado um fundo para a construção da “Fundação Museu Ecológico e Artístico Frans Krajcberg”, para preservar o espaço e as suas funções pedagógicas (Tomé, 2020).
Esta comunicação pretende ainda abordar os desenvolvimentos recentes de que a floresta tem sido alvo, com reflexo direto sobre o projeto Museu Ecológico, tornando-se ainda mais urgente a reflexão que Krajcberg tanto defendeu.
2. Frans Krajcberg: projeto Museu Ecológico
Frans Krajcberg, por volta dos trinta anos de idade reconhece que a sua prática artística está diretamente ligada à Natureza e após viajar por diversos países compreende que as cidades não eram o que ele procurava, que pertence à Natureza e que sem ela a sua arte não existe. O autor desenvolveu a sua prática artística nas impactantes florestas brasileiras e as suas obras iam modificando de acordo com a matéria proveniente de cada local que percorria (Piva, 2016). O autor procurava o contato físico e sensível com o meio natural para sentir a Natureza e aprofundar a relação com o lugar. Apresentava uma necessidade de sentir e de se envolver com as matérias da Natureza, essencialmente os troncos e galhos queimados, ou pigmentos naturais de origem ferrosa. Revelou-se importante para o artista esta experiência nos lugares de Natureza, bem como a recolha dos materiais provenientes deles (Fernandino, 2014).
A partir dessa experiência e recolha pretendeu expor a ação do homem, denunciando a destruição e a violência, como a extinção das tribos indígenas. Revelava uma constante necessidade de manter um contato direto com os elementos que envolvem a Natureza, recolhendo por exemplo, madeiras mortas e queimadas denunciando a destruição das florestas. Podemos afirmar que:
(…) o escultor da natureza, o escultor de árvores” não belas, mas árvores com fogo, destruídas” conforme enfatiza o múltiplo artista, também pintor, gravador e fotógrafo. É a voz neste país que grita alto contra a destruição da natureza: árvores, florestas e sobretudo o homem que nelas habita são tragicamente devastados. A denúncia contra a natureza é sua maior missão e o caminho que traçou para representar sua “revolta” é a arte que desafia o olhar e clama para a consciência urgente de se preservar o que ainda resta (Queiroz, 2015:28).
Sempre na tentativa de exprimir a revolta do material e simultaneamente a dele, expondo o que antes daquela madeira destruída fora uma árvore com vida e repleta de energia. Os seus objetos originários dessas raízes destruídas e resíduos da Natureza faz-nos refletir sobre a sua complexidade, e a partir deste material o autor pode “gritar” através deles (Couto, 2017). Podemos dizer que a sua experiência com a matéria é bastante filosófica, as suas obras dialogam e sustentam-se a partir da Natureza, em que os elementos orgânicos são a matéria principal e centro da sua reflexão (Queiroz, 2015).
Nesse sentido, observamos que Krajcberg concedeu muita relevância à terra onde vive, na qual surge os seus trabalhos mais significativos, pela relação íntima/profunda e as memórias que estabeleceu com o lugar. É evidente a necessidade que tinha em viver diretamente na Natureza e interagir com a matéria num sentido mais ecológico, como quando recolhe as árvores queimadas e tenta denunciar através delas a destruição das florestas e ação do homem (Oliveira, 2015). Existe aqui evidentemente preocupações ecológicas e éticas na prática desenvolvida pelo artista.
Verificou-se que o autor tinha o desejo de doar a maioria das suas obras à população brasileira, que fosse disponível ao público e com finalidades culturais e ecológicas. Seguindo esse desejo, surgiu o Sítio Natura construído em 1966 pelo autor, na Mata Atlântica, em Nova Viçosa, no sul da Bahia. Kracjberg:
Pela primeira vez, depois de mais de duas décadas vivendo no Brasil, o artista podia dispor de um ateliê especialmente projetado para guardar a matéria-prima natural e todo seu equipamento de trabalho. De vez em quando ele vai à Minas recolher pigmentos naturais, faz viagens para a Amazônia percorrendo rios e florestas, e para o Mato Grosso (Lima, 2007:134).
Espaço preservado e isolado, em que construiu vários ateliers/oficinas com os meios necessários para processamento, registo e arquivo, e que, em 2001, é criado um fundo para a construção da “Fundação Museu Ecológico e Artístico Frans Krajcberg”, para preservar o espaço e as suas funções pedagógicas. Museu em que Krajcberg participou pessoalmente no processo de financiamento e construção, onde pretendia albergar a maioria das suas obras, como desenhos, relevos, fotografias, filmes e esculturas, doados simultaneamente com o seu património (Figura 1). Pretendia ser um espaço de encontro, de reflexão, de troca de ideias, de conhecimentos e de estímulo para a preservação da Natureza (Tomé, 2020).
O Museu Krajcberg foi desenhado pelo arquiteto Jaime Cupertino e é constituído por três pavilhões principais: o maior contém as esculturas de grandes dimensões, cerca de mais de trezentas esculturas (Figura 2); o médio, mas, com mais altitude, expõe as obras de “sombras recortadas”; e o pavilhão mais pequeno acomoda o espaço administrativo.
