1. Introdução
A análise crítica às categorias, conceitos, indicadores e índices do planejamento urbano, bem como da arquitetura e do urbanismo, que, de forma universal ou unilateral expressam e organizam o conhecimento e a análise sobre a cidade, é o ponto de partida desse trabalho. Tal crítica refere-se à construção, seleção e aceitação de processos que tentam apreender diferenças e desigualdades, porém, resultam em inevitáveis fragmentações teórico-práticas. Entre tantos dados, números e descrições que regem as intervenções urbanas do Estado, das universidades, entidades e agências institucionais e intergovernamentais, citamos os conceitos, como exemplo, de assentamentos informais, assentamentos precários, aglomerados, assentamentos subnormais, assentamentos de interesse social, vilas, favelas, ocupações organizadas, loteamentos privados irregulares, que classificam homogeneamente distintos modos de morar dos pobres.
Por meio de proposição teórico-metodológica associada a uma perspectiva fenomenológica, propomos transformar o diagnóstico do território (a partir de categorias-conceitos estabelecidos sob critérios e definições institucionais), constituinte dos vigentes processos de tomada de decisão relativos à produção da cidade, em leitura do lugar (a partir da incorporação de narrativas de moradores que produzem espaços da vida cotidiana). No horizonte, trata-se de compreender as dinâmicas urbanas e possibilitar outro jogo de linguagem a se fazer presente na arena política contemporânea.
O termo jogo de linguagem, cunhado por Wittgenstein, refere-se à prática do uso da linguagem atrelada aos significados das palavras, mas também ao modo como os outros agem de acordo com o uso das palavras. “Dar nome a algo é semelhante a afixar uma etiqueta em uma coisa”, diz Wittgenstein (2009, p. 22), mas a quantidade de denominação dessa coisa faz parte do jogo que se amplia com a variedade de instrumentos da linguagem e seus modos de aplicação. Ao se referir ao processo de ocultamento da denominação das coisas, Sanín-Restrepo (2016) amplia o significado do termo jogo da linguagem à medida que, na contemporaneidade, se intensifica as inevitáveis relações de poder apontadas sutilmente por Wittgenstein.
Portanto, a proposta de, primeiramente, desvelar o jogo de linguagem vigente da cidade contemporânea, exige entendê-lo para além de suas estruturas comunicativas. Somadas às estratégias usadas por arquitetos, urbanistas, Estado, entidades, agências e instituições, permeadas em suas relações, o jogo de linguagem dá forma à lógica da prática (Bourdieu, 2009), específica, controlada e sistemática, carregada por regras, normas, esquemas de percepção, de pensamento, de apreciação, de ação e de reação adquiridos pela prática e acionados na prática, sempre encriptados pela linguagem técnica, científica e institucional.
No campo do projeto e planejamento urbano, categorias, conceitos, indicadores e índices, consolidados no vácuo entre a teoria urbana moderna e os problemas da cidade contemporânea, guiam métodos de análise universalmente difundidos que, por meio de ortodoxias rígidas, produzem formas urbanas genéricas e incapazes de demonstrar diferenças sociais, econômicas, culturais, territoriais, ambientais, políticas, em suas dimensões funcionais, técnicas ou simbólicas presentes em diversos contextos locais.
A partir da teoria de encriptação do poder, de Sanín-Restrepo (2016), propomos desencriptar os territórios 2 , significando abrir possibilidades de acesso ao mundo a partir da inserção de um outro jogo de linguagem que comporte a experimentação e a potencialidade de outros arranjos políticos. A proposta de leitura do lugar pretende desencriptar a cidade por meio de linhas de análise que entendem o território a partir do olhar de quem mora e ocupa, de quem cotidianamente vivencia e experimenta o espaço, fazendo-se emergir uma possível disrupção das valorizadas narrativas institucionais, técnicas e acadêmicas vigentes, ampliando-se estudos elaborados, em alguma medida, com esse propósito.3
Na primeira parte do artigo, apresentamos a proposta teórico-metodológica elaborada a partir da problematização colocada e que resultou no desenvolvimento das linhas de análise e da Plataforma Leitura do Lugar, essa última tecnologicamente viabilizada a partir do Trabalho de Conclusão de Curso da pesquisadora Carolina de Oliveira Almeida 4, atualmente em aprimoramento pelo grupo PRAXIS-EA/UFMG. A plataforma Leitura do lugar apresenta-se como resultado prático alcançado, sendo tecnologia social que permite a sobreposição de narrativas diversas - textos, fotos, vídeos, mapas - como forma de disponibilização de conteúdos para o diálogo entre instituições, agências e entidades.
Também descrevemos o percurso empírico para a construção das linhas de análise e da plataforma, elaboradas com moradores por meio de oficinas e entrevistas no campo. Em seguida, o artigo apresenta as linhas de análise, articulando-as aos resultados observados no campo e à literatura que se aproxima aos conceitos de leitura e lugar em três campos disciplinares: (i) educação, especificamente sobre o processo de leitura pelas chaves da linguagem e da narrativa imersas na cultura digital; (ii) geografia humana, sobretudo no debate relacionado à conceituação do termo lugar e sua interface com a etnografia e fenomenologia; e, (iii) desenho urbano, especialmente em relação às análises comportamentais e estudos de percepção espacial.
A proposta teórico-metodológica de desencriptação pela leitura do lugar pretende fomentar e sustentar o debate sobre os processos de decisão relativos à produção da cidade e às políticas públicas, reconhecendo-se a autoridade e o protagonismo dos moradores diante do que vivenciam em seus territórios.
