Conto de histórias e multideficiência
O conto de histórias, enquanto espaço de afeto e de vivência cultural e comunicacional especificamente humana, ocupa um lugar relevante na infância e tem efeitos positivos no desenvolvimento social, emocional e linguístico das crianças (Dias & Neves, 2012; Hohmann & Weikart, 2011; Morrow & Temlock-Fields, 2004; Rigolet, 2009; Santos, 2010; Sequeira, 2000). Com efeito, a arte de contar histórias e a riqueza da vivência narrativa em contextos de educação de infância: (i) proporcionam às crianças momentos de humor e diversão (Dias & Neves, 2012); (ii) permitem o desenvolvimento sociomoral e emocional das crianças (Martins, 2013); (iii) ampliam as suas experiências, estimulando a sua criatividade e imaginação; (iv) promovem o desenvolvimento do pensamento lógico e simbólico das crianças (Pereira, 2013); (v) estimulam o desenvolvimento da linguagem oral das crianças (Mendes & Velosa, 2016); e (vi) desenvolvem o “gosto pela própria leitura, preparando a criança para a entrada no mundo da literatura adulta” (Mergulhão, 2006 & Veloso, 2006, citados por Pereira, 2013, p. 81). O conto de histórias é também a arte da relação, ao prolongar “a experiência da comunicação”, a qual se torna “um terreno fértil para o desenvolvimento de emoções experienciadas” (Nunes et al., 2020, p. 11), o que facilita o estabelecimento de relações interpessoais.
Muito embora o conto de histórias proporcione múltiplas oportunidades de aprendizagem e de divertimento e de se considerar ser esta uma prática que deve ser acessível a todas as crianças (Ten Brug et al., 2012), nem todas têm oportunidade de vivenciar este tipo de experiências, como é o caso de algumas crianças com multideficiência (Ten Brug et al., 2015). Na realidade, muitas destas crianças não se envolvem neste tipo de experiências, devido em parte às suas particularidades. Ten Brug et al. (2012) referenciam que as dificuldades que estas crianças apresentam, particularmente ao nível da compreensão da linguagem verbal, comprometem a compreensão da própria história, pelo que a atividade do conto de histórias poderá tornar-se uma atividade pouco agradável e sem interesse. No sentido de promover o envolvimento na atividade do conto de história por parte de crianças com multideficiência, Chris Fuller, em 1989, desenvolveu o conceito de Histórias Multissensoriais (HMS) (Fuller, 2013).
As histórias multissensoriais consistem em narrativas simples enriquecidas com diversos estímulos sensoriais, como sejam diferentes objetos e texturas, escolhidos/as pelas suas características sensoriais e de envolvimento, sendo que o ouvinte pode tocar, ouvir, cheirar, ou ver, à medida que a história se desenvolve (Fuller, 1999; Oliveira, 2020). Do ponto de vista textual, estas narrativas apresentam características próximas “às do discurso produzido pelas crianças nas primeiras fases do seu desenvolvimento linguístico” (Nunes et al., 2020, p11). Especificando, as características linguísticas destas histórias remetem-nos para: histórias curtas, com poucas páginas, com frases curtas e uma estrutura simples do tipo declarativo, com recurso a formas verbais, frequentemente no presente do indicativo e com sujeitos simples e lexicalmente realizados (ibidem), “evitando o recurso aos sujeitos nulos e à pronominalização” (Nunes et al., 2020, p. 25). Estas características visam potenciar a compreensão da narrativa.
As páginas podem ser construídas em cartão rijo, contraplacado de madeira ou acrílico e ser utilizados objetos reais, partes de objetos, texturas e formas que simulem os objetos reais (cf. Bag Books, 2011).
O principal objetivo destas histórias é permitir que o ouvinte usufrua de experiências sensoriais que possibilitem a criação de contextos educativos promotores da interação social e facilitadores da intervenção pedagógica, pelo seu aspeto motivador e agradável, de que resulta um maior envolvimento (Oliveira, 2020; Preece & Zhao, 2014; Ten Brug et al., 2015).
O contador destas histórias deve estimular a criança a manusear as páginas da história, a manipular e a explorar os estímulos nelas existentes e permitir-lhe explorá-los livremente. O contacto físico com os recursos sensoriais da história é muito importante para ajudar a criança a envolver-se na atividade (Young et al., 2011).
São vários os estudos nacionais (e.g. Gomes, 2016; Miguel, 2015; Oliveira, 2020; Proença, 2010) que evidenciam os benefícios do conto destas histórias para crianças com necessidades de suporte à aprendizagem, dos quais salientamos o facto de: (i) facilitar a memorização de estímulos sensoriais mais significativos (Proença, 2010); (ii) provocar reações positivas às atividades, o que é visível no grau de envolvimento que demonstram ter com o “livro das histórias”, sendo estas mais evidentes em torno do estímulo sensorial e com o contador (Gomes, 2016) e (iii) desenvolver competências de literacia inclusiva (Oliveira, 2020).
Estudos internacionais (e.g. Boer & Wikkerm, 2008; Halfens, 2011; Preece & Zhao, 2014; Ten Brug et al., 2012; Ten Brug et al., 2015) assinalam os benefícios do conto deste tipo de histórias, tais como: o desenvolvimento de múltiplas competências em pessoas com multideficiência, contribuindo para uma melhoria da qualidade das relações estabelecidas (Boer & Wikkerm, 2008); o desenvolvimento da responsividade social (Halfens, 2011) e a promoção de oportunidades de socialização e de interação com os outros, constituindo um recurso pedagógico que estimula a pessoa com multideficiência a envolver-se de forma mais ativa na atividade de conto de histórias (Preece & Zhao, 2014).
