Introdução
A construção histórica da infância enquanto uma fase crucial para o desenvolvimento humano e o consequente reconhecimento das crianças enquanto sujeitos de direitos são recentes e, assim, inspiram grandes investimentos por parte dos estudiosos e gestores públicos rumo ao estabelecimento de redes de cuidados complexas o suficiente para garantir a atenção às suas demandas tão específicas. Nesse sentido, observa-se internacionalmente, nos últimos cem anos, um aumento significativo de pesquisas acerca do impacto das mais diversas condições (sociais, ambientais, genéticas, entre outras) sobre as primeiras etapas do desenvolvimento, cujos resultados têm subsidiado a formulação de legislações e políticas públicas direcionadas à essa população (Meisels & Shonkoff, 2000).
No Brasil, a transição de paradigma referente à infância ainda se encontra em curso, tendo acompanhado as transformações políticas que marcaram o final do século XIX e o século XX, período no qual retirou-se da esfera privada das famílias para assumir o status de objeto a controle do Estado, até a redemocratização do país (1985) e posterior promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1989 (Perez & Passoni, 2010; Gonzales, 2015). Durante esse período, apesar do caráter higienista e assistencialista\caritativo que alicerçava as políticas para crianças e adolescentes (denominados “menores”), instalaram-se alguns avanços relativos à percepção de cuidado que influenciam programas desenvolvidos até os dias atuais, como é o caso daqueles voltados à primeira infância e saúde materno-infantil.
Segundo Araújo et al (2014), as ações de saúde, inicialmente implementadas sobre o cunho curativo e individualizado, objetivando a resolução pontual de condições agudas de doença para minimizar o afastamento das mães no trabalho foram, pouco a pouco, incorporando as demandas próprias da infância, como os altos índices de mortalidade, levando à ampliação das propostas de cuidados, que estenderam-se ao “acompanhamento do processo de crescimento e desenvolvimento de todas as crianças” (Araújo et al, 2014, p. 1001). Sendo assim, a partir da década 1980, observou-se a implementação de diferentes estratégias governamentais destinadas às variadas problemáticas dessa população, como o Programa de Assistência à Saúde Perinatal (Brasil, 1991), a Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (Brasil, 1999), a Norma de Atenção Humanizada do Recém-Nascido de Baixo Peso - o Método Canguru (Brasil, 2002), entre outras, com vistas à garantia da atenção em uma perspectiva integral.
Neste contexto, as ações especificamente direcionadas à promoção do desenvolvimento na primeira infância ganharam destaque, tendo recebido centralidade nas agendas governamentais, baseando-se nas premissas “de articulação intersetorial, incluindo áreas como saúde, educação, segurança alimentar e nutricional, assistência social, entre outras” (Bichir, 2018, p.2). Tal interesse parece alinhado à tendência internacional adotada em programas denominados “de Intervenção Precoce”, os quais fundamentam-se nos resultados de inúmeros estudos que reconheceram o impacto significativo de investimentos realizados na faixa etária entre zero e seis anos sob as condições sociais, econômicas e de saúde da população infantil, produzindo efeitos longitudinais a nível pessoal e comunitário; bem como na comprovação de que intervenções realizadas antes dos três anos de idade possuem maior eficácia devido à acentuada plasticidade neural característica dessa fase do desenvolvimento, justificando a importância de tais investimentos (Shonkoff & Meisels, 2000; Karoly, Kilburn & Cannon, 2005).
Os programas de Intervenção Precoce (IP) vêm sendo desenvolvidos há várias décadas em países como Estados Unidos e Portugal, aprimorando-se através de avaliações constantes e do respaldo político e legal que direcionam ao desenvolvimento e emprego de práticas comprovadamente eficazes e alinhadas às evidências científicas (Carvalho et al, 2016). Segundo Birrento (2015, p. 19), a IP pode ser compreendida como “um instrumento político na concretização do direito à participação social dessas crianças e dos jovens e adultos que irão se tornar”. Nesse sentido, com vistas à referência estabelecida por tais programas, convém observar quatro indicadores que são considerados cruciais para a efetivação da integralidade nos cuidados à infância: centralidade das famílias nas tomadas de decisão; valorização dos contextos naturais de aprendizagem; transdisciplinaridade das abordagens e coordenação e integração de serviços e recursos (Carvalho et al, 2016).
