Introdução
Ao pensar a relação entre seres humanos e o ambiente natural, foi possível perceber certa coexistência, apesar das constantes tentativas da nossa espécie em ‘dominar’ um ‘ambiente selvagem’. Nesse processo homens e mulheres foram responsáveis por transformar o ambiente tornando-o cada vez mais habitável para a sua espécie. Por outro lado, um conjunto incontável de espécies animais e vegetais, ao longo da história, também demonstraram capacidade de resiliência às constantes ações da espécie humana. Entretanto, na atualidade, a relação entre reino animal e vegetal vem se tornando cada dia mais intensa, uma vez que estamos transformando o ambiente a uma velocidade muito acelerada, mudando o equilíbrio histórico dessa interação e assim colocando em risco a sustentabilidade da produção de alimento.
A Revolução Industrial marcou o início de um processo de intensa interferência das atividades humanas no ambiente natural. Foi após esse período (final do século XIX) que o impacto na transformação dos espaços passou a ser mais significativo. As áreas de produção de alimento passaram a ter o suporte de máquinas em vez de animais, e de insumos minerais (prontamente disponíveis para as plantas) no lugar de incorporação de matéria orgânica no solo. Essas substituições geraram aumento de produtividade e diminuição da carga de trabalho humano na atividade agrícola.
O ambiente rural passou a assumir uma conotação mais produtivista, tornando-se o local onde se produz alimentos e outros materiais e, por consequência, o espaço responsável por garantir o sustento das pessoas nas grandes aglomerações urbanas. As cidades, principalmente após a década de 1940, experimentaram um crescimento sem precedentes. O ambiente antes utilizado como espaço de produção rural, cada vez mais, passou a ceder espaço para a ‘grande produção’ em algumas regiões e em outras, para espaços abandonados. Houve então, ao longo do século XX, um processo de deslocamento da população em direção aos grandes centros - seja pela oferta de novas oportunidades, seja pelo avanço da produção em larga escala - que passaram a absorver uma parte dessa mão de obra nas (recém-instaladas) indústrias, maioritariamente.
Na Europa Ocidental, esse fenômeno ocorreu com muito mais força até o final da década de 1950. Após esse período, os países - abalados com o final das guerras - passaram por uma outra situação: a falta de segurança alimentar. Seja pela destruição em massa ocorrida na primeira metade do século, seja pelo forte deslocamento da população rumo aos centros urbanos, constatou-se a necessidade de aumentar a produção de alimentos para alimentar uma população urbana crescente e reconstruir uma agricultura fragilizada pela guerra. Sendo assim, as nações passaram a repensar seu espaço e sua identidade, colocando em discussão outros usos e significados para o ambiente rural.
Esse processo resultou na Comunidade Econômica Europeia (e, posteriormente, na União Europeia), um tratado entre países da Europa Ocidental e que visava restabelecer a paz entre as nações e a economia local, além de garantir o abastecimento de alimentos para a população. A formação desse poderoso bloco econômico só foi possível a partir de um primeiro passo: uma Política Agrícola Comum (PAC). O intuito do acordo comum era facilitar o comércio entre as nações e fortalecê-las internamente, dando oportunidades de geração de renda aos indivíduos e garantindo o abastecimento das cidades.
Do ponto de vista econômico, o interesse em estabelecer uma política agrícola comum entre os estados membros, era decorrente da necessidade de manter um grupo importante para o desenvolvimento das nações: os agricultores, uma vez que eram fornecedores de alimento in natura para a população e de matéria-prima para um parque industrial em crescimento. Esse mecanismo foi capaz de permitir que os Estados concentrassem forças suficientes para reorganizar suas economias.
Do ponto de vista social, esse acordo permitiu a manutenção de uma identidade cultural reconhecida por todos os Estados membros: a do camponês. A justificativa da manutenção da identidade camponesa, segundo o estudo apresentado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (Carvalho, 2016), foi o ponto em comum encontrado pelos Estados membros no período que antecedeu a criação do acordo propriamente dito. Entre as nações europeias daquele período, apesar das grandes diferenças de perfil, havia uma identidade agrícola e rural comum e que, naquele momento, foi percebida como um fator de agregação de uma Europa dividida.
Portugal iniciou sua aproximação da CEE no final da década de 1970 e conseguiu ingressar em 1986. Segundo Figueiredo (2011), em relação ao contexto português, foi a partir desse período que os territórios rurais portugueses passaram por processos profundos de transformação. As transformações citadas pela autora estão diretamente relacionadas às exigências das políticas agrícolas do bloco econômico, que, independentemente da situação política e econômica de Portugal no momento de seu ingresso, tiveram um grande impacto no ambiente rural.
A Política Agrícola Comum, desde então, sofreu alterações e, apesar de nunca abandonar seu caráter produtivista, passou a beneficiar também espaços rurais com objetivos para além da agricultura industrial, como a multifuncionalidade das propriedades rurais, por exemplo. As transformações dentro da PAC fizeram surgir uma visão mais abrangente dos espaços, muitas vezes dissociando o rural do agrícola.
Situada na porção nordeste de Portugal, a região de Trás-os-Montes, principal objeto de análise nesse artigo, sofreu com o êxodo de seus habitantes e o envelhecimento populacional. E, na atualidade, procura reverter a situação de ocupação dos espaços rurais esvaziados através do fortalecimento das redes locais. Fato esse perceptível no esforço das populações locais em valorizar suas tradições seja por meio dos alimentos tradicionais, do turismo ou na difusão e aprimoramento dos costumes no trabalho com a terra.
