Pelos dias dos ecos da sua morte na imprensa e no Parlamento
Antes de evidenciarmos a vida de António Aurélio da Costa Ferreira (de ora em diante, Costa Ferreira), percorremos notícias da sua morte, em revistas e jornais da época, bem como em sede parlamentar. É possível, desde logo, descortinar um assomo de espanto e de estupefação perante um acontecimento inesperado. Para ilustrar o sucedido, há um conjunto de epítetos hiperbólicos que não deixam de caracterizar quem foi Costa Ferreira.
O jornal A Capital noticiou, no próprio dia do falecimento, 15 de julho de 1922, a notícia que chegava de Lourenço Marques:
Somos dolorosamente surpreendidos pela notícia do falecimento do Dr. Aurélio da Costa Ferreira, falecimento confirmado por um telegrama do Alto-Comissário em Moçambique noticiando ter-se suicidado em Lourenço Marques este notável homem de ciência. Antigo Ministro de Estado, provedor da Casa Pia de Lisboa e ultimamente diretor do Instituto de Mutilados de Santa Isabel, o Dr. Aurélio da Costa Ferreira era uma figura de alto destaque. Durante muito tempo colaborou na Capital com invulgar brilhantismo, tendo prestado ao país, nas diferentes missões que lhe foram confiadas no estrangeiro, irrecusáveis serviços. À família do dr. Costa Ferreira apresentamos os nossos sentidos pêsames.
Nesse mesmo dia, o Diário de Lisboa, incluía a notícia chocante daquele desaparecimento. O texto dá conta de um acontecimento que deixou todos os que o conheciam atónitos, pois “tinha centenas de amigos dedicados que tão sentidamente, como nós, deplorarão o seu trágico fim” . A sua faceta de pedagogo foi evidenciada, sobretudo no papel que teve na Casa Pia de Lisboa e na dedicação para com as crianças classificadas de anormais. Perante este inusitado facto, o jornal mencionou o suicídio, mas sem conseguir oferecer ao leitor os motivos que estiveram na base desse trágico desfecho. Escreveu ainda que o falecido médico e professor se encontrava em Lourenço Marques há apenas duas semanas, por ter sido contratado para realizar estudos de antropologia junto das comunidades locais.
Refeita da surpresa, a imprensa escrita ganhou tempo para ligar a morte à obra deixada por Costa Ferreira. Dois dias volvidos, o mesmo Diário de Lisboa deu destaque de primeira página a um texto encomiástico, escrito por Trindade Coelho.
O texto tem por singelo título “Costa Ferreira” e é um sentido testemunho, mais do que uma notícia, daquele que foi seu amigo e com quem partilhou a condição de maçon, na mesma loja, a Solidariedade (Marques, 1986) . Apelidou-o de cândida flor silvestre e de um tímido que se vira forçado e ter uma intervenção pública . O retrato pessoal que Trindade Coelho fez do falecido transmite-nos a ideia de alguém inconformado, mas desalentado com a sociedade em que vivia, pouco satisfeito com a política, para onde entrara, mas abandonara. Aliás, a sua intervenção político-partidária foi descrita com grau de pormenor:
Eu tive de lidar mais intimamente com Costa Ferreira quando, no arrumo ofegante e delirante das mésinhas constitucionais, se fundou à pressa, com o rótulo bonacheirão de conservador, o extinto partido evolucionista, nascido numa casa de hospedes da Praça de Camões e numa pitoresca manhã de bem humorada dispepsia do meu amigo Malva do Vale. Na prateleira indistinta do marechalato, e, em resignado alinho com a outra frascaria, lá fui descobri Costa Ferreira, que, por dedicação, sacrificara a sua magnífica independência e o seu mérito real, às decisões familiares da botica partidária. E por lá andou tonto e vago como eu.