2. Linhas de análise
As políticas públicas de ação, intervenção e reestruturação dos territórios apoiam-se, de modo geral, no modelo de análise problema-diagnóstico-solução, condicionado a números, normas, tratados, regras e legislações, contudo, ineficazes diante da complexidade das dinâmicas urbanas. O tensionamento entre o diagnóstico técnico-institucional do território e o conhecimento de seus moradores sobre a vida cotidianamente ali construída, justifica o deslocamento teórico-metodológico proposto.
Dentre os desdobramentos dessa lógica da prática, o diagnóstico oculta atributos, operações e ações próprias dos territórios ao achatar suas diferenças por aproximação. Ao possibilitar que as narrativas dos moradores sejam organizadas, visualizadas e representadas por meio das linhas de análise, a maior aproximação à vida cotidiana urbana é ampliada. Uma outra lógica da prática, nesse sentido, se faz possível como erupção da construção de sentido construída pelo outro.
As linhas de análise foram elaboradas como processo contínuo de ir e vir, alimentado por visitas no campo, entrevistas e oficinas com moradores. Nossa proposta teórico-metodológica está relatada no artigo Ler os territórios para DESENCRIPTAR a cidade (Morado Nascimento, Iglessias & Weimann, 2019), mas, aqui, voltaremos brevemente aos passos metodológicos, complementados em razão dos objetivos inicialmente colocados neste artigo.
O primeiro passo refere-se à decisão sobre o lugar em que a leitura seria realizada. Em razão do eixo de expansão do mercado imobiliário e dos investimentos do Governo do Estado de Minas Gerais, nos voltamos ao vetor norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), e, por meio da ferramenta Google Earth, identificamos áreas cujas formas urbanas orgânicas, sobrepostas e horizontais, bem como traçados e padrões das vias e dos parcelamentos dos lotes, fossem distintas do desenho urbano regular ou ortogonal de Belo Horizonte. A partir daí, construímos narrativas sobre esses territórios, baseadas em dados aleatórios, imprevisíveis e causais e em níveis de aproximação por escala; primeiro, por Street View e, em seguida, no campo. As linhas de análise foram definidas e redefinidas, conforme as etapas: (i) proposição das linhas de análise, alheias ao diagnóstico (normas, regras e métricas) acadêmico e institucional; (ii) pré-teste de entrevistas com moradores do vetor norte da RMBH; (iii) redefinição das linhas de análise; (iv) Oficina Leitura do lugar que eu moro com alunos da Escola Estadual Maria Carolina Campos (EEMCC)5; (v) análise dos trabalhos realizados pelos alunos da EEMCC; (vi) redefinição das linhas de análise; (vii) entrevistas com moradores em Venda Nova (vetor norte da RMBH); (viii) redefinição das linhas de análise.
Desse processo, surgiram 14 linhas de análise, descritas à frente, que organizam informações do território - capacidade urbana, capacidade natural, articulações, lógica de ocupação, atributos, linhas de separação, grandes projetos urbanos - e informações sobre o que ocorre no território - pressão socioeconômica, vulnerabilidade, percursos, equipamentos-serviços, ações, fissuras e propriedade. As linhas de análise se articulam de forma a expressar as narrativas dos moradores e, por isso, fazem emergir temáticas, trajetórias, vivências, estórias, experiências e informações subjetivas e sensíveis do lugar.
As etapas subsequentes foram: (ix) pesquisa no campo e entrevistas com moradores da Vila Mariquinhas (vetor norte da RMBH); (x) construção da plataforma digital, e (xi) análise da proposição entre leitura do lugar e diagnóstico do lugar.
A escolha pela Vila Mariquinhas fundamentou-se por dois argumentos: sua inserção em processos de disputas e reconfigurações econômico-territoriais que ocorrem no vetor norte da RMBH, como já mencionado, e por integrar o sistema de diagnóstico e planejamento das vilas e favelas da cidade, desenvolvido pela Prefeitura de Belo Horizonte por meio do Plano Global Específico (PGE)6. As entrevistas no campo orientaram-se a partir da rede de contatos disponibilizados pelas lideranças políticas da vila e pela definição de percursos em vias de grande movimento e de articulação com bairros vizinhos. As narrativas coletadas estabeleceram possibilidades de elaboração e redefinição das linhas de análise, sobrepondo eixos, temas, discursos e significados, representadas na Figura 2.
Leitura
No momento em que as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs) se fazem fortemente presentes em diferentes dimensões da vida cotidiana, voltamo-nos ao conceito de leitura pelas chaves da linguagem e da narrativa. Reconhecemos que, na cidade contemporânea, nossas histórias apresentam-se tanto em "suportes multi e hipermidiáticos capazes de articular passado, presente e devir em redes de dispersão discursiva" quanto pelas nossas experiências construídas e significadas (Rodrigues, 2019, p. 102).
"Os humanos pensam em forma de narrativas e não de fatos, número ou equações", afirma Harari (2018, p. 21). Sem dúvida, é por meio das narrativas que se faz possível conhecer o outro e a sua realidade, pressupondo-se que queremos descobrir e entender como as pessoas, individualmente e coletivamente, constroem o mundo social e as coisas que decorrem dele. Colocamo-nos, portanto, longe da unilateralidade cientificista de causas, princípios e procedimentos, previamente construídos diante do que queremos conhecer.