Assim apresentamos nesse artigo uma pesquisa que tem como foco principal a agricultura biológica e sua capacidade de atrair novos habitantes, notadamente jovens agricultores, e qual o papel deles num processo de desenvolvimento territorial endógeno que valoriza o campo enquanto um espaço comum de convivência. Apresentamos inicialmente um breve histórico da Política Agrícola Comum (PAC), mais especificamente do Pilar que trata o Desenvolvimento Rural. Em seguida apresentamos a metodologia, os resultados alcançados com a pesquisa, para então finalizar com as considerações finais.
Demandas e consequências da PAC: aumento da produtividade, êxodo, excedentes
No final da década de 1950, na Europa pós-Segunda Guerra Mundial, o interesse em reconstruir as nações impactadas pelas guerras era claro e urgente. Além da escassez de alimentos, percebia-se também a necessidade de fortalecimento cultural, uma vez que não foram apenas as estruturas físicas das cidades que haviam sido destruídas pelos combates. Desta forma, a conformação de uma política agrícola comum, entre as primeiras nações que compuseram esse tratado, estava ancorada em dois aspectos que mereciam muita atenção: a necessidade de formatar uma estrutura agrícola produtiva capaz de alimentar muitas nações a um preço acessível e a manutenção da identidade cultural desses mesmos povos.
É possível encontrar na literatura algumas opiniões divergentes em relação à importância do surgimento da PAC. Segundo Calvário (2010), inicialmente, o objetivo era criar um espaço para alimentar uma agroindústria em crescimento. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas e dos interesses políticos entre os Estados membros, o propósito era alimentar um parque industrial local que atenderia aos cidadãos de seus países, ainda que de maneira desigual e relativa à sua importância dentro da comunidade europeia.
Em contrapartida, Nascimento (2005) não nega um interesse produtivista dentro da política, mas ressalta que o seu caráter protecionista foi o motor daquilo que considera como o traço pluriativo dos agricultores dentro do bloco. Para o autor, o fato da política proteger propriedades menos produtivas para a manutenção de uma identidade rural, é o que os fortaleceu perante a entrada do capitalismo nas áreas rurais. Segundo ele, essas propriedades não teriam condições de enfrentar sozinhas a modernização das estruturas rurais e acabariam por desparecer.
No entanto, o sucesso do modelo gerou certa desestruturação rural ainda que o objetivo fosse o de proteger a identidade diretamente ligada à produção rural ou o de fortalecer o desenvolvimento de um parque industrial altamente dependente da produção agrícola. O mecanismo de funcionamento dessa política agrícola mostrou-se extremamente protecionista aos olhos dos demais países que não faziam parte do bloco europeu. Uma vez que, dentro do bloco, os agricultores estavam assegurados com a comercialização da sua produção e com auxílios no que dizia respeito ao aumento de tecnologia e produtividade, rapidamente foi possível transformar a escassez de alimento em uma crise de superprodução.
Isso forçou o bloco a investir cada vez mais em subsídios para garantir a renda de seus agricultores, impactando diretamente o mercado mundial. Com uma oferta maior de alimentos, o objetivo dos Estados membros passou a ser o de exportar esse excedente e ampliar o acesso a mercados fora do bloco, no sentido de aliviar os gastos de manutenção da renda dos agricultores, estabelecendo o início de um conflito com o funcionamento do mercado mundial. A política garantia aos agricultores do bloco um preço mínimo para a produção ao mesmo tempo em que sobretaxava qualquer produto agrícola de fora do bloco. Ao garantir a renda e a produção de agricultores dentro do bloco europeu, a PAC garantiu aos países uma ‘quase’ autossuficiência em produtos primários, impactando a forma como o mercado internacional de bens primários havia se organizado até então.
Internamente, entre os Estados membros, apesar dos bons resultados em termos de produtividade, foi uma política que estimulou o esvaziamento das áreas rurais. Os benefícios que eram oferecidos remuneravam os agricultores por capacidade produtiva, estimulando o aumento em área das propriedades rurais. À medida que se aumentava o tamanho das propriedades (junto com o investimento em maquinário e tecnologia), o número de pessoas no campo diminuía, era uma relação inversamente proporcional (Calvário, 2010).
Assim, apesar das intenções inicias de proporcionar a manutenção da identidade local, a segurança alimentar e a estabilidade econômica, a política agrícola comum acabou gerando desigualdade, desemprego e exclusão no campo. Essas consequências foram sendo remediadas com o passar dos anos pela própria Comunidade por meio de constantes reformulações estruturais da PAC. De acordo com Nascimento (2005), uma boa parte do sucesso obtido com as reformas do início dos anos 1990 foi consequência dos esforços iniciais do bloco na proteção da identidade camponesa. Segundo o autor, o camponês possui a pluriatividade como característica intrínseca, e a manutenção desse aspecto dentro das comunidades rurais, ainda que esvaziadas depois de um longo período, foi o que garantiu o ressurgimento da figura do agricultor de pequena escala.
Já segundo Calvário (2010), no início, a política possuía um caráter mais modernista (produtivista), mas depois admitiu um foco mais direcionado ao desenvolvimento rural. O que antes era feito apenas com base na produtividade e produção de alimentos, hoje, apresenta sinais de maior flexibilidade e amadurecimento, uma vez que a política foi progressivamente assumindo objetivos mais diversificados como: a promoção de desenvolvimento local, o aumento de empregos não agrícolas, e a interatividade entre institutos de pesquisa e inovação agrícola.