Para além das Histórias de Autor (HA), que se podem encontrar nas livrarias e noutros espaços comerciais, e das histórias multissensoriais antes descritas, existem outros tipos de histórias que se podem contar às crianças, como é o caso das designadas Histórias Sociais (HS), desenvolvidas por Carol Gray em 1991. Estas histórias procuram explicitar e partilhar conceitos sociais que muitas crianças, por exemplo com Perturbação do Espectro do Autismo (PEA), manifestam dificuldade em entender (Gray, 2013). Ainda que estas histórias tenham sido desenvolvidas a pensar nas características de crianças com PEA (Gray, 1998), têm vindo a ser consideradas apropriadas também para crianças com diferentes níveis de capacidades, incluindo as descritas como sendo pouco funcionais e com dificuldades na regulação do seu comportamento social.
Na opinião de vários autores (e.g. Rust & Smith 2006; Test et al., 2011), ao partilhar informações de forma positiva e concreta sobre uma variedade de conceitos, interações e situações sociais, as HS constituem-se como uma estratégia promotora do desenvolvimento da compreensão social. Leaf e seus colegas (2020) também descrevem estas histórias como “… uma forma sistemática de intervenção, na qual uma breve história escrita descreve o comportamento alvo a alcançar” (p. 644). Em termos gerais, enquanto ferramenta de ensino, as HS procuram apoiar o ensino de conceitos sociais e a aprendizagem de competências emocionais e sociais (Gray, 2013). Assim, as HS são “escritas para responder a situações desafiantes”, de modo a: (i) “ensinar um novo conceito ou competência”, ou a (ii) “elogiar a criança perante uma nova competência desenvolvida” (Gray, 2013, p. 97). A sua construção pressupõe: (i) a existência de um objetivo em mente; (ii) a escolha de uma situação específica; (iii) a manutenção de um tom positivo; (iv) o uso de linguagem simples; e (v) a utilização de frases descritivas que explicitem o contexto da história e as ideias principais da mesma (Gray, 2013; Pardy et al., 2015). Em síntese, o principal objetivo destas histórias é sublinhar uma competência específica a ser adquirida pela criança e os comportamentos necessários à sua aquisição, tendo por base a explicitação da situação desafiante.
O estudo nacional realizado por Brilha (2012) destaca que estas histórias permitem, por um lado, identificar comportamentos comunicativos nos alunos e, por outro, perceber que a sua utilização traz ganhos ao nível da interação social, sendo estes mais frequentes e mais variados durante o conto das histórias sociais.
Face ao exposto, importa perceber de que modo o conto de diferentes tipos de histórias (HMS, HS e HA), em diversos contextos, influencia, por um lado, o envolvimento e a participação de uma criança com multideficiência na atividade de contação de histórias no jardim de infância, e, por outro, o seu desenvolvimento social.
Método
Questões de investigação e objetivos do estudo
Considerando o contexto antes descrito, definiu-se a questão de partida para o presente estudo: de que modo a contação de histórias (HA, HMS e HS) a uma criança com multideficiência pode contribuir para o desenvolvimento de competências sociais? Com base nesta questão, definiram-se os seguintes objetivos do estudo: (i) caraterizar o modo como a criança com multideficiência se envolve e participa na atividade de contação de diferentes tipos de histórias e (ii) conhecer a influência do conto dessas histórias e dos contextos onde são contadas na promoção do desenvolvimento social dessa criança.
Desenho e fases do estudo
O presente estudo de natureza mista, qualitativa e quantitativa, enquadra-se na modalidade de estudo de caso único (Coutinho, 2011; Stake, 1994), o qual consiste no “estudo da particularidade e da complexidade de um caso singular para chegar a compreender a sua complexidade” (Stake, 2005, p. 11) com detalhe, intensidade e profundidade (Yin, 2005; Stake, 2009).
O desenho do estudo considerou a problemática definida, as questões de investigação que nortearam a pesquisa, os objetivos que se procurou alcançar e as características da modalidade de estudo de caso. Atendendo a estas dimensões, definiu-se um estudo organizado em três fases, como documenta a figura 1:
Especificando, na primeira fase procedeu-se ao estabelecimento dos consentimentos informados e à recolha prévia de dados sobre o caso a estudar. Na segunda fase, construíram-se duas histórias multissensoriais e duas histórias sociais, escolheram-se as histórias de autor e, por fim, contaram-se essas mesmas histórias. As histórias escolhidas e construídas abordavam assuntos relacionados com as regras de convivência social, nomeadamente situações de partilha; saber pedir; saber estar e saber brincar com o outro, tendo como objetivo ajudar, sobretudo, a criança alvo do estudo (L.) a adotar comportamentos socialmente aceitáveis.
A construção das histórias sociais e das histórias multissensoriais procurou cumprir os requisitos descritos na literatura (Gomes, 2016; Gray, 2013; Nunes, 2017; Nunes et al., 2020; Oliveira, 2020; Pardy et al., 2015). As histórias sociais construídas usaram como personagens principais a L. e os amigos para que a L. se pudesse rever nas situações e nos contextos descritos. Para isso, foram tiradas fotografias às crianças e aos espaços que, depois, foram mobilizadas para a construção da história.