Contudo, apesar da reconhecida relevância de tais elementos para a efetivação de práticas de qualidade e do aumento do interesse dos formuladores de políticas públicas sobre a temática no Brasil, observa-se um distanciamento entre o que é proposto pelas normativas e os conhecimentos mais avançados sobre atenção à infância, assim como uma grande fragmentação das ações direcionadas a esse público, o que pode impactar na implementação de estratégias verdadeiramente integrais. Tomando por base tais constatações, o presente trabalho tem por objetivo analisar a aproximação entre as proposições legislativas que fundamentam políticas públicas\programas direcionados à primeira infância a nível nacional e os indicadores de integralidade da atenção recomendados internacionalmente no âmbito da Intervenção Precoce.
Metodologia
Trata-se de um estudo documental, retrospectivo e de abordagem qualitativa. Como apontado por Godoy (1995, p.21), a pesquisa documental consiste no “exame de materiais de natureza diversa, que ainda não receberam um tratamento analítico, ou que podem ser reexaminados (...)”, incluindo uma ampla gama de documentos, escritos ou não. Para o presente estudo, o levantamento dos dados foi realizado por dois pesquisadores, de forma independente, em meio virtual, através de busca na página Portal da Legislação (http://www4.planalto.gov.br/legislacao/), no período de abril a maio de 2020. Foram empregados como descritores os termos “Primeira infância”, “Infância” e “Criança”, e incluídos os documentos referentes ao período de janeiro de 2009 a abril 2020, respeitando-se os critérios: tratar-se de documento governamental que verse sobre legislação para garantia dos direitos das crianças, englobar o período entre 0 e 6 anos, não ter sido revogado, ter sido elaborado e aplicável a nível nacional. Após o levantamento dos dados, os mesmos foram organizados em duas matrizes de síntese primária (uma para cada pesquisador), as quais pressupunham a listagem de todos os documentos localizados, contendo informações sobre a referência, data de homologação, status (válido ou revogado), autoria, departamento de vinculação, entre outras. Posteriormente, procedeu-se a comparação das matrizes, com a exclusão dos trabalhos repetidos e a seleção por critérios, passando a ser organizados em em uma planilha desenvolvida para a análise dos dados. Como metodologia de análise empregou-se a análise de conteúdo (Bardin, 2011), a partir da qual relacionaram-se as proposições contidas nos documentos governamentais aos indicadores de integralidade da atenção (centralidade das famílias nas tomadas de decisão; valorização dos contextos naturais de aprendizagem; transdisciplinaridade das abordagens e coordenação e integração de serviços e recursos), gerando categorias.
Resultados
Com vistas aos procedimentos previamente descritos, as buscas produziram 104 documentos, sendo 78 para o descritor “Criança”, 21 para “Infância” e 05 para “Primeira Infância”, os quais foram transferidos para a matriz de síntese primária. Em seguida, procedeu-se a exclusão dos documentos repetidos, totalizando 94 que permaneceram para o processo de seleção por aplicação dos critérios de inclusão. Os documentos foram lidos na íntegra, classificados e 31 foram transferidos à matriz de análise, por serem pertinentes aos critérios propostos. Como etapa final, foram relacionados os conteúdos aos quatro indicadores de integralidade da atenção e os resultados organizados segundo núcleos para cada indicador. Cabe destacar que, dos 31 documentos, apenas 08 apresentaram conteúdos que permitiram sua categorização na análise (Figura 1).
Centralidade das famílias nas tomadas de decisão.
No que se refere aos pressupostos que direcionam a maior participação das famílias nos processos de tomada de decisões relativas às políticas públicas e serviços destinados ao atendimento das crianças na primeira infância, verifica-se que estão presentes em apenas três das legislações identificadas, devendo-se destacar ainda o fato de se tratarem de normativas recentes, sendo lançadas em 2016, 2018 e 2019 (Quadro 1).