Portugal entrou para o bloco econômico europeu na década de 1980, mais precisamente, em 1986. O período político e econômico era muito complexo para o país que acabara de enfrentar guerras com suas ex-colônias e de sair de uma ditadura. Segundo Sousa (2000), a adesão de Portugal à UE ajudou a consolidar sua democracia, reorganizar sua economia e melhorar a condição de vida de seus habitantes, face aos altos investimentos recebidos desde então. No entanto, no que diz respeito à agricultura, segundo Sousa (2000), “contribuiu para a sua destruição global”.
Amaral (2006) também acrescenta que as medidas da política agrícola comum foram um excesso de nacionalismo europeu e que não foram adaptadas aos países do Sul. Para Batista & Figueiredo (2011), a PAC foi formulada com o propósito principal de garantir a autossubsistência alimentar na Europa, e este era o pensamento vigente até meados da década de 1990. Portugal acompanhou essa tendência e as consequências foram as mesmas identificadas em toda a União Europeia: esvaziamento populacional de áreas agrícolas; modernização e aumento de competitividade na produção, exigindo mais recursos externos.
No entanto, é uma fórmula que começou a mudar quando a sociedade passou a enxergar o ambiente de outra forma. No bojo das discussões sobre a sustentabilidade do planeta, a maneira como os espaços rurais eram ocupados também passou a ser questionada, bem como o modelo produtivo convencional.
A necessidade de uma política de desenvolvimento rural
Os incentivos para o desenvolvimento rural, o turismo rural e a conservação da natureza, tidos como políticas estruturais dentro da PAC, só vieram ao final da década de 1990, quando se percebeu que a política de preços sozinha não sustentaria uma aliança comum entre os Estados membros. Ainda que, desde o início do acordo, já houvesse uma preocupação com a questão social do campo, principalmente em relação à manutenção das comunidades rurais e da identidade dos países, fortemente ligada à tradição camponesa.
Contudo, é possível considerar que a preocupação com a manutenção da identidade rural foi importante enquanto argumento na criação de uma política agrícola que dissolvesse as possíveis diferenças de interesse entre os países. Calvário (2010) e Nascimento (2005) afirmam que, para além da questão identitária, era de vital importância para o bloco a sua organização econômica, ainda que, para Nascimento (2005, p. 265), “(...)a pluriatividade na CEE é uma ‘construção política’ que na primeira fase da evolução da PAC gestou-se de forma não planejada (‘inconsciente’), mas que, a despeito disso, foram criadas todas as precondições para sua proliferação e sustentabilidade (...)”.
A preocupação com o desenvolvimento rural e o foco dado a esse tema dentro da PAC manifestaram-se ao mesmo tempo que irrompeu um movimento mundial de atenção ao ambiente natural. Conceitos como o da multifuncionalidade e da sustentabilidade passaram a fazer parte de narrativas e das exigências globais para uma agricultura cada vez mais em harmonia com a questão ambiental. Em detrimento desse contexto mundial, as reformas feitas na PAC levaram em conta a conservação de áreas florestais e de recursos naturais, além do emprego de uma prática agrícola multifuncional, sustentável e orgânica, no sentido estrito, ou seja, com maior capacidade de consonância com o ambiente natural.
O início das reformas estruturais que criaram a vertente do desenvolvimento rural foi em 1992. Coincidentemente ou não, este foi o ano em que os temas da sustentabilidade e da preocupação com o ambiente natural se tornaram mundiais. Muitos países acordaram, durante a Rio921, em baixar suas emissões de gás carbônico na atmosfera e melhorar a gestão de seus espaços. Um dos conceitos que ganhou força nesse período e tornou-se um instrumento para o fortalecimento da reforma estrutural da PAC foi o de ‘multifuncionalidade da agricultura’. A visão de que a atividade agrícola poderia servir não apenas como produtora de alimentos ou ‘commodities’ deu mais força à reforma pretendida e ao significado de desenvolvimento que se discutia dentro da Comissão Europeia. A pretensão era de integrar os espaços rurais, com suas economias e seus cidadãos, valorizando práticas culturais e gerando renda, com uma (re)ocupação do campo (Comissão Europeia, 2012a).
Contudo, mesmo com a reforma, a PAC mantinha seu formato de proteção e subsídio às grandes produções. Somente dez anos após o conceito de desenvolvimento rural ter-se tornado um importante pilar dentro da PAC é que a política sofreu de fato uma reforma estrutural. Essa reforma procurou mudar a distribuição dos benefícios, principalmente no que dizia respeito às medidas voltadas ao pagamento direto ao agricultor.
Assim, mesmo com as contradições e diferenças existentes dentro da UE, foi possível constituir um novo pilar que, de fato, considerasse um desenvolvimento nos espaços rurais desvinculado da produção agrícola industrial, o Pilar II. Esse pilar se propôs a promover o desenvolvimento local em resposta ao esvaziamento sofrido nos anos anteriores. Para Batista & Figueiredo (2011), o surgimento do segundo pilar da PAC veio como uma espécie de mediador de conflitos inerentes aos territórios. Segundo os autores, a agricultura em determinados espaços não é algo fadado a desaparecer. Ao contrário, e principalmente nos espaços portugueses tidos como ‘rural profundo’, a atividade agrícola está em transição para um modelo menos industrial que consegue coexistir com as outras funcionalidades que o território possui.