Este obituário é completamente provido de um olhar pessoal, de alguém que conviveu de perto com Costa Ferreira, nomeadamente nas andanças politiqueiras, como se pode ler. Trindade Coelho reforçou a presença do médico nos assuntos da governação - “creio mesmo que o fizeram ministro” - mas destacou a sua inadaptação para conviver com a velocidade dos acontecimentos sociais e políticos: “A massa […] é implacável, invade-nos, cinge-nos, enrodilhamos, absorve-nos, anula-nos. O fenómeno atingiu um pouco Costa Ferreira, exposto, como nenhum outro, ao contágio fatal, pela sua sensibilidade quase feminina”.
Na revista Ilustração Portugueza a notícia da sua morte teve honra de meia página. O autor do texto não está identificado, mas é bem claro o registo emocionado que dá conta do desaparecimento de uma personalidade que se distinguiu no campo da ciência. É apelidado de “ilustre homem de sciencia, bom e justo e pobre visionário”. Perante a surpresa da novidade, que chegara telegrafada vinda de Lourenço Marques, o texto parece justificar como causa da morte um sentimento de desconforto e de desajuste sentido “no meio de uma sociedade que já não se governa com estudo, com puros ideais, com honesta mediania de recursos económicos, e que se atropela doidamente para subir, para se encher, para se inebriar num mundo estranho de sensualidades”.
Tinha chegado a Moçambique nesse ano de 1922, a convite de Brito Camacho, Alto-Comissário da República em Moçambique, para participar na realização de estudos antropológicos naquela província. Partiu de Lisboa com destino ao Funchal, tendo daqui embarcado para Lourenço Marques. A viagem parece ter sido feita sob uma grave depressão nervosa e motivada por necessidades económicas, depressão essa que, possivelmente, terá sido a causa do suicídio. Tinha abandonado a vida que levava, os seus amigos, estudantes e família, para tentar a sua sorte em obter rendimento que permitisse sustentar os seus mais próximos.
Os ecos do seu súbito desaparecimento chegaram, com naturalidade, ao Parlamento. No dia 17 de julho, o presidente da Câmara dos Deputados, Domingos Leite Pereira , deu conta da morte do “médico distintíssimo, homem de sciência já notável, a despeito de a sua idade ser relativamente pouca” . Consignou-se um voto de pesar na ata da sessão parlamentar e foi aceite a proposta de interromper a sessão por dez minutos em sinal de respeito pela figura desaparecida.
Esta novidade foi comentada por outros parlamentares, estupefactos com a notícia. Augusto Joaquim Alves dos Santos revelou que recebera um bilhete escrito pelo falecido que incluía apontamentos coligidos durante a viagem que fez de navio rumo a Moçambique, no âmbito da colaboração com o Alto Comissariado daquela província, para a organização de trabalhos científicos antropológicos. O tom em que escrevera sobre as investigações que ia realizar em nada faria prever o trágico desfecho: “Por isso eu não compreendi, e ainda agora não sei explicar, o suicídio deste homem culto e bom, que ia, cheio de fé, realizar uma obra que se era cara ao seu espírito de homem de sciência” . Não conseguia encontrar razões que desvendassem o que considerou ser uma morte misteriosa, sobretudo porque a vida académica de Costa Ferreira, por força do seu impressionante currículo, corria de feição. Alves dos Santos lembrava a este propósito que o investigador iria ingressar na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra para lecionar um dos seus cursos logo que regressasse de Moçambique.
Também José Luís Ricardo se associou ao pesar do ilustre extinto, como classificou Costa Ferreira. Relembrou-o como um republicano da velha guarda, um médico estimado pelos seus pacientes, um professor respeitado pelos seus alunos, um amigo desvelado. A sua integração na primeira vereação republicana da Câmara Municipal de Lisboa eleita foi referida, bem como a sua passagem pelo Governo. Sobre esta fase da sua vida pública, o parlamentar deu a entender que esta exposição foi difícil de gerir: “Proclamada a República, foram tempos depois, arrancá-lo aos seus trabalhos profissionais para a gerência duma pasta de Ministro, e nesse lugar Sua Excelência marcou bem a sua personalidade, e se mais não fez, foi porque mais o não deixaram fazer” .
A morte, inusitada, veio deixar numa condição precária os seus três filhos, pois Costa Ferreira, como lembrou o parlamentar, foi um “sacrificado da República; morreu pobre, mas absolutamente honrado” . Tal seria lembrado por uma comissão constituída por delegados da administração da Casa Pia de Lisboa, preocupados com a situação familiar do falecido.
