Introdução
Desde os primeiros meses de 2020, estamos vivendo uma nova, difícil e desafiadora realidade. A pandemia de Covid-19 assolou o planeta e acabou ceifando inúmeras vidas. No Brasil, o descaso governamental resultou em mais de 625 mil mortos, enquanto este trabalho é escrito. No ano seguinte ao aparecimento do vírus, apesar dos avanços da vacinação, a realidade pandêmica continua. As diversas variantes do vírus não deixam boas expectativas de que estejamos perto do fim desta doença.
Essa realidade atravessa todos os âmbitos da vida em sociedade, o que torna necessário refletir sobre práticas e modos de atuação no mundo. Concebemos que a arte não está descolada da vida, como algo à parte, mas sim imbricada, influenciando e atuando nela, de forma individual e coletiva. Assim, consideramos que “toda a experiência é resultado da interação entre uma criatura viva e algum aspecto do mundo em que ela vive” (Dewey, 2010, p. 122).
A partir deste contexto, passamos a rever práticas e modos pregressos de nos relacionarmos, com nós mesmos e com os outros. Por conta do isolamento social pandêmico, para aqueles que puderam ficar em casa, as tarefas diárias começaram a acontecer cada vez mais de forma simultânea. Assim, o estudo, o trabalho, a alimentação e os cuidados domésticos aconteciam quase como em modo multitasking. O termo multitasking, em tradução literal ‘multitarefa’, faz referência aos smartphones atuais, que desempenham inúmeras atividades ao mesmo tempo.
Esse modus operandi vem se aplicando em todos os setores da vida cotidiana, inclusive quando se trata da vivência no meio cultural. O zapeamento não ocorre apenas no universo virtual, mas também no meio físico quando se trata do tempo de apreciação nos espaços dos museus. O ser humano está sempre com pressa. E, com as visitas cada vez mais rápidas, as instituições - quase que de modo compulsório - entram em um circuito onde a ordem é produzir, produzir e produzir, para suprir essas necessidades de acesso à informação cada vez mais rápida.
Essa realidade no período contemporâneo não se restringe somente aos espaços dos museus, mas de inúmeros outros espaços da vida em sociedade, permeando as relações “que se manifestam nas diferentes esferas sociais e nas próprias instituições” (Hernández, 2005, p. 26). Tal fato não se iniciou recentemente, mas é um reflexo de outras narrativas pregressas, considerando que nos encontramos em um meio capitalista, em que, muito influenciados pelo sistema fordista de produção, transpomos essa produtividade para a educação e para o meio cultural, sendo que estes não deixariam de serem afetados por esse sistema.
A percepção de mundo se acelerou, a partir de uma modernidade que foi lançando tecnologias e novidades, desde o final do século XVIII, e, num crescendo, as influências advindas da Revolução Industrial, as máquinas, o sistema de circulação de mercadorias e de pessoas traz a velocidade com os trens e automóveis, o tempo medido pelo relógio das fábricas, tudo foi tornando um modo acelerado de tratar da vida, em função de um viés de produção.
A produção em massa no meio cultural, com a intenção de tentar atrair cada vez mais o público, quase que numa competição com internet e o acesso à informação através de um click, de certa forma prejudica o pós-processamento das informações geradas a partir das exposições e afins. Dentro desse looping de produção, vai se tornando cada vez mais inviável processar as respostas do público. Desta forma, estabelece-se uma hierarquização do sistema cultural e de arte, tendo em vista que o que se tem acaba sendo um transmissor e um receptor de conteúdos, e não um diálogo entre instituição e público.
El Museo es una Escuela: a poética artística suscitando reflexões nas instituições museológicas
Em pleno século XXI, vivemos em uma era de estetização, não somente do mundo à nossa volta, mas da própria percepção. Nas conceções de Lipovetsky e Serroy, 2016), com o incremento do consumo “somos testemunhas de uma vasta estetização da percepção, da sensibilidade paisagística, de uma espécie de fetichismo e de voyeurismo estético generalizado” (2016, p. 31).