A partir dessa perspectiva é possível entender que as transformações dentro dessa política pública também ocorreram em decorrência da mudança de paradigma por parte da sociedade, inclusive daqueles que se dedicam a criar e aplicar políticas públicas. Segundo a Comissão Europeia (2012a), na atualidade, são quatro eixos que sustentam o pilar de desenvolvimento rural, e apenas um deles está vinculado diretamente à produção agrícola. Dentro do segundo Pilar da PAC a produção agrícola só será aceita desde que seja sustentável, sem danos ao ambiente natural e as pessoas envolvidas em sua produção. Os outros três eixos que sustentam esse Pilar são destinados ao investimento nos espaços rurais, ao aprimoramento das pessoas, do emprego e da economia nesses ambientes e à melhoria da governança nas comunidades, a exemplo do programa LEADER .
Ressignificando os espaços rurais
A integração entre diferentes segmentos da economia pode se tornar uma forma positiva de atrair e fixar novos habitantes no meio rural e de promover o envolvimento entre os indivíduos. Com o passar dos anos, o agricultor incorporou outras funções - a de mantenedor dos recursos naturais, cada vez mais escassos, e a de guardião de conhecimentos ancestrais já pouco ou quase nada difundidos - mas invariavelmente conseguiu manter sua essência de produtor de alimentos.
Batista (2011) chama de transição rural a convergência de três tendências da busca pelo rural: para lazer, turismo ou morada. Ele fala de um rural que deixa de ser simplesmente agrícola e passa a representar outras formas de consumo para estes novos habitantes, chamados de ‘novos rurais’ ou ‘neorurais’.
As definições para os novos habitantes do espaço rural são muitas. De acordo com o levantamento feito por Pinto (2015), os neorurais podem ser desde pessoas que buscam no campo um local de retiro temporário da vida agitada na cidade, até aqueles que procuram o espaço rural como outra opção de trabalho e investimento e abandonam os grandes centros como locus de produção econômica. De um extremo a outro, é possível encaixar uma série de tipos de atores que passam a usufruir do ambiente rural seja para lazer seja para trabalho. Contudo, uma característica comum a todos eles, é que passam a integrar uma nova dinâmica, reduzindo a distância e, possivelmente, as diferenças entre cidade e campo.
Para Batista (2011), a questão da terra torna-se atual novamente, mas não no contexto da posse para produção. Segundo o autor, a terra está relacionada ao uso que será feito dela em relação à sociedade, exige-se mais responsabilidade no tocante às atividades desenvolvidas e ao valor que elas possuem para a comunidade local, principalmente. Quando extrapolamos essa questão do uso da terra para o território, temos o que Natário et al. (2011) chamam de peça-chave no processo de desenvolvimento territorial endógeno, uma vez que valoriza recursos locais, engloba aspectos sociais, econômicos, técnicos e culturais e valoriza a participação da população.
Esse novo público traz consigo uma visão ampliada do ambiente rural que, muito embora ainda carregue traços de idealismo e romantismo, também inova quando passa a perceber a multifuncionalidade dos espaços e, por consequência, o mosaico de possibilidades que esse ambiente oferece. Dentro do universo tratado nesta pesquisa, procuramos então direcionar nosso olhar para aqueles atores que, independentemente de sua origem, optaram por desenvolver, nos ambientes rurais, a agricultura biológica, sem distinguir se o faziam como lazer, como um complemento de renda ou como atividade principal. No conjunto dos espaços visitados e dos agricultores entrevistados, percebemos a diversidade de origens e propósitos em relação à atividade agrícola. Em virtude desse fato, identificou-se como mais importante, em termos de conceitualização, olhar para os fluxos que ocorriam entre os espaços em vez de tentar caracterizar os atores, uma vez que são mais dinâmicos e complexos.
Trás-os-Montes e seus agricultores biológicos
A terra de Trás-os-Montes fica na porção nordeste de Portugal. Dentro de seu território estão o Parque Natural de Montesinho e o Parque Natural do Douro Internacional, duas importantes reservas naturais do país. Seus montes variam entre 300 metros de altitude até 1.400 metros. Destaca-se na paisagem local o Vale do Rio Douro, que percorre uma boa parte do território Transmontano e confere à região aspectos bem singulares, desde a agricultura até o turismo. As serras que se elevam mais ao norte, já na divisa com a Espanha, possuem características próprias, desde a origem rochosa de seus solos, associada ao xisto, ao tipo de manifestação cultural, cada pedaço da região revela um aspecto que chama atenção.
A pesquisa foi realizada apenas dentro do distrito de Bragança. Essa parte do território português carrega consigo a imagem de ‘rural profundo’, ou seja, que sofreu com um elevado número de emigrações e que manteve suas características rurais com uma produção de caráter familiar e em pequena escala. No entanto, na atualidade, é a região responsável pela maior produção de frutos secos (amêndoas, nozes, castanhas) e segunda maior região produtora de azeite do país. O mel, o vinho, e os embutidos também são produtos de excelência da região. O território possui características edafoclimáticas que são propícias para esses produtos agrícolas, o que facilita o desenvolvimento do MPB sem que haja significativa perda de produtividade.
Métodos e procedimentos da pesquisa
Para compor uma análise abrangente da região reunimos elementos metodológicos adotados pela pesquisa qualitativa, a abordagem multinível e a metodologia da rede rural (Ploeg & Marsden, 2008). Além desses procedimentos também foram utilizadas análises documentais e uma densa revisão bibliográfica sobre os temas.