Em sede parlamentar, republicanos e monárquicos foram unânimes nos votos de pesar. O jurista Artur Virgínio de Brito Carvalho da Silva (1878-1938), pertencente à minoria monárquica, deixou registado o seu voto fúnebre, e Henrique Sátiro Lopes Pires Monteiro (1882-1958), militar e deputado do Partido de Reconstituição Nacional, relevou as instituições que criara ou em que desenvolvera a sua atividade, com destaque para a Casa Pia, o seu Instituto de Mutilados da Guerra e a Escola Normal Primária de Lisboa. No caso do Instituto de Mutilados, Costa Ferreira, que, apesar de não ter participado diretamente na Primeira Grande Guerra,
não esqueceu aqueles que cumpriram o seu dever nos campos de batalha: no Instituto de Mutilados de Santa Isabel, tratou com especial carinho e amor os que se tinham sacrificado pela pátria, combatentes gloriosos caídos no campo da honra e do dever.
Joaquim Dinis da Fonseca (1887-1958), da minoria católica no Parlamento, trouxe para este momento uma nota dissonante, ao lembrar que, apesar de todos os méritos da figura política e científica, fora “ele próprio que roubou a sua vida à sociedade portuguesa” . No seu entender, o suicídio era um sintoma do desvio moral por que passava a sociedade nacional e nem a ciência tinha o direito de pôr fim à vida.
O Ministro do Trabalho, Vasco Borges , em nome do Governo, enviou para a mesa da Câmara dos deputados uma proposta de concessão de pensão à família no valor de 3.600$, paga em duodécimos, para além de assegurar o envio do féretro para Lisboa. A proposta de lei a consignar pelo Parlamento, rapidamente aprovada, rezava os seguintes pontos:
Artigo 1.º É concedida à viúva e filhos do Dr. António Aurélio da Costa Ferreira, Director da Casa Pia de Lisboa, com sobrevivência duns para outros, a pensão anual de 3.600$ paga em duodécimos.
Art. 2.º É o Governo autorizado a fazer a trasladação para a metrópole e por conta do Estado, do cadáver do mesmo Dr. António Aurélio da Costa Ferreira.
Art. 3.º Fica revogada a legislação em contrário. - O Ministro das Finanças, Vitorino Guimarães - O Ministro do Trabalho, Vasco Borges.
Na câmara do Senado, o nome de Costa Ferreira foi aludido de forma elogiosa. Augusto César de Vasconcelos Correia , que tinha sido seu colega num ministério presidido por Duarte Leite, referiu-se ao falecido como “uma das nossas maiores competências em antropologia, e, como tal, era respeitado em Portugal e no estrangeiro” . Estranhou o momento em que o infeliz desfecho aconteceu, pois sabia que Costa Ferreira estava entusiasmado com a partida para Lourenço Marques e para “uma missão que cabia bem no seu feitio e no seu modo de ser” .
As preocupações viravam-se então para a difícil situação familiar, pois a mulher e os filhos dependiam exclusivamente dos rendimentos auferidos pelo extinto para sobreviver. Como tal, também nesta câmara se pediu especial atenção para o drama afetivo e para o imperioso apoio de que necessitavam urgentemente.
Nas diversas intervenções de parlamentares houve um unânime sentido de pesar ao mesmo tempo que se lembrava os factos mais relevantes da vida de Costa Ferreira. Há, também, referências a uma saúde que não era a ideal para uma viagem até África. Por exemplo, José Pontes , médico, que com ele privara diariamente durante seis anos, revelou uma informação curiosa:
Na hora em que embarcou para Moçambique, ao abraçá-lo, disse-lhe que lamentava que para ali fosse, porque não tinha saúde para lá viver e trabalhar. Sorriu e respondeu-me que precisava ir à África para completar a sua obra de investigação científica.