Na Lei 13257, denominada Marco Legal da Primeira Infância, as famílias (pais e crianças) são descritas, pela primeira vez, como responsáveis pelo aprimoramento da qualidade das ações e garantia da oferta de serviços à essa população, dentro de uma abordagem participativa que envolve também os membros da sociedade e os profissionais. Assim, como previsto em seu Artigo 12, “A sociedade participa solidariamente com a família e o Estado da proteção e da promoção da criança na primeira infância, nos termos do caput e do § 7º do art. 227, combinado com o inciso II do art. 204 da Constituição Federal” (Brasil, 2016).
Como estratégias de apoio à sua participação, a referida lei prevê ações que favoreçam a formação e fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, potencializando o cuidado e educação de seus filhos através de programas desenvolvidos em uma perspectiva centrada na criança, focada na família e baseada na comunidade. Para tanto, no Art. 14, Paragrafo 3o, determina-se:
As gestantes e as famílias com crianças na primeira infância deverão receber orientação e formação sobre maternidade e paternidade responsáveis, aleitamento materno, alimentação complementar saudável, crescimento e desenvolvimento infantil integral, prevenção de acidentes e educação sem uso de castigos físicos, nos termos da Lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014 , com o intuito de favorecer a formação e a consolidação de vínculos afetivos e estimular o desenvolvimento integral na primeira infância (Brasil, 2016, s\n).
Na esteira dos direcionamentos apresentados pela Lei 13.257, a incorporação das famílias nos processos de tomadas de decisão pode ser verificada ainda no Decreto 9.579 de 2018, onde figuram como parceiras de diferentes órgãos no enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, e como público alvo do Programa Criança Feliz, cujos objetivos incluem a colaboração para o “exercício da parentalidade, de modo a fortalecer os vínculos e o papel das famílias para o desempenho da função de cuidado, proteção e educação de crianças na faixa etária de até seis anos de idade”, favorecendo seu protagonismo (Brasil, 2018). Do mais, em 2019, foi instituído através da Lei 13.960 o Biênio da Primeira Infância do Brasil, onde foram previstas, dentre outras ações, a realização de audiências públicas com famílias e organizações da sociedade civil com vistas à sensibilização sobre a importância de promover o desenvolvimento infantil nos primeiros anos de vida da criança (Brasil, 2019).
Nesse sentido, os resultados demonstram a intenção de tranformação na perspectiva de participação política das famílias de crianças na primeira infância, na direção do favorecimento do seu protagonismo para a tomada de decisões e exercício da parentalidade com o apoio do Estado.
Valorização dos contextos naturais de aprendizagem
Assim como verificado na categoria anterior, a valorização dos contextos naturais como espaços potenciais para a aprendizagem também é um conceito que apenas foi incorporado a partir da Lei 13.257, em 2016. Nesse sentido, o respeito e valorização às diversidades, incluindo as referentes aos contextos sociais e culturais nos quais as crianças se desenvolvem, têm sido tomadas como pressupostos para a elaboração de estratégias que aproximem as intervenções dos territórios, como destacado pelo parágrafo 4o
A oferta de programas e de ações de visita domiciliar e de outras modalidades que estimulem o desenvolvimento integral na primeira infância será considerada estratégia de atuação sempre que respaldada pelas políticas públicas sociais e avaliada pela equipe profissional responsável (Brasil, 2016, s\n).
Do mais, são previstos como responsabilidade da União, Estados e Municípios a organização e estimulação “da criação de espaços lúdicos que propiciem o bem-estar, o brincar e o exercício da criatividade em locais públicos e privados onde haja circulação de crianças, bem como a fruição de ambientes livres e seguros em suas comunidades” (Brasil, 2016, s\n).
Em consonância a tais disposições, o Decreto 9.579 de 2018, institui o Programa Criança Feliz sob a proposta de promoção do desenvolvimento integral na primeira infância, englobando os contextos de vida como um de seus pilares (Brasil, 2018).
Esses resultados reforçam, portanto, a importância do estabelecimento de legislações específicas para a primeira infância, uma vez que produzem efeitos relacionados à ampliação do olhar sobre diferentes fatores que contribuem para o desenvolvimento nessa faixa etária, como observado após o lançamento do Marco Legal da Primeira Infância.