A metodologia da rede rural é pautada na ressignificação do conceito de desenvolvimento e traz a produção agrícola como um aspecto central desse processo. Ploeg & Marsden (2008) desenvolveram, junto com um grupo de pesquisadores, uma abordagem cujo propósito é a reflexão e a produção de conceitos voltados à construção de uma nova teoria sobre o desenvolvimento a partir do entendimento das redes rurais. Os conceitos propostos pelos autores servem como ponto de partida na composição de instrumentos de análise. Esse processo daria aos pesquisadores novos elementos para analisar os territórios através de um ponto de vista que considera os mais variados níveis de uma organização social.
Os conceitos delineados pelos autores são, na verdade, as dimensões que compõem a estrutura de uma rede rural. Para Ploeg & Marsden (2008) existem seis principais dimensões que devem ser percebidas durante o processo de análise de uma rede social: o Capita Social, a Sustentabilidade, a Governança de Mercados, a Inovação/Empreendedorismo, a Endogeneidade e os Arranjos Institucionais. No intuito de compor instrumentos que pudessem sentir a força das redes nos territórios estudados, essa pesquisa tratou de entender esses conceitos e adaptá-los aos questionários e roteiros aplicados (Tabela 1).
Dimensões da Rede | A sua percepção a partir da prática |
Capital Social | Como os atores se relacionam com os demais membros da rede, como classificam a participação dentro dos grupos que fazem parte |
Sustentabilidade | Visão do espaço produtivo e do ambiente onde estão localizados |
Governança de mercados | Como organizam a comercialização dos produtos e como percebem as oportunidades para tal |
Inovação/Empreendedorismo | Pluriatividade dos entrevistados, alternativas encontradas perante dificuldades |
Endogeneidade | Relação dos entrevistados com o território; como aproveitam seus recursos locais (humanos e naturais) |
Arranjos institucionais | Relação dos atores com instituições públicas, acesso a políticas públicas |
Fonte: Adaptado de Ploeg & Marsden (2008).
Foram feitos dois tipos de questionários. O primeiro foi direcionado aos técnicos que atuavam junto a organismos certificadores (OC) da agricultura biológica e associações/cooperativas de produtores rurais (AP). Para este público foi construído um roteiro de perguntas semiestruturadas uma vez que o objetivo com as entrevistas era tratar de questões mais subjetivas relacionadas ao papel do MPB na região.
O segundo modelo de questionário desenvolvido para os agricultores foi estruturado. Para o universo de Trás-os-Montes optamos por uma metodologia que pudesse ao mesmo tempo atender aos objetivos iniciais deste estudo e fosse viável para o período que tínhamos para executá-la. Dessa forma, construímos uma amostragem estratificada uniforme dentro da região usando a base de dados dos agricultores biológicos disponibilizados pela Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR).
De acordo com a DGADR (2017), a região possuía em 2015 um total de 1278 agricultores sob MPB, entre produção vegetal e animal, o que nos levou a uma amostragem mínima de 40 agricultores. A escolha dos agricultores foi feita de forma aleatória e procurou-se manter certa diversidade em relação ao tipo de cultura praticada.
Resultados e discussão
De acordo com a Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR, 2017), levando em consideração apenas a produção vegetal, em 2015, Portugal possuía 4.006 agricultores biológicos. Em Trás-os-Montes, eram pouco mais de 969 (24%) agricultores que atuavam sob esse modo de produção, dos quais pouco menos de 700 (70%) dedicavam-se ao cultivo de frutos secos e 630 (65%), ao de olivais. Em comparação ao resto do país, a região possui 64% de todos os produtores de frutos secos, 30% dos produtores de azeite e 39% dos produtores de uva.
Ademais de suas potencialidades em termos agrícolas, a região também oferece - e vem se especializando nisso - atrativos turísticos como aqueles relacionados à gastronomia, ao turismo rural, aos esportes de aventura e às festas regionais. Em termos de capital territorial, é um território que tem muito a oferecer, devido à herança histórica construída pelas famílias tradicionais da região, e que hoje convivem em harmonia com o novo e o não convencional. Apesar de ter sofrido com a forte emigração, a região contava com a presença de novos personagens, entre eles, jovens agricultores e empresários que decidiram investir na produção rural dando continuidade ao negócio da família e/ou como mais uma opção de renda.
Dos 40 agricultores biológicos entrevistados, 11 sempre estiveram na região e pouco mais da metade, 23, afirmaram que viveram no campo sua infância, saíram para estudar e retornaram, e apenas 4 entrevistados vieram como novatos para a região com o intuito de investir na atividade agrícola. Considerando apenas o universo de agricultores que saíram e voltaram para o interior a motivação está dividida em três aspectos: herança deixada pela família (uma terra pouco produtiva ou abandonada); continuidade do negócio da família; a insatisfação com o trabalho na cidade e a busca por novas oportunidades.
A média de idade entre os entrevistados era de 49,5 anos. O tamanho médio das propriedades era de 59 hectares e a área média de produção (S.A.U) era de 41 hectares. Em relação ao tamanho total da área cultivada sob MPB, dentro do universo pesquisado, a soma chegou a 1.170 hectares na produção vegetal. E, na produção animal, o total de cabeças era de 742 animais, entre caprinos, ovinos, suínos e bovinos, e 425 colmeias.
Dentro da produção vegetal, havia três culturas predominantes na região: a azeitona (O. europaea), a castanha (C. sativa) e a amêndoa (P. dulcis). Encontrou-se ainda a produção em menor escala de cerejas (P. avium), figos (F. carica), marmelos (C. oblonga), maçãs (M. domestica), mirtilo (V. myrtillus), morango (F. chiloensis), goji berry (L. barbarum), groselha (R. rubrum), avelã (C. avellana) e pistache (P. vera). Além destas, também foram encontradas áreas com produção de grande variedade de plantas aromáticas e cogumelos.