As páginas das histórias multissensoriais foram construídas em placas de contraplacado A3, com recurso a objetos reais, parte de objetos ou símbolos para que a criança pudesse compreender o conteúdo dessas histórias. Alguns destes objetos estavam fixos e outros amovíveis, como se pode observar nos exemplos apresentados na figura 2.
Foram planeadas 18 sessões para contar as seis histórias; contudo, devido à situação pandémica causada pelo vírus SARS-CoV2, foi impossível realizar uma das últimas sessões, perfazendo-se assim um total de 17 sessões realizadas. Como se ilustra na tabela 1, dinamizaram-se duas séries do conto das histórias: a primeira começou pelo conto da história individualmente, passando-se depois para sessões de pequeno e posteriormente em grande grupo. Na segunda série, inverteu-se a ordem das sessões para perceber se esta influenciava, ou não, o nível de participação e de envolvimento demonstrados pela L. As sessões de contação de histórias decorreram durante três meses.
Histórias de autor | Histórias multissensoriais | Histórias Sociais | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
1.ª série | 2.ª série | 1.ª série | 2.ª série | 1.ª série | 2.ª série | |
Sessão individual | Sessão em grande grupo | Sessão individual | Sessão em grande grupo | Sessão individual | Sessão em grande grupo | |
Sessão em pequeno grupo | Sessão em pequeno grupo | Sessão em pequeno grupo | ||||
Sessão em grande grupo | Sessão individual | Sessão em grande grupo | Sessão individual | Sessão em grande grupo | Sessão individual |
Na terceira fase do estudo procedeu-se à análise dos dados recolhidos.
Participantes
Participaram no estudo 21 crianças com idades compreendidas entre os três e os cinco anos, sendo 15 meninas e 6 meninos. Uma das crianças, a L., com 65 meses, apresentava dificuldades no seu desenvolvimento, particularmente no relacionamento social, devido em parte à sua impulsividade e ao comportamento agressivo para com os pares. Os resultados da Escala Growing Skills revelam como áreas mais fortes a fala e a linguagem, que a equiparavam a uma criança de 36 meses, e a audição/fala, a uma criança de 30 meses; e como áreas mais fracas a visual (equivalente a 12 meses), a locomotora, a autonomia pessoal e a interação social (equivalente a 24 meses). Especificando os resultados obtidos ao nível da interação social, importa referir que obteve nove pontos em 14 possíveis no item Comportamento Social e sete pontos em 10 possíveis no item Jogo. No total, obteve 16 pontos em 24 possíveis, equivalendo a 24 meses. Os testes sociométricos realizados às crianças revelam que a L. fazia parte do grupo de crianças menos escolhidas pelo grupo de pares.
Em termos de posição sociométrica, apesar de não ser a que estava no nível mais baixo, era das que tinha valores inferiores e considerados muito abaixo da média. Perante os resultados obtidos, a L. parecia ser relativamente indiferente à maioria dos colegas do grupo, embora um ou outro a reconhecesse como amiga e a escolhesse em situações de realização de trabalho e/ou brincadeira no parque. Os resultados revelaram ainda que a interação social estabelecida entre a L. e os seus pares era reduzida. No que concerne aos interesses da criança, constatou-se que se prendiam, sobretudo, com o conto das histórias, rimas e canções.
Fizeram ainda parte deste estudo três adultos: o contador da história (educadora de infância do jardim de infância, com 11 anos de serviço e primeira autora do estudo) e duas assistentes operacionais, que trabalhavam na organização socioeducativa há 20 anos.
Técnicas e instrumentos de recolha e análise de dados
O estudo envolveu a utilização de diferentes técnicas de recolha de dados: observação, análise de redes sociais e pesquisa documental.
Flick (2005) afirma que a observação é uma capacidade que engloba vários sentidos - a visão, a audição, o olfato e o tato -, permite que o observador participe na vida do grupo e assuma um papel social que lhe dá acesso ao campo de observação. O recurso a esta técnica permitiu-nos conhecer as crianças e compreender os seus comportamentos durante as 17 sessões do conto de histórias. Estas sessões foram gravadas em vídeo, por ser uma ferramenta importante para captar a ação e as diversas interações que acontecem em contexto de sala de atividades. As 17 sessões envolveram um total de 5 horas e 50 minutos, tendo variado os tempos de registos de vídeo consoante o tipo de história e o contexto em que as histórias foram contadas, como se descreve na tabela 2.
Tipo de sessões / Contextos | Duração das sessões da 1. ª Série | Duração das sessões da 2. ª Série | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
HA 1 | HMS 1 | HS 1 | Total | HA 2 | HMS 2 | HS 2 | Total | |
Individual | 00:13:09 | 00:20:32 | 00:07:12 | 00:40:53 | 00:15:29 | (*) | 00:09:30 | 00:24:59 |
Pequeno grupo | 00:14:40 | 00:42:30 | 00:12:37 | 01:09:47 | 00:20:42 | 00:32:10 | 00:14:09 | 01:07:01 |
Grande grupo | 00:21:19 | 00:50:10 | 00:10:01 | 01:21:30 | 00:14:02 | 00:38:11 | 00:14:10 | 01:06:23 |
Total | 00:49:08 | 01:53:12 | 00:29:50 | 03:12:10 | 00:50:13 | 01:10:21 | 00:37:49 | 02:38:23 |
Tempo total: 05:50:33 | (*) - sessão não realizada devido ao confinamento social |
Posteriormente procedeu-se à transcrição dos comportamentos observados nas 17 sessões, com particular foco na identificação dos comportamentos dos participantes nas atividades, especificamente os relativos ao envolvimento e às reações da L. nas diferentes situações em que o conto de histórias aconteceu. O conteúdo destes dados foi depois analisado e classificado em três dimensões: (i) participação da L. face à contação das histórias; (ii) envolvimento da L. na atividade de contação das histórias e (iii) influência dos diversos tipos de história na promoção do desenvolvimento social.