Nessa direção, Brunner (1991, p. 5) aponta que as narrativas operam como um instrumento mental de construção de realidade, portanto, organiza a estrutura da experiência humana e tem as seguintes propriedades, aqui sintetizadas: (i) diacronicidade narrativa, como exposição de eventos que ocorrem com o passar do tempo atribuído em seu próprio ritmo; (ii) particularidade, onde narrativas têm acontecimentos particulares como sua referência ostensiva; (iii) vínculos de estados intencionais, onde pessoas agem em um cenário e os acontecimentos são pertinentes a seus estados intencionais enquanto estiverem atuando, como convicções, desejos, teorias, valores, etc.; (iv) composicionalidade hermenêutica, onde a compreensão da história depende da capacidade humana de interpretar; (v) canonicidade e violação, onde o enredo implícito da história é quebrado, violado, ou desviado; (vi) referencialidade, onde a “verdade” narrativa é julgada por sua verossimilhança e não por sua verificabilidade; (vii) genericidade, onde os gêneros são maneiras livres, mas convencionais, de representar situações humanas; (viii) normatividade, como forma de produzir histórias cercada por circunstâncias interpretáveis; (ix) sensibilidade de contexto e negociabilidade, sendo o discurso narrativo na vida cotidiana instrumento viável para negociação social e cultural; (x) acréscimo narrativo, como continuidade provida por uma história social construída e compartilhada.
Inferimos, portanto, que as narrativas não são reais, mas construídas nas mentes humanas, ou seja, o mundo individual e coletivo é organizado e representado por narrativas, ainda que saibamos que há algo que sempre escapa, algo que não é dito, algo que é subtraído ou é adicionado. O psicanalista lacaniano Christian Dunker (2015) explica que é o mundo real escamoteado como realidade, sempre por meio da linguagem, que a torna coesa, coerente e homogênea, portanto, dotada de sentido a cada um.
Ler narrativas significa considerar "a relação dialógica entre quem registra seu pensamento verbalizado, em suportes fora da mente, com quem se encontra com esses registros, disposto ao diálogo", que se amplia como lugar do encontro entre homens - autor e leitor -, cada um com seus saberes, suas vivências e suas experiências (Arena, 2020, p. 20).
Na contemporaneidade, as TDICs permitem construir e disseminar narrativas (realidades) individuais, coletivas, colaborativas, públicas e em rede que "redimensionam o próprio lugar do autor e do leitor" (Rodrigues, 2019, p. 105), potencializando a experiência do pensamento pela “criação de novos padrões de integração de mídias (hibridização), de representação de fatos reais ou imaginários, encadeados logicamente (antes/depois), articulando objetividade e subjetividade por meio de palavras, imagens, sons, vídeos compartilhados pela web” (Valente & Almeida, 2014, p. 38).
As TDICs tanto potencializam exponencialmente a disseminação de narrativas quanto ressignificam o lugar que cada um, autor e leitor, ocupa no mundo social. Portanto, outro jogo de linguagem se faz possível. O estar no mundo se reconfigura, enriquece a sensibilidade e amplia as capacidades comunicativas, inter-relacionais e cognitivas, segundo Rodrigues (2019).
A possibilidade de disseminação de histórias particulares por meio de narrativas digitais postadas na web, (...) fortalece os múltiplos letramentos, uma vez que permite que agentes e culturas locais não sejam ignorados ou apagados, mas, ao contrário, sejam colocados em contato com os letramentos valorizados, universais e institucionais (Rojo apud Rodrigues, 2019, p. 109).7
A leitura passa a ser lugar de trocas dialógicas culturais, transitórias e instáveis que se modificam e se complexificam ininterruptamente à medida que os homens realimentam suas vivências e experiências (Arena, 2020). É disso que se trata a leitura do lugar proposta: em formato de plataforma digital, alimenta-se por outro jogo de linguagem. Na cidade contemporânea, torna-se lugar de contato inserido na cultura tecnológica entre, por um lado, Nós e as realidades valorizadas, universais e institucionais, e, por outro lado, os Outros e suas realidades diferentes, ignoradas e apagadas. Em outras palavras, as narrativas dos lugares dos outros, inseridas tecnologicamente como outro jogo de linguagem, tornam-se protagonistas ou contrapontos ao diagnóstico urbano especializado.
4. Lugar
Formulado em momento de crítica à invisibilidade da experiência do território pelas teorias e modelos generalistas (quando compreendido exclusivamente sob o olhar tecnicista e institucional), o conceito lugar tem como objetivo, desde suas primeiras formulações, maior atenção ao modo como as pessoas atribuem valor, experimentam e interpretam os lugares que habitam (Tuan, 1990). Apesar do termo abrigar diversas conceituações e interpretações, sua definição mais difundida abriga duas definições complementares se consolidaram no campo da geografia humana (Castree, Kitchin & Rogers, 2003): (i) o lugar enquanto locus da identidade de um indivíduo ou comunidade; e (ii) o lugar enquanto escala da vida cotidiana.