Transdisciplinaridade das abordagens
O termo transdisciplinaridade não foi identificado em nenhum dos documentos recuperados, contudo, a Lei 13.257 (Brasil, 2016) e o Decreto No9.579 (Brasil, 2018) preveem a articulação entre diferentes áreas, como saúde, educação, nutrição, assistência social, e outras, para a formulação de políticas e programas governamentais de apoio às famílias, como no caso do Programa Criança Feliz. Nesse contexto, os resultados evidenciam direcionamentos ainda iniciais na perspectiva do desenvolvimento de ações e políticas em uma abordagem de integração e transposição de saberes entre diferentes esferas do cuidado.
Coordenação e integração de serviços e recursos
A coordenação e integração de serviços e recursos, dentre as categorias analisadas, foi a que mais produziu resultados, sendo verificada em todos os documentos selecionados, bem como a que vem sendo incorporada há mais tempo como uma estratégia para o desenvolvimento de ações direcionadas a esse público.
Em 2014, a Lei 13.010 prevê
a formação continuada e a capacitação dos profissionais de saúde, educação e assistência social e dos demais agentes que atuam na promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente para o desenvolvimento das competências necessárias à prevenção, à identificação de evidências, ao diagnóstico e ao enfrentamento de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente (Brasil, 2014).
Para além disso, ainda são previstas a integração de diferentes órgãos do sistema de promoção, proteção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes, com vistas à garantia da erradicação dos castigos físicos e tratamento degradante a essa população.
Em 2016, o Marco Legal da Primeira Infância incorpora também esses conceitos, delimitando um modelo de Política Nacional Integrada para a primeira infância, “formulada e implementada mediante abordagem e coordenação intersetorial que articule as diversas políticas setoriais a partir de uma visão abrangente de todos os direitos da criança na primeira infância”. Dessa forma, pretende-se, por parte da União, a busca pela adesão à uma “abordagem multi e intersetorial no atendimento dos direitos da criança na primeira infância” oferecendo, para tanto, “assistência técnica para a elaboração de planos estaduais, distrital e municipais para a primeira infância que articulem diferentes setores” (Brasil, 2016).
A incorporação de tais proposições passa a ser identificada já em 2017, como verificado no Decreto de 07 de março, através do qual instituiu-se, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, o Comitê Intersetorial de Políticas Públicas para a Primeira Infância, com o objetivo de articular ações de promoção e proteção de direitos, bem como ações setoriais com vistas à promoção do atendimento integral e integrado às crianças na primeira infância (Brasil, 2017). No mesmo ano, os conceitos ainda foram verificados na Lei 13431, a qual versa sobre o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, sendo previstas ações articuladas na implementação das políticas de justiça, segurança pública, assistência social, educação e saúde, e também entre os programas, serviços ou equipamentos públicos com vistas à integralidade no atendimento (Brasil, 2017B).
Em 2018, a temática também foi incorporada aos Decretos No 9.579 (Brasil, 2018) e No 9.603 (Brasil, 2018B), nos quais a intersetorialidade surge como uma ferramenta para a implementação de programas em territórios de grave vulnerabilidade e violência, como os Programas Bem-me-quer e Criança Feliz, assim como no âmbito do atendimento às crianças vítimas de violência.
No ano seguinte, com a mudança do governo e reestruturação dos ministérios, foram incorporadas como ações do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, através do Decreto 10.174:
III - colaborar para o desenvolvimento de ações intersetoriais voltadas para a elaboração, implementação e avaliação de políticas e programas que auxiliem as famílias na aquisição de competências relacionais que contribuam para a promoção, proteção e efetivação dos direitos da criança e do adolescente;
IV - articular ações intersetoriais, interinstitucionais, interfederativas e internacionais para fortalecimento da família;
X - promover e articular a implementação de políticas, programas, ações e serviços referentes à família por meio da integração das instâncias intersetoriais, interinstitucionais e interfederativas (Brasil, 2019B).