Tal fetichismo ocorre em inúmeros aspectos da vida social, permeando um número significativo de âmbitos, sejam eles culturais, pessoais, profissionais, entre outros. O mesmo acontece nos espaços museológicos, sendo que nestes, muitas vezes o público acaba se afastando de experiências formadoras, por conta de um comportamento “apressado, zapeador, bulímico de novidades” (Lipovetsky & Serroy, 2016, p.31). Alguns museus, nesse sentido, muitas vezes acabam por mascarar uma aproximação com o público, através de seus ‘projetos educativos’:
Graças à eficiência de seus departamentos de educação, é atarraxada no coletivo a ilusória imagem do museu como um lugar acessível a todos os públicos: o museu espelho da sociedade que o rodeia. Sim. A ambição e o anseio de inclusão são apresentados como um fato consumado. Creio que isso explica, em muitos casos, a falta de compromisso dos departamentos de educação com as obras de arte e coleções com as que devem trabalhar. O destaque não está nos objetos, imagens, contextos e discursos que o museu preserva, mas na projeção social da instituição (Blondet, 2018, p. 69).
Como nos expõe o autor, os problemas vinculados aos setores educativos dos museus são muitos. Em tais setores, por ventura, são criadas ilusórias visões de acessibilidade, desconsiderando os objetos, imagens, contextos e discursos vinculados à instituição museológica, em detrimento de sua própria projeção social. Além disso, muitas vezes o próprio público é desconsiderado nesse processo, o que dificulta e acaba distanciando a relação entre público, museu e objeto museal. As práticas educativas dentro dos museus precisam “considerar todos os participantes do processo, com especial atenção ao receptor” (Wilder, 2009, p.56).
Esse distanciamento entre a teoria e a prática educativa dentro dos museus já suscitou reflexões na própria poética em artes. Nesse sentido, encontra-se a instalação El Museo es una Escuela: el artista aprende a comunicarse, el público aprende a hacer conexiones (Figura 1), de autoria do ativista político alemão naturalizado uruguaio, Luis Camnitzer (1937). Apesar de sua atuação, Camnitzer não se caracteriza enquanto um artista, nem como um pedagogo, muito menos como um comissário que irá dissolver essas três posições (Ni arte, Ni educación, 2015). Entre a sua trajetória profissional, podemos citar a curadoria pedagógica da 6a. edição da Bienal do Mercosul realizada em 2007, na cidade de Porto Alegre - RS, situada ao sul do Brasil.
Entre 2009 e 2015, a instalação de Camnitzer permeou a fachada de diferentes museus pelo mundo todo, incluindo o Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Solomon Guggenheim Museum (Figura 2) em Nova Iorque, o MALBA de Buenos Aires, o Museu de Arte Contemporânea de Montevideo, entre outros. A atitude do artista pode ser vista enquanto “uma estratégia de institucionalizar sua obra para exigir que o centro (instituição museológica) cumpra com o compromisso social e pedagógico que essa frase em sua fachada acarreta (Ni arte, Ni educación, 2015, p. 1, tradução nossa ).
Com O Museu é uma Escola, Camnitzer atua diretamente no tecido social por meio da arte, sendo que sua experiência ecoa no próprio cotidiano, promovendo reflexões e alastrando as experiências para além do espaço do museu: “A arte expressa, não afirma [...]. Uma relação social é uma questão de afetos e obrigações, interação, geração, influência e modificações recíprocas. É nesse sentido que a ‘relação’ deve ser entendida, quando usada para definir a forma na arte” (Dewey, 2010, p. 260).
Na consideração de que “o ponto de partida para uma educação crítica em museus é conhecê-lo” (Cury, 2013, p. 14), o artista incita questionamentos não somente sobre a função educativa dos próprios museus, mas também sobre a exequibilidade das práticas educativas dentro das instituições. Barbosa aponta alguns casos em que “nos educativos de museus, a animação cultural predomina e funciona como instrumento de sedução, sem grande valor para levar ao entendimento da arte” (2009, p. 18).
As práticas não mudam instantaneamente, é necessário espaço e tempo para que haja alguma alteração. No âmbito das relações entre o homem e a realidade, ele vai modificando e dinamizando seu próprio mundo: “Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor” (Freire, 2015, p. 43). Considerando a criação, a recriação e as decisões, o sujeito vai participando de sua época e abrindo espaços possíveis para o futuro.
As mudanças podem ser percebidas no próprio delineamento da museologia enquanto área específica, sendo concebida de formas distintas com o passar dos anos. Atualmente, alinhavado com o pensamento freireano, consideramos que as concepções da museologia social, também chamada de sociomuseologia, se fazem cada vez mais pertinentes, na consideração de que a mesma “se constituiu e se constitui ‘in mundo’, ou seja, na relação direta com a sociedade, com as demandas e questionamentos de segmentos sociais específicos” (Chagas, Primo, Assunção, & Storino, 2018, p. 76).