Entristecido com o facto, aquele lembrou o seu papel na edificação do Instituto de Mutilados de Guerra e, no plano internacional, a intervenção, reconhecida pelos seus pares, em defesa dos mais desfavorecidos da sociedade. Ainda que fosse conhecido pelo afeto que depositava nos outros, Costa Ferreira “fugiu do mundo, como fugiudapolítica. Fugiu às desavenças e aos ódios entre homens, como fugiu sempre, em vida, ao bulíciodasociedade pelo horror físico às multidões que dêle se aproximavam” .
Rudolfo Xavier da Silva , seu colega de curso, aventou mais informações acerca do seu estado de alma:
Não posso ainda neste momento saber o motivo que levou António Aurélio da Costa Ferreiraa armar o laço que lhe havia de estrangular o pescoço, mas com certeza não andarei muito em êrro dizendo que a nostalgiadasua família lhe enfraqueceu o coração, e a neurastenia mais acentuada pela depressão do clima, arrazando-lhe os nervos, levou êste homem de sciência a pôr termo à existência como se fôsse um fraco de espírito e intelecto.
Entre os dias 22 e 26 de setembro de 1934 decorreu, na cidade do Porto, o I Congresso de Antropologia Colonial, no qual o seu nome foi alvo de homenagem pelo trabalho desenvolvido em prol do conhecimento antropológico desenvolvido na colónia moçambicana (Antropologia e Etnologia, 2018).
O percurso que se fez através das palavras escritas e ditas por aqueles que com ele privaram, mais ou menos de perto, fossem amigos, colegas ou conhecidos, é revelador do respeito com que a sua vida e obra foram lembradas nos diversos obituários ou momentos de homenagem. O caso não era para menos. Costa Ferreira foi autor de inúmeras comunicações em congressos nacionais e internacionais, escreveu artigos para jornais, boletins e revistas especializadas, dando conta das suas investigações, alicerçadas no trabalho de campo e no acompanhamento de crianças com problemas cognitivos. O seu protagonismo no campo da educação pública, precocemente interrompido, foi muito a tempo de marcar gerações de professores e de contribuir para um melhor conhecimento da criança.
Apontamentos biográficos
A partir das notícias da sua morte, recuemos ao percurso de uma vida. António Aurélio da Costa Ferreira nasceu na freguesia de Santa Luzia, concelho do Funchal, na ilha da Madeira, a 18 de janeiro de 1879. Filho de Francisco Joaquim da Costa Ferreira, oriundo da cidade do Porto, e de Teodolinda Augusta de Freitas Ferreira, natural de Machico, foi no Continente que concluiu a sua instrução primária, mais precisamente em Viana do Castelo, mas regressou à ilha natal para cumprir o curso liceal, no Funchal. O seu tio materno, João Joaquim de Freitas, reputado professor de Literatura e Língua Portuguesa no Liceu do Funchal e bibliotecário da Biblioteca Municipal desta cidade, teve uma importante influência no jovem Aurélio, sobretudo quanto ao gosto pela leitura e pela escrita (Veríssimo, 2004).
De volta ao Continente, matriculou-se na Universidade de Coimbra no curso de Filosofia, em 1894, que concluiu cinco anos depois. Logo em 1900 inscreveu-se em medicina naquela Universidade, tornando-se médico no ano de 1905. Já diplomado, estagiou na clínica de Farnier e na maternidade Lariboisière, ambas em Paris, e abraçou a atividade docente, a partir de 1907, no liceu do Largo de S. Domingos e no liceu Camões, ambos em Lisboa.
No tempo que passou em Coimbra absorveu os ideais republicanos, de que foi um militante convicto. Como escreveu Veríssimo (2004), “Não se pode, todavia, compreender a actuação de Costa Ferreira enquanto cidadão, sem associar a sua formação maçónica à condição de republicano fervoroso” . Como tantos outros intelectuais republicanos do seu tempo, Costa Ferreira foi iniciado na Maçonaria . Sabe-se pouco da qualidade de maçon, pois desconhece-se em que ano ou loja foi iniciado. Há a informação de que desempenhou o cargo de Venerável da loja Solidariedade, de Lisboa (Marques, 1986, t. I, cols. 570-571).