Os comportamentos observados nos vídeos foram ainda analisados com recurso à Engagement Profile and Scale (EPS) (Escala de Envolvimento, traduzida para português por Henrique, 2018), a qual possibilitou olhar para as seguintes dimensões: consciência, curiosidade, investigação, descoberta, antecipação, persistência e iniciativa (Carpenter et al., 2015). Estas dimensões foram pontuadas numa escala de 0 a 4, em que: 0 - corresponde a «Ausência de envolvimento»; 1- corresponde a «nível baixo ou mínimo de envolvimento»; 2- corresponde a «envolvimento parcialmente mantido»; 3 - corresponde a «envolvimento quase sempre mantido» e 4 - corresponde a «nível máximo de envolvimento» (Carpenter et al., 2015). A escala foi aplicada focando os comportamentos de L. e de outras três crianças que faziam parte do grupo e que estiveram presentes nas sessões do conto de histórias em pequeno grupo (T; B; M.A.).
No total foram preenchidas 49 “escalas de envolvimento” (17 registaram os comportamentos de L. e 32 os comportamentos das outras três crianças do grupo). Estes dados foram analisados recorrendo a processos qualitativos e quantitativos, os quais permitiram identificar o nível de envolvimento demonstrado por estas crianças durante o conto das histórias, considerando os contextos e os tipos de sessões em que aconteceram.
O tratamento e a análise destes dados implicaram ainda a construção de uma base de dados no programa SPSS, com o intuito de perceber as médias obtidas em cada tipo de histórias e de sessão, considerando o nível de envolvimento de L. e dos seus colegas de grupo, tendo-se para o efeito criado dois grupos: o primeiro constituído por apenas um elemento, a L., e o segundo grupo constituído pelas três crianças que, de forma mais consistente, estiveram presentes nas sessões de pequeno grupo aquando do conto das diferentes histórias.
Recorreu-se também à técnica de observação direta sistemática para recolher dados relacionados com o desenvolvimento da criança L., com o objetivo de tentar perceber quais as áreas mais fortes e fracas desta menina antes e depois de se contar as histórias. Para tal, utilizou-se a Escala de Desenvolvimento Infantil Growing Skills (GS), a qual foi aplicada em dois momentos diferentes: antes de se iniciar o conto das histórias e depois de se concluir as sessões de conto das histórias. Posteriormente, procedeu-se à respetiva análise quantitativa dos dados recolhidos, para perceber o nível de aquisição de competências da L. nas diferentes dimensões que compõem a escala.
Registaram-se ainda 14 notas de campo, cujo objetivo foi fazer “retratos dos sujeitos” observados e relatos escritos de acontecimentos particulares resultantes de situações vividas nos contextos: o que se ouviu, viu, experienciou e refletiu sobre os dados (Bogdan & Bilken, 2013). O conteúdo desses dados foi depois analisado qualitativamente.
A técnica de análise de redes sociais foi utilizada para identificar as figuras de referência e os amigos da L.. O instrumento a que se recorreu foi o teste sociométrico, o qual, como afirmam Northway e Weld (1976), permite detetar as relações existentes entre os membros, o que implica dirigir perguntas a cada membro do grupo. Para a construção e aplicação do teste sociométrico, definiram-se três critérios, resultantes de três situações reais que faziam parte da rotina do grupo. Os dados recolhidos foram inseridos em matrizes sociométricas. Após as matrizes feitas, as respostas foram introduzidas no programa yED Graph Editor3, no qual foram construídos os respetivos sociogramas.
Recorreu-se ainda à pesquisa documental, nomeadamente do portefólio individual da criança L., em que constavam registos de fotografias e/ou desenhos realizados pela mesma. Esses documentos ofereceram informações, pistas e ilustrações de comportamentos e/ou situações vividas pela criança, permitindo compreender o fenómeno em estudo.
Em síntese, no presente estudo foram usadas diversas técnicas e instrumentos no decorrer das três fases em que o estudo se desenvolveu, como descreve a tabela 3.
Item | Fases do estudo | |
---|---|---|
1.ª fase | 2.ª fase | |
Técnicas | Análise de redes sociais; Observação sistemática e naturalista; Pesquisa documental. | Observação sistemática e naturalista; Análise de redes sociais. |
Instrumentos | Testes sociométricos; Escala de desenvolvimento Growing Skills; Notas de campo. | Escala de envolvimento EPS Registo vídeo Escala de desenvolvimento GS; Notas de campo; Testes sociométricos. |
Roteiro ético
No presente estudo, obteve-se o consentimento informado dos participantes e garantiu-se a preservação da sua privacidade e anonimato. Esclarece-se que foram explicados os objetivos do estudo aos encarregados de educação de todas as crianças. Salienta-se que a gravação dos comportamentos em vídeo implicou o pedido da devida autorização à coordenação da organização socioeducativa e aos encarregados de educação das respetivas crianças participantes. Foi ainda solicitado o assentimento informado às crianças, de modo a ser possível fazer registos fotográficos.
