Introdução
Este artigo objetiva apresentar as obras animadas de María Lorenzo Hernández, e como estas apresentam um olhar feminino e particular, em uma luta entre a definição da imagem fotográfica e a dissolução do movimento da mancha ou da linha animada. Em obras como Retrato de D (2004), El Gato Baila Con Su Sombra (2012), La Noche Del Océano (2015) - nomeado ao Prémio Goya -, Impromptu (2017), ou Esfinge Urbana (2020), é possível identificar um olhar sensillo perante os temas que apresenta. Obras em que, no seu conjunto ao longo do tempo, parecem perder e encontrar a “concretude” da representação objetiva e material. Porém, tornando-se mais subtis.
Em especial, El Gato Baila Con Su Sombra (2012), uma curta-metragem coletiva em homenagem a Miquel Guillem, professor da Universitat Politècnica de València (UPV), que parece ser um ponto de viragem. Com música original de Armando Bernabeu Lorenzo, e desenvolvida pelo Grupo Animación Arte e Industria da mesma instituição (coordenado por María Lorenzo Hernández), a animação mescla imagem animada e filmada. Onde a primeira interfere na segunda, e a “sombra” perpassa por todos os momentos.
Essa mescla de imagens de naturezas diferenciadas é comum nos trabalhos de María Lorenzo. Em La Noche Del Océano (2015) e em Impromptu (2017), esta é a base para muitas sequências animadas.
E é a partir do conjunto de suas curtas animadas, que este artigo reflete sobre a obra da artista, considerando o conceito do “Regime Noturno da Imagem” de Gilbert Durant (1997). Neste sentido, considera-se que, é através do olhar da realizadora (enquanto pessoa feminina) que é criado este perfil “noturno” das imagens híbridas em suas obras - que mesclam imagens animada e filmada.
Para desenvolver tal reflexão, apresenta-se primeiramente um relato histórico e analítico sobre a artista e suas obras. O texto segue com os estudos de Durand, sobre o Regime Noturno da Imagens (e Diurno em menor grau) com um entrelaçamento com as obras de Hernández. O artigo finaliza com as conclusões resultantes das reflexões apresentadas ao longo do texto.
1. María Lorenzo Hernández: a Mulher e suas Obras no Tempo
Nascida em Torrevieja, Espanha em 1977, Hernández teve origem em uma família “cinéfila” (Laguna 2020). Apaixonou-se pela arte animada a partir de 1991 através do visionamento televisivo de animações como The Man Who Planted Trees (Frédéric Back, 1987), exibidas no Canal+ e no programa “La Linterna Mágica”, da TVE (Laguna 2020). O primeiro era patrocinador do já reconhecido Festival de Annecy (França), e transmitia muitos curtas destacados neste evento. Com essa influência, dois anos depois já pensava em ser animadora (Laguna 2020).
Sua Licenciatura em Belas-Artes (2000) na Universitat Politècnica de València, de certa forma, definiu a sua vida futura. Completou seu doutoramento (2006) na mesma instituição, onde atualmente é Professora nas disciplinas de Animação no Departamento de Desenho da UPV, e no Mestrado em Animação. Também é membro do grupo UPV Animation e Coordenadora da Revista Con A de Animación da mesma instituição. Ela ainda integra a Academia Espanhola de Cinema e colabora como articulista em diversas publicações internacionais.
Como artista, María Hernández é versátil e curiosa, sempre trabalhando de forma a integrar imagens animada e filmada, estudando o movimento a cada nova criação. Em seu primeiro trabalho, Retrato de D (2004), realizado em pintura sobre acetato, apresenta uma narrativa pesada, e representações bem figurativas. Na altura conhece seu futuro marido e produtor de suas curtas, Enrique Millán.
La Flor Carnívora (2009), também segue uma estética mais realista, onde o desenho é o meio de representação escolhido. A temática já se volta para as questões femininas, onde a planta é uma metáfora para questões de sexualidade e de transformação - sob influência declarada de Fritz Lang, e de Roman Polanski (Laguna 2020).