Nas abordagens mais próximas à primeira definição, a identidade dos lugares é geralmente compreendida a partir, por um lado, da construção e manutenção de vínculos sociais, e, por outro lado, do papel que exerce sobre as relações de poder, resistência e luta (Creswell, 1994). Enquanto locus da identidade, o lugar é entendido não só como parte da formação e regulação de comportamento do sujeito, mas também como um processo que envolve relações sociais de cooperação e/ou antagonismo entre agentes. A compreensão da identidade dos lugares enquanto processo é importante para reconciliar o conceito com um sentido global de lugar (Massey, 2000), no qual o lugar é nó de interação entre redes sociais, econômicas e políticas, estas entendidas como manifestações locais de macroprocessos em vez de apenas emergirem de contexto histórico específico, ampliando sua capacidade de resistência à injustiça social, exclusão e desigualdade.
Já as abordagens mais próximas ao lugar enquanto escala da vida cotidiana, investigam o modo pelo qual os agentes produzem geografias locais em resposta a diferentes contextos, sendo o lugar marcado pela experiência direta do mundo e do ambiente em que se vive, dimensão fundamental para o entendimento do cotidiano na cidade, sendo campo de longa tradição na geografia humanista e nos estudos urbanos. No campo dos estudos urbanos, o conceito de lugar como escala da vida cotidiana se desenvolve em resposta à racionalização sistêmica da análise, representação e planejamento da cidade, tendo influência de diferentes autores, entre outros, Henri Lefebvre, Guy Debord, David Harvey, Jane Jacobs e Richard Sennett.8
Nas linhas de análise propostas, seja como locus da identidade, seja como escala da vida cotidiana, o lugar, conforme aponta Massey (1994), não é uma unidade espacial estática, sendo definido a partir de interações sociais dinâmicas, bem como não possui bordas definidas, uma vez que se delimita de modo relacional. Ainda segundo Massey (1994), o lugar não possui identidade única, e lida com conflitos internos, sendo sua especificidade continuamente reproduzida por meio de variadas determinações. Dessa forma, argumentamos que o principal desafio que se apresenta à construção das linhas de análise é assimilar a leitura do lugar para além de seus atributos físico-funcionais. Para tal, utilizaremos o sentido do lugar, identificado pelo campo da geografia humanista (Cresswell, 1994; Del Rio, 1990), como conjunto de percepções, experiências e atitudes que os atributos de determinado lugar despertam nas pessoas.
Para Canter (1977), o sentido do lugar incorpora três esferas de consciência - atributos físicos, atividades e sentido -, ponto de partida que adotaremos para relacionar a leitura do lugar às linhas de análise, sistematizando autores que transpuseram conceitos para os campos do planejamento urbano e do desenho urbano.
Na Figura 3, a primeira esfera, FORMA, abriga aproximações com o campo da morfologia urbana interessado em “compreender a lógica de formação, evolução e transformação dos elementos urbanos, e de suas inter-relações, a fim de avançar na identificação de formas mais apropriadas, cultural e socialmente, para a intervenção na cidade existente e o desenho de novas áreas” (Del Rio, 1990, p. 86). Esse objetivo, herdado principalmente do urbanismo formalista de Ildefons Cerdá, Camillo Sitte e Raymond Unwin, inclui a escola de análise tipológica italiana, representada por Saverio Muratori, Aldo Rossi e Carlo Aymonino, busca a leitura estrutural do tecido urbano, em Philippe Panerai, e dialoga com estudos de sintaxe espacial na interface com a segunda esfera do diagrama, sobretudo em Bill Hillier.
Trata-se de um amplo campo de análise da forma urbana onde os atributos do território são preferencialmente considerados como variáveis independentes da construção social do espaço, com diferente peso dado ao olhar técnico especialista e à permeabilidade às demais esferas representadas no diagrama, a depender do autor e finalidade da análise. Importante dizer que, entre as três esferas de constituição do sentido do lugar, FORMA é tradicionalmente acionada com maior frequência enquanto subsídio para o desenho urbano e formulação de políticas urbanas.
A segunda esfera - ATIVIDADE - abriga as abordagens de análise dos usos voltados para a compreensão e representação da causa-efeito mais direta entre o comportamento humano e o ambiente físico-espacial. Dialogando com o campo da psicologia, sociologia e geografia humana, esse tipo de abordagem é encontrado, conforme aponta Del Rio (1990), nos trabalhos, por exemplo, de Jon Lang, Donald Appleyard e Ian Gehl, além de estudos localizados na interface com a esfera FORMA. A abordagem inclui ainda os estudos da chamada geografia do comportamento (behavioural geography) e da geografia da cognição (cognitive geography) que tratam do comportamento baseado no conhecimento do ambiente, situado na interface entre a segunda e a terceira esfera representada no diagrama - SENTIDO -, uma vez que os autores desse campo se interessam pelo que as pessoas fazem no espaço e porque fazem, reconhecendo que habitam simultaneamente em um mundo tanto objetivo e físico quanto subjetivo de valores, significados e percepções.
A terceira esfera - SENTIDO -, denominada a partir dos termos concepções e imagens, inclui tanto os esforços centrados na análise visual da paisagem urbana, quanto aqueles centrados nas percepções do meio ambiente. Segundo Del Rio (1990, p. 91), a análise visual busca apreender “a lógica condicionadora das qualidades estéticas urbanas”, ressalvando o modo como são permeadas pelos sistemas de valores do pesquisador - por exemplo, os trabalhos de Gordon Cullen, os estudos de “gestalt” alemã, o diálogo com a semiótica de Charles Sanders Peirce e o diálogo com a linguística de Ferdinand de Saussure e Claude Lévi-Strauss. Também na esfera SENTIDO, a percepção do meio ambiente se desenvolveu principalmente a partir de conceitos e métodos da psicologia, sobretudo nos trabalhos de Jean Piaget, e a partir dos esforços de apreensão das imagens públicas e memórias coletivas, com destaque para a análise da percepção ambiental sob o ponto de vista do seu usuário, tal como trabalhado por Kevin Lynch, Brian Goodey, Donald Appleyard e Antoine Bailly.