Resultados
Os resultados obtidos possibilitaram identificar os comportamentos da L. aquando do conto dos três tipos de histórias (histórias de autor, histórias multissensoriais e histórias sociais), bem como o nível de envolvimento de L. na atividade de contação das histórias e a influência dos diferentes tipos de histórias na promoção do desenvolvimento social de L. São esses os resultados que se passa a apresentar.
Participação de L. no conto de histórias
A análise dos dados de observação permitiu-nos identificar os comportamentos de L. durante os momentos de contação dos diferentes tipos de história e comparar esses resultados considerando o tipo de histórias e o tipo de sessão realizada. Constatou-se que os comportamentos de L. se relacionaram com duas dimensões: a interação com outros e a interação física com as histórias. Os comportamentos de interação com outros foram dirigidos ora aos seus pares, ora ao contador de histórias. Quanto à interação física com as histórias, os comportamentos de L. estavam ligados à sua reação às histórias e ao modo como explorava as histórias contadas. A figura 3 ilustra os resultados obtidos na 1.ª série de conto de histórias.
Nas sessões individuais desta série, os comportamentos de interação social e interação física com as histórias foram muito similares durante o conto das HA e HMS. Foi durante o conto de HS que se observou uma maior frequência de comportamentos de reação ao conto da história, comparativamente com os outros dois tipos de histórias. Porém, este tipo de comportamentos não foi observado aquando do conto deste último tipo de histórias nas sessões de pequeno e grande grupo.
Observando as sessões em pequeno grupo, registou-se que: (i) nas HMS, os comportamentos de L. relacionados com as formas de exploração da história assumiram claro destaque; (ii) nas HS, destacam-se os comportamentos relacionados com a interação com os outros (pares e contador) e uma maior variabilidade de comportamentos por parte de L.
Quanto às sessões em grande grupo, constatou-se a tendência de decréscimo dos comportamentos de L. aquando do conto de HMS e HS, sendo particularmente visível nas HS. O mesmo não se verificou no conto de HA, observando-se o aumento percentual de comportamentos de L. em todas as categorias estabelecidas. Analisando as distintas categorias comportamentais, percebeu-se que a interação com o contador se manteve muito estável ao longo de todas as sessões de grande grupo das três histórias. Na última sessão da 1.ª série, a interação com os pares assumiu destaque nas HMS e HA, mas não nas HS. A interação com o contador assim como a reação da L. ao conto mantêm-se com percentagens muito similares durante o conto de HA e HMS, tendo aparecido em destaque na primeira os comportamentos relacionados com a forma de exploração da história.
Face aos resultados apresentados, verifica-se que os comportamentos de L. inseridos na categoria interação da L. com o contador apresentam valores percentuais ascendentes, a partir da HS na sessão individual e à medida que as histórias e as sessões vão acontecendo, sofrendo um ligeiro decréscimo durante o conto de HS na sessão em grande grupo. Foi durante o conto de HS nas sessões em pequeno grupo que os comportamentos de interação com os pares assumiram maior frequência. Porém, nas sessões em grande grupo foi durante o conto de HS que se verificou uma menor frequência de interações com os pares. A frequência desses comportamentos nas sessões em grande grupo do conto de HA e HMS foi equivalente. A reação da L. ao conto das histórias não teve muitas variâncias, atingindo o seu pico durante o conto de HS durante a sessão individual. Os comportamentos relacionados com as formas de exploração da história foram os que apresentaram uma maior oscilação à medida que as sessões e as histórias iam acontecendo. Atingiram dois picos, um aquando do conto das HMS em pequeno grupo e a outra na HA durante a sessão em grande grupo, voltando a decrescer até a HS da mesma sessão. Podemos também concluir que todos os comportamentos manifestados pela L. sofreram um decréscimo importante na sessão de grande grupo da HS.
Os comportamentos de L. observados durante o conto das histórias na 2.ª série encontram-se descritos na figura 4.
Os resultados acima expressos evidenciam a existência de alguma oscilação nos comportamentos de L. à medida que o conto dos diferentes tipos de história e da especificidade das sessões aconteceram, particularmente no que às formas de exploração da história diz respeito. Nas sessões individuais, os comportamentos de interação com o contador e as reações da L. ao conto da história foram ligeiramente superiores no conto da HA relativamente ao conto da HS. Não se observaram comportamentos de exploração da história aquando do conto da HS. Nas sessões em pequeno grupo destaca-se o facto de a L. ter manifestado maior envolvimento e participação (considerando as categorias comportamentais definidas) durante o conto da HMS do que aquando do conto dos outros tipos de histórias e sessões. Porém, os comportamentos de interação com os pares atingiram valores superiores no conto da HS. Verifica-se, assim, que as sessões em pequeno grupo foram as mais favoráveis à manifestação de comportamentos de interação entre a L. e os outros, assim como de interação com as histórias. Nas sessões em grande grupo, o conto da HMS voltou a assumir destaque comparativamente com as restantes histórias, na medida em que a L. manifestou mais comportamentos de envolvimento e participação durante o conto deste tipo de história. Constata-se ainda que, na sessão do conto da HS em grande grupo, os comportamentos da L. nas quatro categorias definidas decresceram, comparativamente à sessão em pequeno grupo. Analisando os diversos tipos de comportamentos observados, regista-se o facto de os comportamentos de interação com o contador apresentarem oscilações entre os diversos tipos de sessões e de história, assumindo o seu pico no conto de HMS em pequeno e em grande grupo. A interação com os pares apresentou igualmente um comportamento de oscilação, obtendo o seu valor máximo na HS na sessão em pequeno grupo e no conto da HMS na sessão em grande grupo. Quanto aos comportamentos de exploração da história e de reação da L. ao conto, estes atingiram o valor máximo durante o conto de HMS em pequeno e em grande grupo. De realçar que os comportamentos de exploração da história também registaram um valor importante aquando do conto da HA na sessão individual.