Integrou o quadro de docentes interinos que passou pela Escola Normal Primária (ENP) para o sexo feminino, de Lisboa, então situada no Recolhimento do Santíssimo Sacramento e Assunção. Nos primeiros meses de 1915, juntamente com Álvaro Viana de Lemos , também este seu colega na ENP, “introduziu alguns dos dispositivos característicos da Educação Nova” (Mogarro, 2018, p. 66).
No período em que passou pela ENP foi também docente na Faculdade de Medicina de Lisboa, onde foi assistente voluntário de Anatomia, em 1917, e segundo assistente, entre 1919 e 1921. Nesse ano foi nomeado professor livre de Anatomia Antropológica, após ter obtido nota máxima no concurso de admissão (Ferreira, 2003).
A intervenção pública de Costa Ferreira foi intensa, tendo sido dividida entre a política e a divulgação científico-pedagógica . No âmbito político, foi vereador da Câmara Municipal de Lisboa, entre 1908 e 1911, e foi eleito deputado pelo Partido Republicano nas eleições de agosto de 1910, pelo círculo de Setúbal, e membro da Assembleia Constituinte, em 1911, pelo círculo do Funchal.
O seu nome constou da extensa galeria de ministros que compuseram os muitos governos do período da I República (1910-1926). A 16 de junho de 1912, integrou o 3.º Governo Constitucional, presidido por Duarte Leite, em que foi ministro do Fomento, até 9 de janeiro de 1913. Ainda que o seu protagonismo ministerial tenha sido apenas de sete meses, Moreirinhas Pinheiro salientou a preocupação de Costa Ferreira para com a educação e o ensino, materializada num conjunto de leis que cobriram os edifícios escolares, a participação de delegações governamentais em congressos internacionais dedicados ao ensino, reorganização do ensino comercial e profissional, estudo de intervenções em monumentos nacionais, funcionamento de cursos, visitas de estudo escolares ou regulamentos de escolas (Pinheiro, 2001).
A sua vida pautou-se pelo serviço da causa pública, particularmente intensa nos primeiros tempos do regime republicano: foi presidente do Tribunal dos Árbitros Avindores; diretor da Casa Pia de Lisboa (nomeado em março de 1911); Provedor da Assistência Pública; e vogal do Conselho Superior de Instrução Pública. Participou na Primeira Grande Guerra com a patente de oficial miliciano, tendo sido responsável pela organização de um serviço de assistência aos mutilados de guerra portugueses. Distinguiu-se como naturalista no Museu Bocage e foi um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia , em 1918 (Ferreira, 2003).
Costa Ferreira colocou o Instituto Médico-Pedagógico, que a Casa Pia, que dirigia, possuía em Santa Isabel, a funcionar desde 1915, à disposição de Norton de Matos , então ministro da Guerra, para acomodar os soldados feridos e estropiados da Primeira Grande Guerra. Transformou-o no Instituto de Mutilados da Guerra, que funcionou entre 1917 e 1919 ,
concebendo o seu funcionamento como o de uma escola-hospital, na qual os mutilados e estropiados da guerra encontrariam o lugar privilegiado para finalizarem a cura das suas maleitas e iniciarem, o mais breve possível, a adaptação à sua nova condição física. (Castro, 2009, p. 274)
Conhecedor, in loco, da difícil vida dos soldados portugueses naquele conflito, sobretudo dos que regressavam ao País com ferimentos que os impediam de retomar a normalidade desejada, Costa Ferreira, o militar, mas também o médico, “foi o primeiro a mostrar alguma preocupação com os mutilados portugueses. [...] apercebeu-se da urgência e da importância de fazer algo em seu favor para evitar que estes andassem a deambular e a mendigar nas ruas” (Ribeiro & Silva, 2018, p. 4). Ao tratamento clínico seguia-se a imperiosa reeducação física, muitas vezes suportada por próteses, com o objetivo de voltar a tornar o mutilado um cidadão capaz de se integrar na socialmente, mas sobretudo profissionalmente.