Nesse mesmo ano, ainda foi homologada a Lei 13960, a qual instituiu o Biênio da Primeira Infância do Brasil no período de 2020 a 2021, em cujas atividades foram previstas, dentre outras, “definição e publicação de parâmetros de atuação intersetorial para a promoção do desenvolvimento da criança na primeira infância e recomendações ao Governo Federal de políticas públicas intersetoriais direcionadas à primeira infância” (Brasil, 2019).
Diante desses resultados, verifica-se que a proposição de ações em uma perspectiva intersetorial aparece com mais frequência nos documentos, demonstrando se tratar de uma perspectiva já conhecida e desejada no desenvolvimento de políticas e programas, sendo mais facilmente transposta para a perspectiva dos cuidados à primeira infância.
Discussão
Com vistas ao objetivo do estudo, os resultados evidenciaram ser recente a incorporação nas legislações brasileiras da maioria dos indicadores de integralidade da atenção à infância recomendados internacionalmente, o que demonstra um lapso de décadas para o alinhamento com estratégias que vêm sendo fortemente fundamentadas na literatura científica desde os anos 80. Assim, verifica-se que tal condição se deve não só à ausência de interesse público pela temática, como também à demora no reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos e o estabelecimento de uma lei que as resguardasse em termos das condições para o desempenho de seu cuidado.
Nesse contexto, é inegável que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990, seja reconhecido como um marco na garantia dos direitos à essa população, uma vez que rompe com a lógica puramente assistencialista e\ou penalizante adotada até aquele momento, para englobar todas as infâncias e não apenas aquela dos abandonados, vulneráveis ou infratores. Dentre os avanços, a proposta de proteção integral e a efetivação dos direitos “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (Brasil, 1990, p.s\n) como responsabilidades da família, comunidade, sociedade e Estado forneceram uma base para a ampliação das ações e políticas de forma mais abrangente. Contudo, não foram delimitadas as abordagens teóricas segundo as quais se estruturariam tais ações, mantendo-se a perspectiva setorializada de atendimento, com pouca integração entre as ações desenvolvidas pelos diferentes programas e serviços.
Do mais, cabe pontuar ainda que, apesar da tentativa de superação da lógica punitiva e ampliação do enfoque em direitos, grande parte da redação do ECA se dirige ao estabelecimento de procedimentos jurídicos relacionados tanto às condutas diante de atos infracionais, quanto à adoção, ao acolhimento institucional e familiar, processos criminais face ao descumprimento dos artigos previstos nessa lei, entre outros, havendo um espaço reduzido ao direcionamento de ações específicas de promoção de direitos, especialmente no que se refere à primeira infância. O mesmo se observa em relação às famílias, que são inicialmente apontadas como responsáveis pela promoção e garantia de direitos, juntamente com a comunidade, sociedade e Estado, porém ao longo da redação são delegadas ao papel de receptoras de intervenções e sanções propostas pelo Estado através da figura de diferentes serviços, o que não valoriza nem proporciona sua autonomia no desempenho de ações junto aos outros níveis.
A esse respeito, como evidenciado nos resultados relativos à temática da centralidade das famílias nas tomadas de decisões, é recente o fortalecimento do ideal de uma maior participação familiar nas discussões políticas, assim como se verifica a ampliação do incentivo ao protagonismo de seus membros, contudo, tais questões emergiram apenas após o estabelecimento de uma legislação que abrangesse especificamente a Primeira Infância, o que reforça a importância desses dispositivos legais para a transformação das estratégias de cuidado. Nesse sentido, como apontado por Carvalho et al (2016), é fundamental que as políticas públicas estejam alinhadas aos avanços científicos, de modo que muitas evoluções práticas, conceituais e filosóficas podem ser observadas a partir dessa conjunção.
Assim, convém destacar que o ECA fundamentou, em grande parte, as políticas públicas direcionadas à essa população nas últimas três décadas no Brasil. Dessa forma, a integralidade no cuidado, apesar de almejada, passou a depender dos referenciais adotados nos diferentes programas em âmbito nacional, estadual e\ou municipal, os quais permaneciam sendo vinculados a setores específicos, com objetivos delimitados por áreas o que, além de não garantir uma homogeneidade no atendimento, também limitava a transposição de saberes entre entre essas diferentes esferas.