Nível de envolvimento de L. na atividade de contação das histórias
Quanto ao envolvimento da L. na atividade de contação das histórias, relembra-se que cada dimensão foi classificada de 0 (ausência de envolvimento) a 4 (totalmente envolvida) e que os somatórios dos valores atribuídos a cada dimensão poderão oscilar entre 0 pontos (correspondendo a não foco) e 28 pontos (correspondendo a totalmente envolvida). Seguidamente, na figura 5, apresentam-se os valores obtidos nas diferentes sessões do conto de HA, resultantes das somas dos indicadores obtidos em cada sessão.
Perante os resultados obtidos, percebeu-se que, nas sessões individuais, o nível de envolvimento de L. se manteve sempre no nível máximo de envolvimento, tendo subido ligeiramente da 1.ª para a 2.ª série, passando de 27 para 28. Nas sessões em pequeno grupo, os valores mantiveram-se no nível mais elevado em ambas as séries. Quanto à sessão em grande grupo, os valores apresentam uma ligeira melhoria da 1.ª para a 2.ª série, mas a L. obteve níveis de envolvimento inferiores aos conseguidos nos outros dois tipos de sessão, ainda que correspondendo igualmente ao nível máximo de envolvimento. Na figura seguinte apresenta-se o nível de envolvimento de L. observado durante o conto de HMS.
Constatou-se que a L. obteve níveis de envolvimento bastante elevados em todas as sessões do conto das HMS, observando-se valores mais elevados nas sessões em pequeno e em grande grupo (28, correspondendo ao «nível máximo de envolvimento»). Na sessão individual só teve lugar o conto da história na 1.ª série, uma vez que nos foi impossível realizar a 2.ª série, devido à pandemia COVID-19. Contudo, na única sessão que nos foi possível concretizar, a L. alcançou um nível de envolvimento muito elevado (27).
Por último, apresenta-se, na figura 7, os resultados referentes ao nível de envolvimento de L. durante o conto das HS nas duas séries.
A análise dos dados presentes na figura acima permite-nos concluir que, na sessão individual, o nível de envolvimento de L. melhorou ligeiramente da 1.ª para a 2.ª série. Na sessão de pequeno grupo, houve igualmente uma melhoria no nível do envolvimento de L. de uma série para outra, sendo esta mais importante do que a anterior. Por último, na sessão em grande grupo, os níveis de envolvimento mantiveram-se iguais nas duas séries da história com o valor de 27. Verificou-se que o nível de envolvimento manifestado pela L., ainda que com alguma variabilidade, correspondeu em todas as sessões ao «nível máximo de envolvimento». Importa destacar ainda os níveis de envolvimento da L. e de outras três crianças do grupo tendo em conta o tipo de história e de sessão. Os resultados obtidos estão presentes na figura 8.
A L., representada pelo grupo 1, obteve para cada uma das histórias contadas um nível de envolvimento bastante superior ao alcançado pelas outras três crianças do grupo, representadas pelo grupo 2. Importa realçar que a L. obteve sempre o «nível máximo de envolvimento» nos três tipos de histórias, o mesmo não acontecendo com os seus colegas, cujos níveis de envolvimento oscilaram entre «envolvimento parcialmente mantido» e «envolvimento quase sempre mantido». Analisando os níveis de envolvimento de L. e dos pares considerando o tipo de história, verificou-se que a HMS foi a que suscitou um número de comportamentos de envolvimento mais elevado para ambos os grupos: para o grupo 1 (L.) representou um valor médio de 27,8 e para o grupo 2 (pares do grupo) o valor médio de 18,26, seguindo-se as HA e depois as HS, com a mesma ordem de importância para ambos os grupos.
Quanto aos valores obtidos para cada grupo de crianças considerando as sessões em pequeno e em grande grupo, não se encontraram resultados para o 2.º grupo na sessão individual, uma vez que não foram contadas as histórias individualmente a cada uma das outras três crianças presentes no estudo. Os resultados obtidos estão representados na figura abaixo.
Os resultados apresentados permitiram-nos perceber que a L. do grupo 1 obteve um nível de envolvimento superior na sessão de pequeno grupo (27,16), seguindo-se a sessão individual (26,60) e por último a de grande grupo (26,50). Embora se registe alguma diferença nos valores de envolvimento alcançados, estes situaram-se sempre no «nível máximo de envolvimento». Este padrão de envolvimento foi também observado para o grupo 2. Ou seja, também as três crianças do grupo 2 apresentam comportamentos de envolvimento superiores na sessão de pequeno grupo (26,58), comparativamente com a sessão em grande grupo (25,25). Apesar de a diferença não ser muito relevante, existiu e é de salientar. Perante os resultados expostos, podemos afirmar que o nível de envolvimento das crianças decresceu quando estas se encontraram em situação de grande grupo.
Perante os resultados apresentados, podemos afirmar que os comportamentos de envolvimento apresentados pela L. nas sessões e tipos de história apresentaram o mesmo padrão quando comparadas com os das outras crianças. Contudo, os níveis de envolvimento atingidos pela L. foram superiores aos dos colegas do mesmo grupo, o que nos leva a inferir que as histórias foram significativas para a L.