Dentre os agricultores biológicos entrevistados, 37 (quase a totalidade deles) declararam que a propriedade agrícola que utilizavam havia sido herdada ou era de uso comum com pais e familiares. Esse fato influenciou os entrevistados pela escolha da profissão de agricultor, posto que metade deles citou a herança como fator determinante na opção pela agricultura. A admiração pela profissão apareceu logo em seguida, citada por 17 entrevistados. A percepção da agricultura como uma nova oportunidade de negócio e a motivação gerada pelos subsídios, foram citados por 13 entrevistados. Apenas um entrevistado - sem qualquer grau de parentesco na região - afirmou ter decidido investir na produção agrícola a partir da influência de amigos e da oportunidade de ter uma parte de seu investimento subsidiado pelas ajudas públicas. Metade dos entrevistados relatou que dedicava tempo integral à agricultura e o restante também desenvolvia outras atividades profissionais.
Verificou-se uma percepção entre os entrevistados de que o ambiente rural sofreu alterações nos últimos 30 anos e que elas estão relacionadas ao aumento da mecanização no campo, que acaba por diminuir o número de pessoas que se dedicam à agricultura. Outra percepção foi em relação aos tipos culturais. Existia um consenso entre os entrevistados de que as culturas eram mais variadas, havia mais cereal (centeio, trigo, aveia) e mais animal (carne e leite) e que tudo isso deu lugar a uma certa monocultura da castanha e da amêndoa, que são culturas que não exigem tanto trabalho humano e acabam por afastar as pessoas dos espaços rurais.
A opção pela agricultura biológica, para a maioria dos entrevistados (95%), estava relacionada ao aumento de benefícios financeiros que ela poderia trazer. Os subsídios foram citados por 22 dos entrevistados e a possibilidade de aumento da renda por 16 deles. No entanto, apenas 24 entrevistados vendiam sua produção como biológica. Os que não o faziam diziam que não recebiam mais pelo produto e que também não havia mercado local para escoar um produto tão específico (com certificação e com valor mais elevado). Os produtos comercializados com a devida certificação eram: azeitona, azeite, amêndoa, frutos vermelhos, ervas aromáticas e mel. Além da questão financeira, a alternativa que apontava a escolha do modo de produção biológica como algo ambientalmente mais correto foi marcada por pouco menos da metade dos entrevistados - 18 agricultores.
Verificou-se que havia a necessidade, para todos os agricultores, de associar-se a uma cooperativa ou associação para que fosse possível submeter seus projetos, e assim receber as ajudas, provenientes da PAC. Consequentemente, 36 agricultores entrevistados disseram pertencer a algum tipo de associação ou cooperativa. Todos os entrevistados usufruíam de algum tipo de assistência técnica, e 36 (90%) possuíam maquinários próprios. No geral, a compra de maquinários e a construção de barracões ou armazéns nas propriedades eram feitas com a ajuda dos subsídios.
Sobre a política de subsídios atual, as respostas revelaram uma posição favorável em 80% dos questionários - 32 agricultores. Todos os entrevistados colocaram que, se não houvesse ajuda, a agricultura no país definharia. Ainda que houvesse uma pequena porcentagem contrária à política em questão (20%), a insatisfação estava relacionada à forma como os recursos eram distribuídos, à pouca valorização dos produtos agrícolas e à dependência que a simples distribuição de benefícios gera nas pessoas.
Dentro da amostragem utilizada, verificamos uma idade média relativamente baixa (49,5 anos) quando comparada aos dados oficiais do Recenseamento Agrícola de 2009 . O recenseamento mostrou, ao contrário, um envelhecimento da população (52 anos) e uma diminuição dos jovens em todas as regiões continentais . No que concerne o modo de produção biológico, as declarações coletadas junto aos organismos certificadores e associações é que há, na realidade, um aumento de áreas sob este modelo produtivo, muitas vezes, conduzidas por jovens agricultores. Nesse sentido, também foi detectado um aumento no grau de escolaridade - 15 entrevistados possuíam curso superior como escolaridade mínima e apenas 7 agricultores possuíam somente o ensino básico. Esses dados, quando comparados às estatísticas divulgadas pelo INE, nos permitiram visualizar um rejuvenescimento da população, bem como o aumento no número de pessoas com formação superior atuando no campo.
Tal aspecto reflete, em parte, os investimentos feitos pelo país no âmbito da PAC, mais especificamente, aqueles destinados ao desenvolvimento rural e que se encontram dentro do guarda-chuva do Pilar II. Também faz parte da estratégia a obrigatoriedade, por parte daqueles que usufruem dos benefícios, de passar por cursos de formação. No âmbito da agricultura biológica, torna-se importante inclusive para o processo de certificação da exploração. Segundo os representantes das instituições que foram entrevistados, o investimento na formação de agricultores foi muito importante no princípio, mas que precisava ser revisto e ampliado.
Entre os agricultores percebeu-se, durante as entrevistas, que eles consideravam os cursos obrigatórios como mais uma etapa para o recebimento das ajudas. Eram poucos os que realmente aproveitavam e se interessavam pelo conteúdo. No entanto, a obrigatoriedade de estar presente nos cursos, fazia com que eles tivessem mais um espaço de troca de informações e com possibilidade de estreitar laços, impactando positivamente na sua capacidade de formação e/ou fortalecimento de seu capital social.