O diálogo com a terceira esfera do diagrama de Canter (1977) inclui ainda autores da chamada geografia da percepção (Tardin, 2018), percepção ambiental e da fenomenologia aplicada à geografia (Serpa, 2019), que partem da premissa de que as dinâmicas socioculturais produzem marcas físicas numa paisagem e, ao mesmo tempo, são influenciadas por essa paisagem física em um processo contínuo de percepção, concepção e ação. O campo da geografia da percepção e da percepção ambiental é caracterizado pelo diálogo com a fenomenologia de Merleau-Ponty, presente por exemplo, segundo Amorim (1992), no conceito de geosofia de John Wright, na geografia comportamental de William Kirk e David Lowenthal, no uso da linguagem por Anne Buttimer e no conceito de topofilia de Yi-Fu Tuan.
Por fim, também na esfera SENTIDO, a chamada geografia não representacional trabalha com “entendimento alargado do sujeito e da sua capacidade de ação, considerando‑os de modo relacional, sendo a sua ação potenciada ou constrangida pelas materialidades com que se relaciona" (Paiva, 2017, p. 160). Para ampliar o conceito de percepção e do modo como o ambiente afeta e é afetado pela ação humana, Paiva (2017) sugere utilizar o conceito de afeto, argumentando que a ação humana não é apenas determinada pelo pensamento consciente, mas também determinada por vários processos não‑representacionais, como sensações, sentidos, sentimentos, pulsões, hábitos, reflexos fisiológicos automáticos, entre outros.9
5. Leitura do lugar e diálogos com outras abordagens
O breve mapeamento de abordagens envolvidas na constituição do lugar, a partir das três esferas 'forma', ‘atividade’ e 'sentido', distante de delinear o acúmulo de conceitos e metodologias existentes ou estabelecer o estado da arte, possibilita ver as linhas de análise propostas frente à tradição teórica do campo do urbano. Para tal, o Quadro 1 apresenta uma síntese de como cada linha proposta articulou-se com as esferas forma no território, atividade no território e sentido do morador, configurando-se em leitura do lugar.
LINHA DE ANÁLISE | DIÁLOGO COM MORFOLOGIA URBANA E COMPORTAMENTO AMBIENTAL |
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CAPACIDADE URBANA do território | A Capacidade Urbana parte da diferenciação entre a mesoestrutura e infraestrutura (CARVALHO, 1999). Aqui, a mesoestrutura (sistemas de água, esgoto, coleta de lixo, energia, pavimentação, etc.) complementa as análises tradicionais da morfologia urbana (mais atenta aos elementos urbanos, tais como, loteamento, vias, arborização, etc.). A opção traz para a escala do lugar a análise de estruturas físicas que, na análise urbana, usualmente são tratadas por meio de indicadores e dados regionais generalistas. A observação dos técnicos in loco é complementada pela espacialização das observações de moradores em relação, sobretudo, às restrições de acesso a uma capacidade urbana desigual no território e articulada às características físico-ambientais e às ações no território. |
CAPACIDADE NATURAL do território | A Capacidade Natural descreve as condições topográficas e geológicas do território (o que estamos designando por infraestrutura) com ênfase na análise da sua capacidade em relação ao assentamento de casas, edifícios, serviços, instituições e ações. No campo da morfologia urbana, a identificação dos elementos do relevo e da paisagem resulta em um tipo de análise encriptada e de difícil visualização, quase sempre desarticulada de outras informações "do território" e "no território". Nossa estratégia é atrelar, de forma ampla, a leitura da capacidade natural ao cotidiano do morador por meio de questões que exploram: (i) como é o terreno onde está a casa em relação ao tamanho e inclinação; (ii) a existência ou não de árvores ou córregos, por exemplo; e, (iii) incluindo-se a análise das unidades de paisagem, sub bacias e articulações ecológicas. |
ARTICULAÇÕES do território | As Articulações dialogam com a tipificação de tecidos urbanos no campo da morfologia urbana e buscam entender a relação entre os elementos da estrutura urbana e seus processos de crescimento. Nas linhas propostas, a tipificação aparece em dois momentos: aqui, por meio da identificação de padrões de articulação do território na cidade, e na linha "lógica de ocupação do território", conforme explicado a seguir. O objetivo é identificar a continuidade/descontinuidade morfológica do território em relação à mancha urbana por meio de três tipos: (i) contínuo integrado, no qual o território está inserido na mancha urbana sem interferências das barreiras do meio físico ou antrópico; (ii) o contínuo desarticulado, no qual o território está inserido na mancha urbana, mas apresenta interferência das barreiras físicas ou antrópicas; e (iii) descontínuo, no qual o território está visivelmente desarticulado da mancha urbana. A tipificação requer uma primeira análise a partir do olhar técnico, mas, durante o processo, é complementada por informações obtidas junto aos moradores por meio das seguintes colocações - "é fácil ou difícil visitar outros bairros de Belo Horizonte", "como vocês se sentem em relação à capital e aos bairros próximos", "quais os lugares da cidade de Belo Horizonte que vocês conhecem", "quais outros lugares vocês costumam ir fora do próprio bairro". |