Influência dos diferentes tipos de histórias na promoção do desenvolvimento social de L.
Para se compreender a influência dos diferentes tipos de histórias na promoção do desenvolvimento social de L. no final do conto das duas séries de histórias, procedeu-se de novo à aplicação do teste sociométrico e da escala Growing Skills e ainda à análise das notas de campo e à análise documental do portefólio de L. São esses resultados que se passa a apresentar.
A análise dos resultados do teste sociométrico permitiu verificar que, na primeira questão (Quem escolherias para fazer um trabalho contigo?), a L. foi escolhida por dois colegas (A. e o T.R.) e esta escolha foi recíproca. Na segunda questão (Quem escolherias para ir ao parque contigo?), a L. voltou a ser escolhida por dois colegas (T. e J.). Neste caso, e em relação ao menino T., a escolha também foi recíproca. Na última questão (Quem escolherias para levar para tua casa para brincar com os teus brinquedos?), a L. só foi escolhida por um colega (E.). Constata-se que algumas crianças (T., A. e T.R.) nomearam a L. como elemento preferencial nas suas interações sociais. É ainda curioso registar que T., M.A. e C.G. se constituíram como três líderes no grupo. O T., a A. e o T.R. evidenciavam ser crianças importantes para a L. e vice-versa. É também de ressalvar que destas sete crianças uma delas pertence ao grupo de crianças com quem a L. partilhou a escuta das histórias nas sessões em pequeno grupo.
Quanto ao índice de posição sociométrica da L., os resultados obtidos situaram-na no valor 5, que corresponde a um valor abaixo da média. Contudo, este é um valor superior ao conseguido aquando da realização do primeiro teste sociométrico, que correspondeu ao valor 2, considerado muito abaixo da média. A melhoria no valor do índice sociométrico do teste inicial para o final também se verificou com as três crianças do grupo que integraram as sessões em pequeno grupo com a L.. Essas crianças passaram de 9,67 no primeiro teste, correspondendo a um valor que se situa na «média», para 12,00, entendido como estando «acima da média». Embora a L. tenha evoluído, constata-se que os valores obtidos por L. foram distintos dos dos seus três colegas, como se comprova com os dados da figura que se segue.
Perante os resultados obtidos no teste sociométrico, pensamos que o conto de histórias pode ter influenciado esta subida no índice sociométrico da L., permitindo que esta tenha passado de um nível muito abaixo da média para abaixo da média, conseguindo uma ligeira subida.
Os resultados da aplicação da escala Growing Skills à L. após as sessões do conto das histórias permitiram verificar o progresso de L. nas dimensões interação social e autonomia pessoal. Na interação social, os valores passaram de um total de 16 (correspondendo a 24 meses), antes do início do conto de histórias, para 22 (correspondendo a 36 meses) no final. Na autonomia pessoal, os valores iniciais de 13 (correspondendo a 24 meses) passaram no final para 18 (correspondendo a 43 meses). Perante os resultados obtidos, infere-se que a leitura das histórias contribuiu para uma melhoria do desenvolvimento social da L., considerando estas duas dimensões.
Olhando para os resultados das notas de campo realizadas na sala de atividades e no recreio, percebeu-se a natureza das interações estabelecidas entre a L. e os pares nestes contextos. No geral, houve mais registos de interações de natureza positiva do que negativa, tanto da parte da L. como dos pares, tal como evidencia a figura abaixo.
Os resultados das notas de campo evidenciam que a L. estabeleceu interações, sobretudo com sete crianças do seu grupo, sendo essas interações de natureza positiva (pró-social) e de natureza negativa (antissocial). As primeiras aconteceram com mais frequência do que as segundas, ou seja, apenas com uma criança a L. manifestou mais comportamentos antissociais do que pró-sociais. Importa ressalvar que estes eventos sociais envolveram mais meninas do que meninos (apenas as crianças T.R. e T. pertencem ao sexo masculino, as restantes eram do sexo feminino). As interações entre L. e a criança A. (criança do sexo feminino) assumiram destaque, bem como as estabelecidas entre ela e o T.R. (criança do sexo masculino). As interações entre estas crianças registaram mais comportamentos de natureza positiva do que negativa. Importa referir que não foram registados comportamentos de natureza negativa para com a L. por parte do T., da C.G. e da L.E..
Complementarmente, analisaram-se algumas informações existentes no portefólio da L. (desenhos, registos de conversas e de partilhas e fotografias), as quais nos permitiram também caracterizar as relações sociais estabelecidas entre a L. e os seus pares. Observemos dois desenhos da L., um realizado antes e outro após as sessões do conto das histórias.
A L., no início da contação das histórias, não conseguia representar nenhum colega no seu desenho. Porém, quase no final do processo de contação das histórias representou alguns dos seus colegas (o T. e a A.) e ainda nomeou a colega C.G.. As crianças representadas no desenho da L. eram as mesmas que, nos testes sociométricos, nomearam a L. (T. e A.) e que apareciam nas notas de campo como colegas com a capacidade de desenvolver interações positivas com a L..