Sua obra colaborativa de 2012, El Gato Baila Con Su Sombra, teve origem num facto concreto, ao observar um gato brincando com a sua sombra. Porém, este foi desenvolvido com seus alunos do Master de Animação da Universidade de Palermo, em 2011, ano da morte de seu amigo, e também professor, Miquel Guillem (e para o qual o filme é dedicado). Assim, Hernández utiliza o tema “sombra” e o Cinema, através de várias rotoscopias sobre cenas emblemáticas do Cinema Mundial. A animação é desenvolvida de forma experimental, como o costumava o Professor Guillem desenvolver com seus alunos. Apesar da referência real das imagens-base, percebe-se um desvincular das manchas e traços da animação. Há movimentos mais soltos, mais abstratos do que nas curtas anteriores.
La Noche Del Océano (2015) é talvez a mais significativa obra de Hernández - e nomeada ao Prémio Goya. Utilizando pastel, oscila entre o desenho monocromático e o colorido. Por meio de rotoscopia, Hernández criou a curta inspirada no conto de Robert H. Barlow and H.P. Lovecraft, The Night Ocean (1936). Como descreve ela mesma,
[foi um] processo muito pessoal, pois comecei [o trabalho] em 2013, quando estava grávida de minha primeira filha, María. [...] Para isso, mudei completamente meu sistema de trabalho anterior, [...] sem delegar a intervalação a ninguém, [...] e com muitas mudanças na linguagem plástica, como se fossem diários do próprio pintor que contam a história, do seu ponto de vista subjetivo. (apud Laguna 2020)
A presença do mar, da água, a ligeireza dos traços e manchas desta animação, mostram-se muito mais abstratas, que as imagens produzidas até a altura. Há um outro “espírito” neste trabalho: mais intimista e fluido.
Por outro lado, em Impromptu (2017) percebe-se novamente a idolatria ao Cinema. Mais “concreto” que a obra anterior, esta é baseada em vários trechos do cinema, ou de técnicas e imagens icónicas das Artes (gráfica e do movimento). Nesta curta, são os movimentos e seus efeitos que criam a “abstração” da imagem visionada.
A influência do período do Pré-Cinema (Furniss 2006), foi uma consequência de estar a ensinar “História da Animação” na UPV, sendo realizado em associação com uma start-up da universidade (Laguna 2020).
A sua mais recente produção, Esfinge Urbana (2020), é de todas a mais “contemporânea” uma vez que é resultado da sucessão de muitas fotografias da cidade de Valência. Notadamente, de graffitis e de intervenções urbanas encontradas pela cidade. É uma homenagem aos artistas de Street Art de Valencia, sendo um dos projetos selecionados na convocatória #CMCVaCasa 2020 do Consórcio de Museus da Comunidade Valenciana.
Apesar de serem registos de imagens “objetivas” - rostos, animais, símbolos diversos -, com o tempo cria-se um tipo de “efeito” caleidoscópico irregular, onde a imagem central permanece no ecrã, enquanto todo o entorno torna-se “abstrato”. De certa forma, é uma obra alinhada à anterior, uma vez que trabalha com a sucessão das imagens de forma repetitiva, como exercícios animados. Porém, como as curtas anteriores, há uma “mirada” feminina na escolha dessas imagens. Assim como, na forma como estas são dinamizadas em suas sucessividades, dentro da cadência da música de fundo - Maktub, de Gabriel de Paco. A predominância de imagens “femininas” também se destaca.
Suas obras receberam vários prémios e foram selecionadas em festivais especializados como, os festivais de Annecy, Bruxelas, Anima Mundi (Brasil), Anifest (República Checa), sendo exibidas em mais de 30 países.
O Regime Noturno da Imagens na Obra de Hernández
O trabalho de Gilbert Durand é extremamente denso e detalhando, porém, o foco deste estudo é restrito ao Regime Noturno das Imagens, por ele desenvolvido. Pois, segundo o próprio Durand “pode-se dizer que não há luz sem trevas, enquanto o inverso não é verdadeiro: a noite tem uma existência simbólica própria” (1997:67).