Nesse contexto, apesar da perspectiva intersetorial ser verificada com mais frequência nos documentos analisados, o que sugere que esteja mais incorporada à agenda política, a literatura internacional tem apontado a importância do desenvolvimento de estratégias integradoras das ações direcionadas à primeira infância e no contexto da Intervenção Precoce, de modo a superar “a fragmentação das tradicionis práticas terapêuticas e reabilitativas que tipificam as políticas e os serviços dirigidos a crianças e famílias por organismos distintos da administração pública”, o que consiste em um desafio ainda a ser superado na lógica da organização brasileira (Carvalho et al, 2016, p.227; Guralnick, 2005, 2012; Shonkoff, 2010).
No mais, é importante considerar que, para além das ações intersetoriais, a transdisciplinariedade também representa um importante indicador de integralidade da atenção recomendada no contexto internacional, o que não foi identificado nos documentos analisados. Dessa forma, apesar de consistir em uma abordagem que possa ser adotada em diferentes serviços, vinculados a variados setores, sua implementação depende, entre outro fatores, de se redesanharem os modelos de prestação desses serviços (Bruder, 1996), o que passa pela adoção dessa abordagem como referência durante a formulação das políticas públicas.
Da mesma forma, a valorização dos contextos naturais de aprendizagem também se mostrou um elemento pouco incorporado à agenda das políticas para a primeira infância no Brasil, especialmente no que tange aos ambientes extra escolares, como a casa e a comunidade. Nesse sentido, apesar de um forte investimento na regulamentação da educação formal, o impacto do aprendizado e do desenvolvimento produzidos nos demais espaços de participação são pouco abordados. Tendo em vistas essa lacuna, o comitê científico Nucleo Ciência Pela Infância (NCPI, 2014) produziu um documento direcionado aos legisladores e gestores públicos, apontando “O impacto do desenvolvimento na primeira infância sobre a aprendizagem”, além de outros materiais que têm fomentado transformações decorrentes desde então.
Tais reflexões apontam para a escassez de legislações que incorporem em suas delimitações os conceitos de centralidade das famílias nas tomadas de decisão, valorização dos contextos naturais de aprendizagem, transdisciplinaridade das abordagens e coordenação e integração de serviços e recursos, bem como a incorporação dos mesmos após a promulgação do Marco Legal da Primeira Infância.
Como verificado nos resultados dessa pesquisa, na contramão do que se havia praticado até o momento, a Lei 13.257\2016, institui uma mudança de paradigma em relação à estruturação de ações para a primeira infância, propondo “princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano” (Brasil, 2016, s\n). Nesse sentido, o Marco Legal veio responder a algumas das lacunas deixadas pelo ECA, tornando-se um instrumento complementar na direção da delimitação de estruturas para alcançar os objetivos inicialmente almejados e abordando temas considerados
essenciais à fase inicial da vida dos filhos, desde questões como a amamentação, parentalidade e divisão de responsabilidades entre os pais, até de educação, direito de brincar e adoção de políticas públicas que beneficiem notadamente o desenvolvimento infantil, entre outras (Galvão, 2018, p.112).
Considerações finais
O presente estudo evidenciou a contribuição substancial do Marco Legal da Primeira Infância para a incorporação de referenciais que aproximem as estratégias de cuidado da lógica da integralidade, sendo que a inclusão de tais transformações já tem sido visível na delimitação de novas agendas governamentais direcionadas à essa população, como o estabelecimento do Biênio da Primeira Infância. Contudo, verifica-se que alguns elementos ainda não foram completamente incorporados, ou apresentam-se em um passo anterior ao que se tem indicado como o melhor modelo de prática, como a transdisciplinaridade das ações e a valorização dos contextos naturais de aprendizagem, cabendo maiores discussões acerca de sua importância e como promovê-los. Dessa forma, considera-se que alguns passos já foram dados em direção à adoção de indicadores de integralidade da atenção à primeira infância recomendados internacionalmente; entretanto, ainda é grande a demanda por investimento no estabelecimento de leis, políticas e programas alinhados aos conhecimentos científicos mais recentes.