Após a segunda metade do século XX, novas maneiras começaram a ser pensadas em todos os âmbitos da sociedade. Um dos episódios emblemáticos deste período, a nível mundial, foram as manifestações encabeçadas pelos movimentos estudantis de maio de 1968, em Paris, impactando mudanças em vários âmbitos da sociedade. No Brasil, no auge da ditadura militar brasileira (1964-1985), na segunda metade da década de 1960, o movimento contracultural pairou em diferentes âmbitos das artes e da cultura, questionando e criticando comportamentos tradicionalmente enraizados, buscando novas formas de relacionamento entre arte, público e museus.
Estas críticas acompanhadas de ações e gestos concretos foram cruciais para que tradições fossem rompidas, novos modos comportamentais fossem acionados, novas formas poéticas, filosóficas e religiosas entrassem em cena e novas possibilidades de pensar e praticar museus e museologias fossem também colocadas em movimento (Chagas et al., 2018, p. 76).
Esses movimentos, oriundos de uma nova forma de se pensar e fazer museologia, trouxeram possibilidades e abordagens para a prática museológica, onde a dimensão social é privilegiada na construção participativa dentro das instituições.
O museu, então, coloca-se enquanto um espaço de construção aberta e coletiva, não delimitado por amarras internas e fechadas, mas considerando a dimensão do público. Para tal, é necessário que os envolvidos, sejam eles artistas, museólogos, educadores de museus, professores, cientistas, entre outros, “assumam o compromisso de trabalhar [...] com e a favor de uma museologia de caráter social e participativo. Quem efetivamente está disposto a fazer museologia com e não museologia para?” (Chagas et al., 2018, p. 86).
Quando pensada e praticada dessa forma, a sociomuseologia acaba privilegiando a subjetividade e a dimensão de seu público e o contexto das relações criadas, considerando toda a complexidade contemporânea através dos processos de urbanização e gentrificação, bem como de mercantilização cultural, questões de emigração e pelos investimentos governamentais - muitas vezes privilegiando megamuseus - entre tantas outras problemáticas atuais (Chagas et al., 2018).
Assim, perspectiva-se que a sociomuseologia, enquanto prática atuante dentro das instituições, brasileiras e mundiais, acaba corroborando para uma museologia frente à realidade de seu tempo presente, atuando em prol de injustiças e de minorias sociais. Isso, por sua vez, promove a dignidade da vida humana e acaba priorizando a dimensão sensível das instituições, criadas por e para seres humanos, distanciando-se de objetos sacralizados em detrimento das relações sociais entre público, museu e objeto.
Vergara (2018) aponta que é preciso convergência e fundamentação entre teoria e prática para transformar a experiência estética junto às exposições nas instituições em centros de interações multidisciplinar, diversificados e acessíveis para inúmeros níveis de público. Assim, distanciando do foco único nos objetos (bens culturais) musealizados para privilegiar as interações multidisciplinares ocorridas através destes. O autor justifica que esse pensamento não significa uma redução da potência artística per si em privilégio das prioridades didáticas, mas sim o de “expandir o conceito de relação entre arte/sociedade” (Vergara, 2018, p. 42).
A expansão da relação entre arte e sociedade, ou arte e vida, nos aproxima de John Dewey (2010), que considera que as relações sociais e a arte estão imbricadas, necessitando dedicação, interação e afetos para ocorrerem. As experiências dessa forma acontecem em fluxos dinâmicos de energia, onde “a obra ocorre quando um ser humano coopera com o produto de tal modo que o resultado é uma experiência apreciada por suas propriedades libertadoras e ordeiras” (2010, p. 381).
Assim, o ponto de interesse da sociomuseologia e de todas as suas práticas imbricadas, modificando relações previamente estabelecidas tradicionalmente, é a “relação recíproca de construção sujeito/mundo através da dialética entre consciência e experiência, que se dá no encontro com o objeto artístico” (Vergara, 2018, p. 43).