Em 1922 cometeu suicídio, como se viu, em Lourenço Marques, no decurso de uma missão que fazia o estudo antropológico da colónia moçambicana. Na segunda metade do século XIX e até ao final da primeira década do século XX, a antropologia física, a etnologia e a arqueologia estavam associadas “a um discurso nacionalista, ao ideário da construção da nacionalidade e à objectivação do ‘povo português’, da sua essência e genealogia étnica, dos seus costumes e tradições populares, no passado e no presente, circunscrita a exploração ao território metropolitano” (Roque, 2006, p. 797).
Deixou uma vasta obra, resultado de uma profícua investigação nos campos das ciências médicas e da pedagogia . Nas palavras de Ferreira (2003, p. 538), “foi, sem dúvida, uma das grandes referências da pedagogia portuguesa do princípio do século, trazendo uma preocupação "científica" e "social" para o campo da educação”. O seu nome consta de inúmeras sociedades científicas nacionais e internacionais, como fundador, sócio ou dirigente, de que damos alguns exemplos: sócio fundador da Academia de Ciências de Portugal; membro da Sociedade Alfred Binet, de Paris; membro da Sociedade para o avanço das Ciências (Itália); sócio titular do Instituto Geral Psicológico de Paris e do Real Instituto da Grã-Bretanha e Irlanda. Dirigiu diversas publicações da especialidade, entre elas: o Anuário da Casa Pia de Lisboa (de 1912-13 a 1920-21), as publicações do Instituto Médico-Pedagógico da Casa Pia de Lisboa (1918-19), o Boletim do Instituto Médico-Pedagógico da Casa Pia de Lisboa (1920-21) e a revista Esculápio (1913-14) (Ferreira, 2003).
Costa Ferreira na Escola Normal Primária de Lisboa
A sua atividade docente foi repartida por várias instituições de ensino. E foi importante para quem investigava e levava os resultados do seu trabalho académico para dentro da sala de aula, para junto dos estudantes futuros professores .
A notícia da sua morte foi, igualmente, sentida na Escola Normal Primária de Lisboa (ENPL). Em sede de Senado, Frederico Ferreira de Simas (1879-1945) , seu colega nesta instituição, associou-se ao momento de pesar que ecoou a partir de São Bento. Deu nota de que “O Dr. Aurélio, como lhe chamavam os seus discípulos, tinha em cada um dos seus colegas naquela Escola, em cada um dos seus discípulos um admirador sincero e um amigo devotado” .
O súbito desaparecimento não podia deixar de ser comentado pelos seus pares docentes na ENPL. O Conselho Escolar, dirigido pelo diretor Luís Passos, no dia 18 de julho de 1922, reuniu a título extraordinário logo que tomou conhecimento da notícia. Num ambiente de consternação se escreveu que
pela sua alta competência, pelo seu admirável caracter, pelo seu bondoso coração, pelo seu acrisolado amor à sciencia e ao ensino, era um educador exemplar e contava em todos os seus colegas sinceros admiradores e amigos. Numerosos e relevantes serviços deve esta Escola ao seu falecido e devotado amigo, que deve ser apontado como um alto exemplo às gerações vindouras.
Perante o inevitável, aquele Conselho resolveu comunicar, em nome da instituição, à viúva e filhos a solidariedade pela perda do marido e pai, um estimado companheiro de trabalho. Decidiu-se também fazer chegar ao ministro da Instrução Pública o voto de pesar da Escola, cuja mensagem devia incluir um pedido de assistência moral e económica à família, pois o rendimento de Costa Ferreira era o único que sustentava a mulher e os filhos de ambos.
Feitas estas diligências, consideradas imperativas no imediato, a instituição avançou o desejo de inaugurar no gabinete de psicologia, local onde o falecido professor trabalhava, um retrato e uma placa comemorativa do valor científico e pedagógico do seu trajeto como docente, ganhando esse gabinete o seu nome . Em jeito de homenagem, o mesmo conselho ia solicitar ao ministério da Instrução Pública que a Escola Primária anexa passasse a ter a designação de Escola Dr. Aurélio da Costa Ferreira.