A pluriatividade como uma característica entre os novos empreendedores era um fato na região e que também se apresentava entre aqueles que sempre estiveram em áreas rurais. No entanto, o fluxo constante de jovens agricultores em função das ajudas públicas era alvo de críticas dos mais velhos, muito embora esse movimento tenha trazido alguma dinâmica para os espaços. Houve depoimentos em que os entrevistados declararam terem optado pelos cultivos da azeitona, da amêndoa e da castanha por serem culturas que não exigem dedicação em tempo integral, como o trato com animais ou a horticultura. E há pessoas que, após conclusão de seus estudos, decidiram investir na própria municipalidade em detrimento da busca de trabalho nos grandes centros como as cidades do Porto ou Lisboa. Existiam funcionários públicos, administradores de empresas, arquitetos, engenheiros e, inclusive, trabalhadores rurais que dedicavam parte do seu tempo a trabalhar em outras atividades relacionadas com a agricultura na própria região.
A opção pela região de Trás-os-Montes, por aqueles que decidiram investir em uma atividade agrícola, está diretamente relacionada a questões familiares e herança, mas sua permanência demonstrou a viabilidade do investimento principalmente no tocante ao modo de produção biológico. Foi mencionado, por 32 entrevistados, que, na região, não existia a necessidade de utilização de agroquímicos, principalmente nas culturas mais tradicionais. Esse fato contribuía para a questão da sustentabilidade da atividade uma vez que não era preciso muitos aportes de insumos externos às propriedades para que se conseguisse uma boa produção.
Se por um lado existe o benefício gerado pelas características naturais em relação à produção rural, qual seja, o de uma produção biológica de qualidade, por outro lado esse aspecto ainda não era bem gerenciado em termos comerciais pelos agricultores entrevistados. Além de não investirem na comercialização dos produtos como biológicos, muitos apenas entregavam sua produção às cooperativas ou associações sem que houvesse qualquer tipo de diferenciação. Da mesma forma, foi possível perceber, a partir das entrevistas com os técnicos das associações de produtores e empresas certificadoras, que a participação de instituições públicas no fomento ao consumo de produtos cultivados sob MPB era muito fraca. Esse dado demonstra certa dificuldade na questão da governança de mercados uma vez que a articulação e a movimentação de toda a cadeia produtiva ainda estavam muito dependentes do empenho particular de cada agricultor.
No entanto, foi possível encontrar pessoas com perfil diferenciado. O trabalho desenvolvido por eles pode ser considerado inovador para a região, apesar de estarem ‘isolados’ em sua própria atividade e sem conexão com outros grupos ou atores com os quais pudessem estabelecer uma pequena rede. Dos 40 entrevistados, apenas seis possuíam marcas próprias para a sua produção e quatro eram produtores de azeite. Um dos entrevistados possuía duas marcas distintas de azeite biológico, uma direcionada para alta gastronomia e a outra para atender ao cliente comum. Metade de sua produção era comercializada em Lisboa e Porto, e o restante era exportado.
Os outros dois produtores com marca própria a utilizavam apenas para exportação, um de mel e outro de ervas aromáticas. Era consensual entre os agricultores entrevistados que, na região de Trás-os-Montes, não existia mercado para a comercialização de seus produtos. Segundo eles, os moradores da região possuíam suas próprias produções e não havia movimento de consumo que justificasse marcas que agregassem valor diferenciado ao produto final. Eles disseram também não haver um movimento de turistas na região, como o verificado nos grandes centros, e que um dos principais pontos de vendas de mercadorias biológicas são lojas especializadas muito frequentadas por turistas.
O discurso encontrado entre os técnicos entrevistados foi que era preciso mais organização e cooperação entre agricultores para que conseguissem melhorar a distribuição de sua mercadoria e aumentar o valor acrescentado de seus produtos. No geral, o envolvimento dos agricultores com as associações ou cooperativas que faziam parte era fraco, muitos não sabiam ao certo o nome da instituição ou qual o papel dela - se davam apoio técnico ou faziam projetos - e, muitas vezes, confundiam também a certificadora com a associação que dava apoio técnico.
Apesar de existir um forte capital territorial na região, muito presente nas tradições e na cultura transmontana, não havia investimento e atenção por parte de todos os atores envolvidos no processo. Entende-se que uma mudança nesse quadro é necessária para transformar essa potencialidade do território em capital social, isto é, que gere algum tipo de envolvimento local e mudança estrutural.
Percebe-se que a comercialização em si não era um problema, mesmo quando a produção era pouca ou inconstante. Para os agricultores entrevistados que não vendiam seus produtos como biológicos, o valor adicional que receberiam do mercado pela sua produção, eles recebiam (em parte) das medidas públicas de incentivo ao MPB. Segundo eles a venda para as cooperativas facilitava a negociação da produção (não tinham que buscar mercados específicos ou negociar pessoalmente com os compradores), apesar da insatisfação em relação aos preços dos produtos praticados pelas cooperativas.
Foi possível observar, durante as incursões a campo, espaços rurais ativos e produtivos, apesar das declarações de diminuição do número de pessoas, e certo rejuvenescimento daqueles que estavam a desenvolver atividades no campo. Existe inovação sendo feita na região, ainda que a passos lentos, seja pelas novas culturas agrícolas introduzidas seja pelo manejo das propriedades, ao mesmo tempo que se observou certo grau de endogeneidade na valorização das culturas locais e da tradição vinculada ao território. A sustentabilidade, entre todas as dimensões da rede rural, foi a que mais se destacou, tendo no ambiente de montanhas e na variabilidade de clima regional aspectos que facilitavam o modo de produção biológica (para algumas culturas), da mesma forma que aumentavam as possibilidades de investimento em turismo rural e em turismo de aventura na região.