Ao passo que a experiência é capaz de modificar o sujeito e suas visões pré-estabelecidas de mundo, deve-se considerar a qualidade pedagógica que é inerente da arte, desconstruindo estruturas muitas vezes reproduzidas em massa sem consciência, criando disposições diferentes daquelas já acostumadas:
Se defendermos a função pedagógica da arte, é possível inscrever no imaginário coletivo, pouco a pouco, uma disposição diferente para socializar, entender, consumir, construir e desconstruir nossa cultura e as estruturas sociais que reproduzimos ao realizá-la” (Olascoaga, 2018, p. 27).
As relações entre sujeito e obra de arte são capazes de modificar as estruturas enraizadas de compreensão e decodificação do mundo ao redor por meio da experiência. Assim, é possível reverberar novas leituras e releituras do mundo e dos símbolos presentes neste, modificando formas de relacionamento previamente estabelecidas. Isso acaba se aproximando da proposição El Museo Es Una Escuela, questionando as próprias amarras das instituições, suscitando novos pontos de vista e possíveis reflexões.
Apesar das inúmeras mudanças nas concepções museológicas, conforme nos mostra a museologia social, na visão de Camnitzer, devemos ainda aspirar mudanças futuras. O museu enquanto espaço educativo é considerado como um verdadeiro terreno fértil, onde as futuras gerações continuarão a cumprir uma profunda revisão das funções sociais da arte (Site Select, 2017). Sabemos que o museu não é uma escola, mas dentro da instituição museológica, existe, sim, um espaço potente para a criação e reverberação de práticas educativas, cada vez menos voltadas ao objeto, privilegiando muito mais as experiências possibilitadas através deste.
Na luta por uma educação em prol da liberdade, Freire (2014) considera que, quando as estruturas acabam suprimindo as escolhas do sujeito, a acomodação toma conta do ser humano e a sua capacidade criadora acaba ficando em segundo plano, comprometida:
Por isso, toda vez que se suprime a liberdade, fica ele um ser meramente ajustado ou acomodado. E é por isso que, minimizado e cerceado, acomodado a ajustamentos que lhe sejam impostos, sem o direito de discuti-los, o homem sacrifica imediatamente a sua capacidade criadora. (Freire, 2014, p. 42).
“É próprio da consciência crítica a sua integração com a realidade” (Freire, 2014, p. 105). Assim, experiências que possibilitem ao público participar ativamente, tomando as rédeas de sua percepção, favorecendo a dimensão humana, social e crítica, possibilita construir uma educação de qualidade para além dos espaços escolares, buscando as potências educativas que permeiam os espaços museológicos, atuando diretamente na vida em sociedade.
Ensino a partir da construção coletiva de conhecimento
Devemos considerar que a vida social não está descolada da educação. No que tange às concepções educacionais, durante séculos, a figura do professor era vista enquanto o único ser dotado de conhecimento, uma figura de superioridade acima do aluno, própria da lógica de ensino tecnicista. No Brasil, durante o período da ditadura militar brasileira (1964-1985), o ensino tecnicista foi amplamente difundido e exaltado. Tal lógica de ensino tinha como foco prioritário formar indivíduos aptos ao mercado de trabalho, instaurando padrões a serem seguidos: “Sob a tutela da pedagogia tecnicista estabeleceu-se a padronização do ensino; A racionalização do trabalho escolar imperou na busca da garantia da eficiência” (David, 2015, p. 124).
Tal padronização de ensino utilizada pelo regime militar brasileiro, por sua vez, nos aproxima do que Foucault (1987) expõe em Vigiar e punir acerca da formatação do espaço escolar, sendo colocada em prática para a manutenção da ordem e da hierarquia entre professor e aluno: “Pouco a pouco - mas principalmente depois de 1762 - o espaço escolar se desdobra; a classe torna-se homogênea, ela agora só se compõe de elementos individuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre” (Foucault, 1987, p. 174).
O ensino tecnicista, privilegiando a racionalização da educação, acabou deixando de lado o sensível e todas as experiências possibilitadas por ele. O ensino da arte no Brasil, em meados da década de 1980, encabeçado por teóricos de importância no panorama brasileiro, como é o caso de Ana Mae Barbosa (2014), foi influenciado por movimentos sociais e educacionais contrários ao sistema vigente.
Se pretendemos uma educação não apenas intelectual, mas principalmente humanizadora, a necessidade da arte é ainda mais crucial para desenvolver a percepção e a imaginação, para captar a realidade circundante e desenvolver a capacidade criadora necessária à modificação dessa realidade (Barbosa, 2014, p. 6).