Se pensarmos na série “sombras recortadas” de Krajcberg, observamos que representam a transição da pintura para as obras tridimensionais. Esse acervo encontra-se no pavilhão mais alto, no qual a sua estrutura é sustentada por esculturas de cimento, revelando formas de troncos de árvores, através das texturas, cores e volumes (Tomé, 2020). Também dispõe de uma área externa, disponível ao público, na qual se encontram três esqueletos de baleias jubartes em exposição permanente. Possivelmente a intenção da recolha destes esqueletos seria a sensibilização, tendo em conta que os turistas procuram muito estas baleias no Litoral do Sul da Bahia (Lima, 2007).
No exterior do museu está localizada a oficina de Krajcberg, com diversas máquinas, ferramentas e obras inacabadas. Um espaço completamente aberto e localizado entre o pavilhão de esculturas de grandes dimensões e o pavilhão de “sombras recortadas”. Aqui, encontra-se a última escultura que estava a desenvolver, em novembro de 2017, um fragmento de madeira corroída, resgatada do mar e coberta de vermelho. Além do que foi referido, estava prevista a construção de mais pavilhões para o acervo dos trabalhos fotográficos e gravuras, contudo, isso não sucedeu. Relativamente ao estado atual do Museu Ecológico e Artístico Frans Krajcberg, observa-se degradação (Figura 3) e poucas condições para conservação (“Folha S.Paulo,” 2019), além disso, a:
(..) impressão é que estavam guardadas e não em exposição, pois, estavam muito próximas umas das outras, não havendo espaço para apreciação. O acervo estava empoeirado, algumas peças embaladas, e outras escoradas, havia poças de água de chuva no piso do pavilhão. Mais uma vez tive a impressão de que o acervo estava sem os devidos cuidados de conservação (Tomé, 2020:84).
Atualmente, desenvolvimentos recentes de que a floresta tem sido alvo tem refletido diretamente sobre o projeto Museu Ecológico, tornando-se ainda mais urgente a reflexão que Krajcberg tanto defendeu. Verifica-se que o museu que seria edificado no Sítio Natura, onde Krajcberg viveu, em Nova Viçosa, não irá avançar. Apesar da doação do autor ao governo do estado, a equipa técnica do Instituto do Património Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) determinou que o Sítio Natura não é apropriado para acolher as de Krajcberg e o lugar deverá ter outra função. O diretor do IPAC, João Carlos Oliveira considera que a manutenção é demasiado dispendiosa para manter as obras e que o retorno do público seria reduzido, pelo que pretende preservar o lugar/história do artista, contudo, com uma abordagem focada na preservação ambiental (Jacobina, 2019).
Então, a intenção do governo é obter parcerias com instituições e conceber um lugar de preservação ecológica que de alguma forma conte a história do artista. João Carlos Oliveira, refere que o lugar é muito agressivo para preservar as obras do autor, principalmente pelas especificidades das suas esculturas, que resultam de árvores mortas e queimadas. Tenciona que o acervo de Krajcberg percorra o Brasil e o mundo, num período de quatro anos, numa exposição itinerante (Inove Criações, 2019). Ao mesmo tempo, a posição do governo não agradou o presidente da câmara, uma vez que a Câmara Municipal se tinha disponibilizado a suportar toda a manutenção do local, através de parcerias com alguns institutos, nomeadamente com o Abrolhos. Portanto, é incerto o destino das obras e do património de Frans Krajcberg, sendo somente apresentada a hipótese de o acervo ficar na Região Metropolitana de Salvador (Góis, 2019). Entretanto, as obras ainda se encontram em processo de catalogação, tratamento e restauração para futuramente integrarem uma exposição internacional.
Conclusão
Em modo de conclusão, observamos que Frans Krajcberg conseguiu transmitir/denunciar os interesses económicos e políticos que excedem o campo das artes, assumindo uma posição política contra a violência praticada pelo homem na Natureza e o meio ambiente. A prática artística do autor, em geral, apresenta problemáticas como: consumismo, preconceito, individualização, violência, insensibilidade moral, humanismo, globalização, política, sustentabilidade e entre outras questões associadas a situações que vivenciou de degradação da Natureza e do homem. Krajcberg realizou um dos maiores acervos de arte do Brasil, com pertinência a nível nacional e internacional (Oliveira, 2015; Queiroz, 2015). Demonstrou uma posição política, ambientalista e de resistência pela preservação/proteção da Natureza e da vida. Com base na relação de intimidade com a Natureza, um lugar que recordava como refúgio e de descanso, tentou denunciar a destruição das florestas brasileiras (Couto, 2017). Assim, de um espaço inicial de refúgio, a Natureza, torna-se o espaço a proteger, onde Krajcberg encontra paralelo na destruição produzida pelo humano em contexto de guerra e no espaço natural. Desta forma, o desenvolvimento de um espaço como o Museu Ecológico não se trata apenas de um repositório da obra do autor, mas de um espaço para a preservação de uma memória sobre a atrocidade que o humano é capaz, procurando educar para a importância do natural, da Natureza e do humano, que é parte de própria Natureza.
Por outro lado, desenvolvimentos recentes de que a floresta tem sido alvo têm refletido diretamente sobre o projeto Museu Ecológico, tornando-se ainda mais urgente a reflexão que Krajcberg tanto defendeu. A intenção deste museu era preservar/divulgar a prática artística e as preocupações do autor, promovendo a realização de formações, estimulando estudantes, artistas, investigadores e críticos na área das artes na preservação da Natureza, porém, independentemente da vontade de Krajcberg, o Sítio Natura terá outra função.