LÓGICA DE OCUPAÇÃO do território | A Lógica de Ocupação caracteriza a ocupação do território a partir de quatro categorias: (i) aglomerado; (ii) parcelamento por meio de loteamento; (iii) parcelamento por meio de ocupação; e (iv) conjunto habitacional. A linha avança em relação à abordagem tradicional da morfologia urbana, buscando registrar e tipificar a evolução da mancha de modo articulado à percepção do morador sobre "qual a parte mais nova e mais antiga do seu bairro", "para onde o bairro está crescendo", "qual direção o bairro cresce", e ainda, "dentro do próprio bairro, quais os setores ou regiões crescem". |
ATRIBUTOS do território | Os Atributos têm como objetivo apreender os elementos de microescala e de arquitetura que caracterizam o espaço construído no território. Para tal, registram-se dados sobre: (i) o parcelamento (tamanho do lote, números de lote por gleba); (ii) o sistema viário (pavimentação e largura das vias); e, (iii) as edificações (tipo, material, tamanho). Tal como nas outras linhas, organiza a percepção do morador sobre “como descreveria as ruas do seu bairro”, “como descreveria os prédios e casas do seu bairro”, “qual o tamanho das suas casas e quantas pessoas moram com você” e o “o que vocês acham da casa de vocês”. A inclusão de atributos via percepção permite desconstruir o olhar externo da tipificação arquitetônica e dar maior visibilidade a atributos que, pelo olhar do Outro, estruturam e dão sentido ao lugar. |
LINHAS DE SEPARAÇÃO do território | As Linhas de Separação são tradicionalmente tratadas no campo da morfologia urbana por meio da caracterização das demarcações naturais ou construídas que fragmentam territórios, incluindo as bordas naturais (relevo, curso d'água, vegetação) ou antrópicas (sistema viário, controles de acesso e circulação, muros, cercas, câmeras, grades, etc). Buscamos avançar na leitura do Outro para além do mapeamento das barreiras, incluindo-se meios de qualificar a descrição e avaliação pelo morador em relação ao modo como dificultam deslocamentos, interações e atividades. |
GRANDES PROJETOS URBANOS do território | Os GPUs têm como objetivo incorporar as rupturas territoriais e expectativas geradas por obras de mobilidade, grandes equipamentos, requalificações urbanas e condomínios, e seus impactos sobre o cotidiano (em relação ao aluguel, rotina de compras, mobilidade urbana, etc.). A percepção dos moradores sobre essa característica do território é organizada em torno de colocações sobre “se conhecem algum grande projeto perto do bairro”, “o que acham dele” e “o que mudou na vida de vocês por causa dele”. |
PRESSÃO SOCIOECONÔMICA no território | A Pressão Socioeconômica estabelece a correlação entre um conjunto de indicadores de dinâmica imobiliária e das ações no território, buscando verificar a pressão e os impactos decorrentes da valorização da terra no bairro e entorno. Trata-se de um esforço de entender a pressão socioeconômica não a partir dos agentes do mercado (proprietário de terra, imobiliárias, incorporadores, loteadores, etc.), mas a partir dos moradores e a percepção que possuem desse processo. Interessa, nesse sentido, identificar porque determinada família escolheu morar na área, há quanto tempo moram no bairro, de onde vieram, se já foram procurados pelo mercado ou se sabem de alguém que teve que sair do bairro e porque. |
VULNERABILIDADE no território | A Vulnerabilidade espacializa ações associadas à percepção de insegurança buscando mapear as condições de vulnerabilidade nas quais os moradores se inserem ao enfrentar eventos adversos. As informações obtidas geraram uma diferenciação entre a vulnerabilidade informacional (acesso à informação), vulnerabilidade programática (acesso aos serviços urbanos do Estado) e vulnerabilidade prática (capacidade de pensar e agir). Buscamos saber se os moradores se sentem ameaçados ou inseguros no bairro, por quem e quando, se enfrentam algum tipo de dificuldade, a quem recorrem quando têm algum problema, se procuram se informar sobre o que está acontecendo e como o fazem. |
PERCURSOS no território | Os Percursos tradicionalmente identificam a variedade de fluxos que articulam determinados territórios. A intenção é avançar na caracterização das distâncias urbanas que fragmentam os territórios, articulando diferentes conceitos e métodos de análise urbana. Dessa forma, busca-se articular e mapear: (i) a percepção das distâncias entre o moradores e o que se quer acessar; (ii) as condições de mobilidade (por exemplo, barreiras para a mobilidade); (iii) o modo como é feita a mobilidade interna do bairro (ônibus, carro, bicicleta, a pé); e (iv) o modo como a qualidade dos percursos afeta o deslocamento (arborização, qualidade das vias, iluminação, menores distâncias). Os moradores narram se usam ônibus, carro, bicicleta ou andam a pé, como é o caminho para sair de casa ou visitar parentes e amigos, quais distâncias percorrem e o que está longe ou perto. |