A arte, enquanto ferramenta capaz de desenvolver a percepção, privilegiando as experimentações individuais e coletivas, suscitando novas visões de mundo que consequentemente podem modificar a realidade vigente, nos aproxima dos pensamentos de Freire (2015), que consagra em meados do século XX de que a educação não deve ser vista mais com os olhos do ensino tecnicista, mas sim enquanto uma verdadeira prática em prol da liberdade.
Assim, na lógica progressista freireana, o professor é compreendido enquanto um mediador do conhecimento, que simultaneamente está aprendendo e ensinando com o aluno, mediando-o com o próprio mundo ao redor. O conhecimento como mediação, dessacralizado e descentralizado, acontece em diferentes espaços institucionais e não-formais de ensino. Entre os espaços institucionais, podemos citar as escolas e universidades, mas também em espaços potencialmente educativos, como é o caso das instituições museológicas.
No Brasil, desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Ldben 9394, 1996) em 1996, o papel do professor deixa de ser um transmissor de conhecimentos para se colocar como um mediador dos processos na sala de aula. Autonomia, liberdade, aprender a pensar e ter posições críticas são desejáveis na formação de pessoas, segundo Paulo Freire e outros pensadores como Dewey, Mathew Lipman, Celéstin Freinet, não apenas teóricos da educação como das artes, como propõem Mirian Celeste Martins, Ana Mae Barbosa, por exemplo.
Considerar a mediação como uma ação de encantamento, envolvimento, encaminhamento - e não condução - levar o outro à abertura de um estado de atenção para o mundo, como se fosse olhar para o nascimento de um novo significado, no momento de seu surgimento, isso causa o espanto ou a surpresa do encontro com a origem ou com o invento de um novo sentido, um novo saber sobre o mundo. O professor, como mediador, pode estar entre, no meio, como o fio na agulha que se enrola para formar um novo ponto, é preciso ser o elo, motivar o estudante para criar, para pesquisar: isso demanda mexer com sua atenção e sua curiosidade. No entanto, para provocar o outro a criar, é preciso também se colocar partilhando do entusiasmo para criar.
Como diz Merleau-Ponty, atrás de compreender o que vejo, por ser a percepção um “produto particular de uma atitude de curiosidade ou de observação. Ela aparece quando, em lugar de abandonar todo o meu olhar no mundo, volto-me para este próprio olhar e pergunto-me o que vejo exatamente, (...) ela é a resposta a uma certa questão de meu olhar” (2006, p. 305).
Martins e Picosque concebem a mediação como uma atitude pedagógica que crie situações para provocar novas significações, de modo que “o encontro com a arte, como objeto de conhecimento, possa ampliar a leitura e a compreensão do mundo e da cultura.” (2012, p. 17)
Paulo Freire na obra Medo e Ousadia: o cotidiano do professor, publicado originalmente em 1986, mas que se encontra numa pertinente atualidade, traz uma pergunta já no título do primeiro capítulo: “Como Pode o Professor Transformar-se num Educador Libertador? De que modo a educação se relaciona com a mudança social?” No encaminhamento destas reflexões ele vai mostrando como o ensino tradicional vai dando espaço para proposições:
A educação libertadora é, fundamentalmente, uma situação na qual tanto os professores como os alunos devem ser os que aprendem; devem ser os sujeitos cognitivos, apesar de serem diferentes. Este é, para mim, o primeiro teste da educação libertadora: que tanto os professores como os alunos sejam agentes.” (1986, p. 27)
Ser resistência e ativar espaços de criação e liberdade de pensamento nos motivam a continuar na docência, a acreditar na irrestrita capacidade da arte para sensibilizar, possibilitando reflexões em torno dos temas emergentes e que não podemos nos furtar de debater, independente da repressão e da censura, como: violência contra a mulher, homofobia, racismo, desigualdade social, pluralidade cultural, entre outros. São temas que envolvem um aprender sobre si, sobre o outro, sobre a sociedade que é nossa e na qual precisamos ser agentes de transformação.
A pensadora Catherine Walsh, coordenadora do Doutorado em Estudos Culturais Latinoamericanos da Universidad Andina Simón Bolívar-Ecuador, no livro Entretejiendo lo Pedagógico y lo Decolonial: luchas, caminos y siembras de reflexión-acción para resistir, (re)existir y (re)vivir, escreve sobre Paulo Freire como um teórico que inspira à militância de uma educação libertadora, por meio do conhecimento. Ela segue um dos princípios de Freire de que a prática educativa é uma prática social e política (2017, p. 31). Para Paulo Freire a pedagogia é uma metodologia imprescindível “nas e para as lutas sociais, políticas, ontológicas e epistêmicas de libertação” (1993, p. 86).