Importa salientar ainda que, numa conversação entre a L. e a educadora, se verificou que a L. conseguia usar nos contextos corretos alguns dos conceitos abordados nas histórias e manifestar competências sociais. O álbum do portefólio da L. ilustra essas competências em alguns momentos de interação entre a L. e os colegas, como por exemplo brincar ao faz de conta na casinha com a colega A., fingindo esta ser uma esteticista a pintar as unhas da L.. Este momento de brincadeira perdurou por um longo período, sem conflitos nem desentendimentos.
Em síntese, os resultados referentes ao tipo de histórias mostram-nos que: (i) as HMS suscitaram na L. mais comportamentos de participação, sendo mais evidente a reação à história propriamente dita, sendo que a ordem pela qual as sessões aconteceram influenciou o seu nível de participação; (ii) as HS assumiram a sua importância na interação com os outros (pares), sendo que a ordem pela qual as sessões aconteceram parece não ter tido relevância; e (iii) as HA desempenharam a sua relevância na relação com o contador e provocaram na L. reações positivas nas diferentes sessões, sendo que a ordem das sessões teve influência nos comportamentos de participação da L.. Portanto, as HA e HMS promoveram uma maior frequência de comportamentos de interação com o contador e com a história por parte de L.; e as HS e as HA contribuíram para desencadear mais comportamentos de interação social na L. do que as HMS.
Realça-se ainda o facto de: (i) a participação e o envolvimento da L. no conto de histórias ter aumentado com o contacto com as histórias; (ii) os diferentes tipos de história terem provocado diferentes tipos de comportamento por parte da L. face a pessoas e às histórias e (iii) a L. ter atingido níveis de envolvimento máximos nos diferentes tipos de contextos aquando do conto das HMS.
Discussão dos resultados
O estudo procurou perceber de que modo o conto de diferentes tipos de história em diversos contextos influencia o envolvimento e a participação de uma criança com multideficiência na atividade de contação de histórias no jardim de infância, bem como o seu desenvolvimento social.
Quanto aos tipos de histórias contadas, os resultados do presente estudo evidenciam que as HMS desafiaram as crianças a ter reações positivas, particularmente com os estímulos sensoriais e com o contador de histórias, o que vai ao encontro do que nos reportam, por exemplo, os estudos de Gomes (2016) e Preece e Zhao (2014). Verificou-se também que este tipo de histórias contribuiu para melhorar a qualidade das relações estabelecidas entre as crianças, o que corrobora o que nos dizem Boer e Wikkerm (2008). Conclui-se que os resultados obtidos nas sessões referentes ao conto deste tipo de histórias permitiram criar oportunidades de as crianças usufruírem de experiências sensoriais e de interação social, contribuindo para promover o seu envolvimento na atividade de conto de histórias (Oliveira, 2020; Preece & Zhao, 2014; Ten Brug et al., 2015). Entende-se que as características sensoriais destas histórias estimulam o envolvimento ativo das crianças na atividade de conto de histórias (Oliveira, 2020; Preece & Zhao, 2014). Face aos resultados obtidos entende-se que estas histórias se constituem como um recurso pedagógico a usar no contexto educativo, como indicam Preece e Zhao (2014).
Quanto aos resultados relativos às HS, estes evidenciam que estas histórias são uma forma positiva e concreta de trabalhar uma variedade de conceitos e de situações de interação social (e.g. Rust & Smith, 2006; Test et al., 2011). Conclui-se que as HS se revelaram ser uma estratégia promotora do desenvolvimento e aprendizagem de competências sociais e emocionais (Gray, 2013).
Quanto ao tipo de sessão, conclui-se que os comportamentos manifestados por L. foram mais expressivos nas sessões de pequeno grupo, sendo importante este tipo de sessão acontecer sempre em segundo lugar em ambas as séries das histórias. A repetição parece assim constituir um fator relevante para crianças com multideficiência. Este tipo de sessão proporcionou ainda um contacto privilegiado com os pares, sendo que as partilhas entre as crianças aconteceram com uma maior espontaneidade. Globalmente, as sessões realizadas ilustram que a atividade de conto de histórias constituiu-se como uma experiência de comunicação e foi um “terreno fértil para o desenvolvimento de emoções experienciadas” (Nunes et al., 2020, p. 11), revelando-se uma atividade facilitadora do estabelecimento de relações interpessoais positivas.
Em termos gerais ficou claro que o conto das histórias trouxe benefícios para a L. e para o grupo de pares. A L. passou a manifestar mais competências sociais e começou a fazer parte dos diferentes momentos de brincadeira no grupo; por outro lado, os pares passaram a demonstrar maior compreensão com a L. e aumentaram os momentos de partilha entre eles. De salientar que a diversidade de histórias e de sessões influenciaram de distintas formas o envolvimento e a participação da L. e o seu desenvolvimento social. Entende-se que os benefícios não se restringiram à melhoria do desenvolvimento social, mas também à compreensão da linguagem verbal, assim como ao desenvolvimento da sua autonomia e autoestima. Estes resultados revelam que o conto de histórias teve efeitos positivos no desenvolvimento social e emocional de L. (cf. Dias & Neves, 2012; Martins, 2013; Morrow & Temlock-Fields, 2004; Rigolet, 2009; Santos, 2010).
Conclui-se que a atividade de conto de histórias se revelou ser acessível a todas as crianças (Ten Brug et al., 2015) e espera-se que estes resultados ajudem a promover o conto de diferentes tipos de histórias no contexto de jardim de infância. Pensa-se que a diversidade de histórias traz benefícios para todas as crianças, pois, ao oferecer-se uma pluralidade de histórias, multiplicam-se as experiências oferecidas ao grupo de crianças.