Contudo, as facilidades não foram melhoradas, as ofertas de trabalho ainda estão nos grandes centros, da mesma forma que é para lá que vai grande parte da produção agrícola. Muitas críticas foram direcionadas pelos entrevistados às instituições públicas por negligenciarem os processos burocráticos relacionados às medidas de fomento da PAC, os cursos de formação dos agricultores e por não investirem em uma campanha mais séria direcionada à produção biológica, incentivando seu consumo.
Há demanda por uma mudança estrutural muito grande para ser conquistada pelos agricultores, é preciso maior envolvimento por parte desses atores tão importantes na manutenção do espaço rural, o qual já provou ser capaz de atrair novos habitantes e ainda oferecer boas condições ambientais para a sua permanência. Esse fato justifica a necessidade de observar a região de diferentes formas, levando em consideração a diversidade de aspectos e dimensões que faz dela um espaço capaz de constituir uma rede rural.
Considerações finais
Seja como um retorno às suas raízes, seja como uma nova opção de vida, a dinâmica social encontrada durante os inquéritos realizados nos pareceu muito mais importante para a caracterização do espaço estudado do que a história pessoal de cada ator. Os fluxos deflagrados traziam consigo preocupações com a sustentabilidade que repercutiam em inovações e que possibilitavam maior rentabilidade à atividade agrícola, novas estratégias de geração de renda, incluindo a agregação de valor aos produtos com novas estratégias de processamento e diferenciação para o mercado, e a inclusão de novas culturas agrícolas.
De acordo com uma visão mais convencional do desenvolvimento, esse movimento é residual e não gera o salto econômico que se espera a partir dos investimentos que vêm sendo feitos. Contudo, o movimento de retorno ao campo ocorre na contramão dos conceitos convencionais e também do histórico das movimentações das massas dentro de um território. Sendo assim, podemos entender a agricultura biológica não como peça chave para uma reocupação ou reconstrução dos espaços esvaziados, mas sim como uma engrenagem muito importante nesse processo.
A atividade agrícola requer o estabelecimento de outros fluxos que estejam relacionados diretamente e indiretamente com a produção agrícola, contribuindo assim para o fortalecimento do capital territorial e, por consequência, do capital social da região. Se utilizarmos o olhar do desenvolvimento proposto pela metodologia das redes rurais, será possível observar uma nova rede se formando nos espaços tidos como vazios, envelhecidos e economicamente inviáveis.
A hipótese de que a agricultura biológica é um importante fator de repovoamento, inovação, promoção de redes e capital social para os territórios rurais pode ser comprovada por meio do número de jovens agricultores encontrados durante a coleta de dados, das inovações referentes às culturas agrícolas, à forma de processamento e comercialização da produção e, por fim, da satisfação em relação à atividade agrícola percebida durante os momentos das entrevistas.
Para a região de Trás-os-Montes a agricultura é um fator de dinamismo local. Mas sozinha não é capaz de promover uma mudança significativa nos espaços já esvaziados. A prática da agricultura biológica apresenta-se como potencial catalisador, mas para isso é necessário estar relacionada a uma série de outros fatores que vão da comercialização de seus produtos localmente à valorização das pessoas que atuam no segmento e dos benefícios que são gerados a partir dessa atividade.
A atividade agrícola é responsável pelo abastecimento da população, é produtora de matéria-prima para a agroindústria, de bioenergia e, além dessas funções básicas, possui também função social que está diretamente ligada à formação das sociedades. Assim, nos parece muito importante que, desde o primeiro modelo proposto até os dias atuais, dentro das discussões em torno da criação e das reformulações da PAC, as questões identitária e social estivessem sempre presentes. Ainda que houvesse também o interesse econômico vinculado a tudo isso.
Muito foi discutido e reformulado até o ano de 1992, que marca o surgimento do conceito de desenvolvimento rural como um pilar importante dentro da PAC. A multifuncionalidade da agricultura também integra a visão de que é preciso dar valor a outras atividades no ambiente rural que não sejam apenas relacionadas à produção agrícola, uma vez que ela sozinha não sustenta uma comunidade inteira. É preciso investir em outros aspectos dentro da comunidade para que esta tenha autonomia e possa oferecer serviços além daqueles diretamente ligados ao trabalho no campo.
Percebe-se a importância de ações ou políticas que tragam para o território oportunidades ligadas a outros setores como os de serviços, transportes, cultura, entre outros. A palavra inovação é repetida muitas vezes nos discursos daqueles que realizam os trabalhos de acompanhamento e análise dos projetos sob financiamento da PAC, mas ela ainda aparece muito vinculada à inovação na produção agrícola e na aproximação entre os conhecimentos científicos e tradicionais no que compete à otimização da atividade rural.
E é exatamente em contraposição a esse fato que sustentamos a hipótese do investimento cada vez maior em ações conjuntas nas áreas rurais, mas que tenham como ponto central uma prática mais sustentável na produção de alimentos, sem que este seja o objetivo final da política propriamente dita.
Por fim, pensar em uma política comum que consiga organizar e ocupar um território com inúmeras identidades é, no mínimo, desafiador. Da mesma forma que, juntar em um mesmo pacote produção agrícola em larga escala e desenvolvimento rural, nos parece controverso. No entanto, é possível apostar no ponto comum a todos esses aspectos: a agricultura e os atores que a praticam. Ela é sem dúvida uma atividade de muita importância para as nações, ela produz, ao mesmo tempo, riquezas materiais e imateriais e, por isso, deve ser preservada, estimulada e aprimorada.