De partida e sucintamente, para Durand, o Regime Noturno das Imagens (como o Diurno) “não são agrupamentos rígidos de formas imutáveis” (2002: 64), mas cada qual abarca conceitos, símbolos e significados inerentes à Noite (assim como, ao Dia). Portanto, no Regime Noturno há a escuridão, o mistério, o “cair”, a morte. É um conceito tão mais complexo, que Durand lhe destina 183 páginas, do seu livro “Estruturas Antropológicas do Imaginário” (1997), de um total de 551 páginas. Ao longo desse capítulo específico, o autor faz ligações entre morte-eufemização-mulher-noite-água-poço-lua-mãe-interior-imaginação-ilusão (Maya)-receção-centralização-animais-geração-repetição, entre outros (Durand 1997: 214-0).
Assim, sendo, o Regime Noturno das Imagens se faz presente, e coerentemente na obra de Hernández, pelo simples facto de estarem em causa obras de uma artista feminina, que cria a partir de sua bagagem de vida e ponto de vista, que não poderiam ser de outra natureza, senão também femininos. E Durand vincula, como em todas as culturas basilares (Mitologias Grego-romanas, Egípcia, Africanas, Indianas, entre outras), o feminino à noite, e o masculino ao dia.
Com o objetivo de destacar alguns símbolos noturnos (destacados pelo autor), e concomitantemente fazer a conexão com a obra de Hernández, apresentam-se algumas citações de Durand, seguidas pelas obras que trabalham com os referidos símbolos, e algumas ilustrações:
[...] a hora do fim do dia, ou a meia-noite sinistra, deixa numerosas marcas terrificantes: é a hora em que os animais maléficos e os monstros infernais se apoderam dos corpos e das almas. Esta imaginação das trevas nefastas parece ser um dado fundamental, opondo-se à imaginação da luz e do dia. As trevas noturnas constituem o primeiro símbolo do tempo, e entra quase todos os primitivos como entre os indo-europeus ou semitas “conta-se o tempo por noites e não por dias”. [...]
As trevas são sempre caos e ranger dos dentes. (Durand 1997:91-2)
Este ambiente trevoso e temporal é encontrado nas curtas, El Gato Baila Con Su Sombra (2012) (Figura 1), La Noche del Océano (2015) (Figura 2).
O peixe é quase sempre significativo de uma reabilitação que indica figuras onde uma metade de peixe vem completar a metade de um outro animal ou de um ser humano. A deusa lua [...] tem muitas vezes uma cauda de peixe. (Durand 1997: 216)
São símbolos que Hernández utiliza em La Noche Del Océano (2015) (Figura 3), Impromptu (2017) (Figura 4) e Esfinge Urbana (2020) (Figura 5).
[...] essa inversão que inspira toda a imaginação da descida e especialmente o ‘complexo de Jonas”. O Jonas é a eufemização do engolimento e, em seguida, antífrase do conteúdo simbólico do engolimento. Transfigura o despedaçamento da voracidade dentária num suave e inofensivo sucking, [...] (Durand 1997:206)
E onde
O primordial e supremo engolidor é o [...] mar [...]. é o abyssus feminizado e materno que para numerosas culturas é o arquétipo da descida e do retorno às fontes originais da felicidade. (Durand 1997:225)
A “redução” da intensidade das mensagens, a presença da água e o “engolir” são encontrados em La Flor Carnívora (2009), La Noche Del Océano (2015). E mesmo em Impromptu (2017), onde o movimento circular parece “engolir” as figuras que surgem (e depois reaparecem no looping da animação).
A própria água, cuja intenção primeira parece ser lavar, inverte-se sob a influência das constelações noturnas da imaginação: torna-se veículo por excelência da tinta. [...] Ao mesmo tempo que perde a limpidez, a água “espessa-se”, oferece à vista “todas as variedades da púrpura, como cintilações e reflexos de seda de furta-cores”.(Durand 1997:222)
A água e seus movimentos são uma presença quase constante no trabalho de Hérnandez. Seja como “água” em si mesma, seja pelo movimento ondular, cíclico. Como em La Noche Del Océano (2015) e Impromptu (2017).