EQUIPAMENTOS -SERVIÇOS no território | A linha Equipamentos-Serviços se situa no limite entre a morfologia (estruturas existentes) e o comportamento ambiental (como são utilizadas) para caracterizar a oferta (superestrutura) de equipamentos (educação, saúde, esporte e lazer, cultura), de comércio (principalmente o que se refere a bens de subsistência, como mercados, padarias, quitandas, hortifrutis) e de serviços que amparem as atividades cotidianas. O objetivo é identificar e analisar quais são as “âncoras” do território (onde [e se] consome; onde [e se] tem lazer; onde recorrer em casos de doenças; etc.). Há um deslocamento importante no modo como o uso é mapeado a partir do modo como é percebido pelo morador e não a partir do local onde ocorre, por exemplo, pergunta-se onde o morador faz determinada atividade e não que tipo de atividade é realizada em determinado local. Pergunta-se onde o morador faz compra, passeia e se diverte no bairro e o que acha desses lugares, o que é longe e o que é perto, o que fazem ou não conseguem fazer nos dias de semana e finais de semana, o que poderia ser diferente em relação a estes equipamentos e opções, e, se não frequentam o bairro, onde vão. |
AÇÕES no território | As Ações, seguindo a tradição da análise comportamental (relação entre objetos e ações), buscam registrar e caracterizar a ocupação do espaço público e coletivo, analisando a ação do morador no território e as interações das pessoas com o espaço construído. Privilegia-se identificar a ocupação do espaço público, permanências e quais as áreas que o comportam. Evita-se, no entanto, a sistematização ou classificação de usos e esquemas quantitativos de representação e análise, opção justificada pela elaboração de mapeamento dinâmico e qualitativo do lugar. Os moradores contam onde costumam se encontrar com os amigos e o que acham desses lugares, se existe algum lugar para fazer algo junto com a família e amigos, se existe alguma área vazia perto de casa e o que acontece nela, se usam a rua, qual a rua mais movimentada ou onde tem mais comércio, por exemplo. |
FISSURAS no território | As Fissuras identificam a associação dos moradores a grupos coletivos organizados, analisando a reação ativa dos moradores diante de eventos adversos, a presença de espaços de uso e manutenção coletivos (hortas, espaços de reunião, etc.) e quem os organiza (movimento social, associação de moradores, etc.), bem como conquistas ou benefícios alcançados. A abordagem no local inclui saber se o morador participa de algum grupo como associação de bairro, como se organizam e quais os objetivos, dificuldades, benefícios desse grupo, o que pensam do Estado e se consideram politizados. |
PROPRIEDADE no território | A Propriedade incorpora à leitura do lugar dado geralmente tratado em escalas regionais ou mapas censitários, ou seja, a caracterização da relação de propriedade do imóvel (terra/casa) com o morador. A intenção é visibilizar o papel dos processos de controle e comercialização das casas e seus agentes, os diferentes entendimentos de propriedade e aquisição característicos do mercado informal, e a ação dos agentes (imobiliárias, proprietários, incorporadores) O morador informa se a casa é comprada ou alugada, há quanto tempo paga aluguel, se deseja comprar casa própria, quando comprou ou construiu e se possui outras propriedades. |
Fonte: Elaborado pelos autores
6. Desencriptar o lugar
Os primeiros esforços de leitura do lugar realizados em nossas pesquisas, descritos ao início do artigo, operam mais próximos da esfera SENTIDO utilizando, para além dos conceitos de leitura e lugar e suas implicações teórico-metodológicas sobre as linhas de análise propostas, abordagens que dialogam com debates do campo da cartografia social e etnografia urbana.
A aproximação com a cartografia social inclui o debate sobre a crise do mapa (Lévy, 2008) e as reflexões em relação ao uso dos Sistemas de Informações Geográficas (SIG) na análise urbana, sobretudo a partir da década de 1990. Conforme lembram Acselrad e Coli (2008), mapas são abstração do mundo, elaborados a partir de algum ponto de vista, no qual o território plural, polissêmico, aberto ao aleatório e não controlável é transformado em extensão quantificada, limitada e controlada pelo gesto cartográfico. Resulta dessa prática, um produto que não é reflexo passivo do mundo dos objetos, mas intérprete de determinada verdade e instrumento que ordena e serve de suporte à ação política. Nesse sentido, um produto que tanto pode ser utilizado para agravar a encriptação da cidade, quanto potencial meio de acesso à cidade.
Nessa perspectiva, o avanço observado nas formas de mapeamento participativo e sua preocupação em reconhecer novas territorialidades e ordenamento territoriais (Acselrad & Coli, 2008), vem experienciando a mobilização de comunidades e debates locais por meio de diferentes produtos, por exemplo, cartografias efêmeras, cartografias de esboço, cartografias de escala, modelagens 3D, fotomapas, uso de GPS e sistemas multimídia de informações vinculados a mapas (Corbet apud Acselrad & Coli, 2008)10.
No debate mais próximo da geografia crítica, Crampton e Krygier (2008) chamam a atenção para os modos alternativos de mapeamento que participam desse processo, incluindo: (i) o conjunto de mapas realizados pela comunidade artística, nascidos fora das disciplinas da cartografia ou do SIG e desenvolvidas por programadores intrigados com o potencial do mapeamento; (ii) os mapeamentos correntes performativos, lúdicos, indígenas, afetivos e experimentais ou narrativos; (iii) os mapas como resistência; e (iv) o hackeamento de mapas.