Segundo Walsh, Freire é um dos principais intelectuais do século XX, que deu a base para que possamos pensar a educação politicamente, entretecendo o pedagógico e o político, por meio de uma leitura crítica do mundo.
Não há mais prática social política do que prática educativa, (porque) com efeito, a educação pode ocultar a realidade da dominação e da alienação ou pode, pelo contrário, denunciá-las, anunciar outros caminhos, tornando-se assim uma ferramenta emancipatória (Walsh, 2017, p. 31, tradução nossa) .
Freire entendia que educar é um exercício de educar a si e ao outro, e é um ato político, sendo que a educação não pode se limitar ao espaço formal ou institucional, mas inclui os contextos sociais, políticos e existenciais. E afirma que “além de um ato de conhecimento, a educação é também um ato político. É por isso que não há pedagogia neutra” (Freire, 1986, p. 17). Para ele, a aprendizagem necessita de criatividade, e para sermos criativos precisamos ser livres. Assim, a sala de aula deve ser um espaço de liberdade e de libertação. E o primeiro ponto para Freire é que:
A educação libertadora é, fundamentalmente, uma situação na qual tanto os professores como os alunos devem ser os que aprendem; devem ser os sujeitos cognitivos, apesar de serem diferentes. Este é, para mim, o primeiro teste da educação libertadora: que tanto os professores como os alunos sejam agentes críticos do ato de conhecer. (1986, p. 27)
O professor se encontra envolvido no processo e não apenas ensina como aprende com seus alunos. E parece que o próprio processo de aprendizagem foi mostrando que o ensino não se trata de transmissão de conhecimento, mas de conhecer juntos, de aprender com o caminho que ambos, professor e estudante, traçam ao caminhar. “O importante é que a fala seja tomada como um desafio a ser desvendado, e nunca como um canal de transferência de conhecimento” (Freire, 1986, p. 31). Esta concepção ele traz também no texto Pedagogia da Autonomia, denominando, um dos capítulos deste livro como sendo “Ensinar não é transferir conhecimento” (1996, p. 21).
Considerações finais
Diante da realidade na qual estamos inseridos, em meio ao contexto pandêmico que se alastrou já por dois anos, se faz cada vez mais necessário reavaliar nossa atuação no mundo, buscando alternativas para pensar e repensar os espaços educativos, sejam eles formais ou não-formais. As instituições museológicas, durante séculos, foram sacralizadas enquanto espaços de relações, muitas vezes concebidas de forma unilateral com viés passivo, não compreendendo o diálogo entre público e instituição.
Tal contexto já não faz mais sentido na contemporaneidade em que vivemos, em que o papel das instituições acaba sendo aberto e de construção coletiva do conhecimento, compreendendo o público enquanto o conjunto de entes sociais fundamentais para o funcionamento do museu, sendo impossível desmembrar o museu da sociedade na qual ele está inserido.
Essas relações também são colocadas em reflexão através da poética artística, trazendo a obra de Camnitzer como uma experiência capaz de suscitar questionamentos sobre o funcionamento das próprias instituições museológicas, questionando o papel educacional que tais instituições possuem no âmbito social. As relações entre o museu e a escola são múltiplas, sem uma é impossível pensar na outra, nos levando a pensar além: qual a relação entre a sociedade e a educação? Para a construção de uma sociedade íntegra, humanizada e sensível, consideramos a educação enquanto um dos pilares fundamentais. Isso, por sua vez, nos aproxima do pensamento que Dewey conjurou ainda no início do século XX, concebendo que assim como a sociedade e a educação, a arte e a vida não estão descoladas uma da outra, mas são codependentes.
Na realidade brasileira, as mudanças educacionais ocorridas nas últimas décadas nos mostram que os esforços são cotidianos para vivenciarmos um mundo melhor, onde as experiências sensíveis são possibilitadas e encorajadas. Freire, com sua educação em prol da liberdade, nos mostrou que o processo educacional deve ser priorizado em uma sociedade mais justa e humana, bem como as relações dialógicas que são fundamentais, não somente na educação, mas na própria formação humana.