O espaço circular é sobretudo o do jardim, do fruto, do ovo ou do ventre, e desloca o acento simbólico para as volúpias secretas da intimidade. [...] A esfericidade, aqui, é sobretudo a potência emblemática do redondo, o poder de centrar o objeto [...] (Durand 1997:248).
A esfericidade, o círculo geométrico, o movimento cíclico estão presente principalmente em Impromptu (2017) (até mesmo pela utilização dos efeitos óticos do Pré-Cinema) e Esfinge Urbana (2020).
Por fim, há um aspecto que liga fortemente o centro e o seu simbolismo à grande constelação do Regime Noturno: a repetição. O espaço sagrado possui esse notável poder de ser multiplicado indefinidamente. [...]. O homem afirma assim o seu poder de eterno recomeço, o espaço sagrado torna-se protótipo do tempo sagrado. (Durand 1997:249)
Outro aspeto abordado por Durand, e encontrado em maior grau nas obras: a repetição de pequenas sequências, os ciclos animados. Impromptu (2017) e Esfinge Urbana (2020) são exemplos do uso contínuo de “repetições”.
3. Conclusão
Como é possível constatar, muitos dos elementos representativos do Regime Noturno das imagens, apresentados por Durand, podem ser frequentemente encontrados nas obras de Hernández. E que estas se metamorfoseiam ao longo do tempo. Suas duas primeiras curtas (Retrato de D e La Flor Carnívora), se destacam das seguintes tanto na forma quanto no conteúdo. É como um período de procura pela sua forma particular de expressão. Mas a partir de El Gato Baila Con Su Sombra (2012) parece encontrar esse caminho.
O progredir artístico segue, utilizando elementos do Regime Noturno das imagens, como mencionado no segmento anterior. E isso, mesmo quando parece estar no Diurno, como é o caso de Esfinge Urbana (2020) - com o seu movimento ativo, a verticalidade de muitas formas, a luz do dia com a estética e a objetividade das imagens foto-realistas. Contudo, as figuras captadas pela câmara são em sua maioria pertinentes ao Regime Noturno: circulares, centradas, de animais, de símbolos e de rostos (femininos em grande parte). Assim como ainda se percebe a repetição - que cria o efeito animado nesta curta. Além de uma visão indefinida das formas, a redor do imagem central de cada frame sucessivo, como mencionado. Esse conjunto, de certa forma, torna a curta meta-linguística, pois mostra através de si como é criada a visualização da animação (sucessão rápida das fotografias).
Outro aspeto a ser considerado é a própria bivalência do trabalho de Hernández, com as imagens filmada e animada. É possível considerá-la como sendo um embate, ou uma oscilação entre “real” (imagem real) e “ilusório” (imagem desenhada, pintada), ou Regimes Diurno e Noturno, respetivamente. O que também, sob determinado ponto de vista, demonstra a progressão do desenvolvimento de seu trabalho. Ou seja, percebe-se o evoluir em direção (aparente) à imagem filmada, real (ao Regime Diurno). Notadamente, ao se observar os seus dois mais recentes trabalhos - Impromptu (2017) e Esfinge Urbana (2020). Porém, estes apresentam um maior distanciamento de um guião pré-formatado, de uma mensagem mais ou menos objetiva - e que se encontra nos trabalhos anteriores. A própria curta Esfinge Urbana (2020) nas suas repetições, ainda “quebra” com a ilusão do movimento perfeito, já que trabalha somente com a sucessão de fotografias.
É muito interessante também perceber que, na sua obra de maior destaque, La Noche Del Océano (2015), em que Hérnadez fala da “noite” e da “água”, e é mais intimista, a artista estava grávida. Ou seja, “redonda”, “centrada”, e literalmente, “com água dentro de si”. E foi exatamente a curta que animou integralmente. A obra mais noturna, no seu momento noturno (tendo como referência o trabalho de Durand).
Portanto, a obra de María Lorenzo Hernández se apresenta como resultado do trabalho de uma mulher de sua época. Uma das muitas mulheres ativas como artista, professora e pensadora de sua Arte. Que se expressa, vive e trabalha sendo coerente e se desenvolvendo alinhada com a sua natureza, mesmo durante o “dia”.