O campo da cartografia social se aproxima de nosso objeto na medida em que problematiza o modo como realidades mudam a relação entre mapa e sua ação sobre o espaço por meio: (i) da atual emergência do ator espacial individual que multiplica os pontos de vista pertinentes e legítimos, onde cada indivíduo se apropria de uma maneira ou de outra de todas as escalas, sendo necessário pensar mapas que assumam a desfasagem entre áreas limitadas e as espacialidades sem margens; (ii) do reconhecimento da infinidade de modalidades de medida da distância, não somente porque elas variam segundo os atores, mas também porque trata-se de um sistema complexo e móvel; (iii) da ideia de espaços descontínuos, de territórios parcialmente recobertos, de delimitações com tempo de vida limitado; (iv) da mudança de escalas em curso que fazem aparecer o par rede/território e uma diversidade de métricas, da mais topológica à mais topográfica; e (v) das possibilidades de ligar de maneira cada vez mais estreita as teorias sobre o espaço e a fabricação dos mapas (Lévy, 2008).
No percurso de construção de uma plataforma que se propõe ler o lugar sob a ótica do outro, as experiências de uso das TDICs atreladas às cartografias críticas apresentaram desafios e potenciais. Entre os desafios, o principal é investigar novas possibilidades de vincular registros no campo (textos, imagens e vídeos) ao mapa, possibilitando outros suportes de espacialização e, sobretudo, delimitações das especificidades do lugar. Um segundo desafio refere-se à linguagem de saída das informações e os riscos da abstração da representação e, portanto, da encriptação de informações, bem como da criação de linguagem estática sem a incorporação da dinâmica dos lugares. Entre os potenciais da plataforma está o acesso possível e irrestrito dos moradores, entendido como qualquer cidadão ou agente, tanto como leitores do lugar quanto autores sobre o lugar. Outro desafio é possibilitar a leitura do lugar por meio de informações não lineares e não hierarquizadas.
Em relação à aproximação com a etnografia aplicada à análise urbana, este campo permite, conforme Magnani (2005), a articulação de um “olhar de longe e fora” com o “olhar de perto e de dentro”, evitando tanto a generalização ou a universalização da leitura da cidade quanto a fragmentação da cidade em recortes isolados. Segundo o autor, olhar de perto e de dentro equivale a olhar “a partir dos atores sociais e das formas por meio das quais eles se avêm para transitar pela cidade, usufruir seus serviços, utilizar seus equipamentos, estabelecer encontros e trocas nas mais diferentes esferas” (Magnani, 2005, p. 13). Este entendimento pressupõe reorganizar dados fragmentados em novos arranjos que não é mais nem o arranjo nativo e nem aquele com o qual o pesquisador iniciou a pesquisa, mas um arranjo que carrega marcas de ambos: mais geral do que a explicação nativa, presa às particularidades de seu contexto, e mais denso que o esquema teórico inicial do pesquisador, pois tem agora como referente o "concreto vivido".
A incorporação dessas reflexões na construção e operacionalização das linhas de análise propostas foi, no entanto, interrompida em março de 2020 pelas medidas de distanciamento social relacionados à pandemia da Covid-19 e que demandou o redesenho da pesquisa, sobretudo em relação aos trabalhos no campo com moradores. Dessa forma, partindo da experiência de construção de narrativas virtuais junto aos parceiros de pesquisa e do debate sobre o uso de tecnologias de mediação que permitem a realização de etnografias e análises de modo remoto, utilizamos as linhas de análise como suporte e referência para a escuta das narrativas e as interações no ambiente virtual. Complementou-se a esse exercício, a aproximação das linhas de análise, da leitura do lugar e da plataforma às atividades do Ensino Remoto Emergencial (ERE) referenciadas ao ensino de projeto de arquitetura e urbanismo.
Além disso, outra frente desdobrada neste momento é o projeto de extensão “Janelas afora, portas adentro”, onde moradores de territórios populares foram convidados a enviarem vídeos curtos sobre o que desejariam mostrar para a cidade, o que veem pelas janelas de suas casas e o que encontram portas adentro.11 O projeto teve como objetivo: (i) dialogar, reconhecer e produzir conhecimento permeado pelos saberes e pelas práticas populares, fomentando processos de leitura e ação na cidade em proximidade com as realidades e demandas dos territórios populares; (ii) cartografar experiências e vivências dos moradores acerca da moradia e do lugar onde moram; (iii) produzir narrativas urbanas a partir destes saberes, práticas e perspectivas; e (iv) produzir narrativas nas quais o conhecimento científico dialoga com outros diversos saberes que produzem cotidianamente a cidade. Para além dos objetivos acima, os vídeos enviados pelos moradores e o processo de organização dos mesmos cumpriram importante papel no tensionamento das linhas de análise e da Plataforma Leitura do Lugar, permitindo-se ajustá-las em suas finalidades.
Entretanto, afirmamos que a plataforma online já nos possibilita: (i) codificar os dados, gerenciar as fontes de informação e aplicação de mecanismos de busca, a partir da proposta teórico-metodológica das linhas de análise; (ii) organizar as informações qualificadas, representando a leitura do lugar feita pelos moradores e amparada por suas narrativas, fotografias, mapas e montagens, coletadas em visitas no campo. As narrativas de acordo com as linhas de análise e sua interface de representação são, dessa forma, publicamente disponibilizadas, possibilitando a leitura do lugar construída sob a ótica dos moradores confrontados aos diagnósticos urbanos institucionais.
Nesse momento, quando vivemos o agravamento da pandemia do coronavírus no Brasil, e em respeito e solidariedade às famílias e amigos dos mais de 689 mil mortos (dados de novembro de 2022), continuamos a pesquisa realizando rodas de conversa virtuais com moradores de territórios populares, ampliando-se esforços em torno do registro das narrativas sobre os lugares e da inserção de outro jogo de linguagem na arena política.