Uma pequena biografia ia ser editada com o intuito de ser distribuída no início do próximo ano letivo em todas as escolas normais e primárias, bem como a todos os alunos. Considerava-se que, desta forma, se homenageava condignamente a figura de Costa Ferreira. Naturalmente que o seu desaparecimento súbito não podia interromper o normal funcionamento das atividades letivas previstas. Apesar disso, o Conselho Escolar ia
honrar a memória do ilustre extinto, que era um trabalhador infatigável, prosseguindo imediatamente as provas de exame finais não se realizando na ocasião qualquer outra homenagem para não aumentar a manifesta e forte excitação nervosa que a infausta notícia produziu tanto nos professores como nos alunos.
Costa Ferreira foi um dos professores que transitou da Escola Normal Primária de Lisboa, para o sexo feminino, no Calvário, para o novo edifício de Benfica. Em 1915, aí regia a disciplina de pedologia, na qual se estudava o desenvolvimento infantil , fruto dos avanços científicos e pedagógicos.
A Reforma do Ensino Infantil, Primário e Normal, de março de 1911, veio validar, entre outras dimensões, a importância do ensino infantil como uma antecâmara de preparação para o ciclo seguinte. Nas palavras de Henriques (2013, p. 1153), a reforma “refletia a influência da escola Nova ou Educação Nova como se verifica, por exemplo, com o apoio dado à coeducação e com a criação oficial do ensino infantil para os dois sexos, aberto a crianças dos 4 aos 7 anos”. O governo ambicionava uma instrução primária que fosse além das operações básicas - saber ler, escrever e contar - apostando para tal num ensino “graduado, concêntrico e metódico, mantendo, numa harmonia constante, o desenvolvimento orgânico e fisiológico, e o desenvolvimento intelectual e moral” .
O espírito republicano positivista, aliado ao papel de médicos no desenvolvimento de modernas condições de higiene, também na escola, concentrou a atenção numa “abordagem pedagógica que se pretende fundada na fisiologia e na busca da medida adequada ao desenvolvimento da criança” (Ferreira, 2014, p. 303.).
Foram poucas as vezes que Costa Ferreira esteve presente nas reuniões do Conselho Escolar por compromissos profissionais fora da ENPL, mas também por motivos de saúde. Aliás, é hoje pouco conhecida a continuidade da atividade docente aí desenvolvida, isto porque, neste período temporal, acumulou funções similares da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a direção da Casa Pia, para além de ter participado na I Grande Guerra e de, no regresso a Portugal, se ter envolvido diretamente na criação e funcionamento do Instituto de Mutilados da Guerra, como vimos.
Na sessão de 3 de fevereiro de 1916 do Conselho Escolar usou da palavra para declarar que era a primeira vez que tinha a honra de participar nele. A ausência forçada devia-se ao débil estado de saúde, mas não deixou de agradecer aos seus pares a proposta feita pelos conselheiros de lhe entregar a cadeira de pedologia e de se dar importância ao seu ensino na formação de futuros professores: “[...] está crente de que só pela educação se melhorará o país, devendo para isso os seus agentes votar-se dedicadamente ao desempenho da sua nobre missão.” .
O seu nome integrou a lista de professores contratados provisoriamente para lecionar na nova ENPL . Chegou para lecionar a disciplina de psicologia experimental, em 1918, ano em que se empossaram os nomes que faziam parte do arranque da nova instituição educativa .
Sobre a disciplina de psicologia experimental, escreveu que ensiná-la era
fundamentalmente ensinar o que for preciso para habilitar os futuros professores a conhecer e praticar os meios científicos de estudar praticamente os fenómenos mentais, isto é, possuir regras e os meios de condicionar esses fenómenos, por forma a que outros os possam observar nas mesmas condições, e verificá-los.
O Conselho Pedagógico, nos anos de 1922 e 1923, reuniu para apreciar os pedidos de passagem a professor efetivo dos docentes contratados em 1918. No caso de Costa Ferreira, sua passagem à efetividade não chegou a acontecer, isto porque a apreciação do seu relatório e sumários das lições de Psicologia e Pedologia foi feita depois do seu falecimento. O parecer, já sem justificação, tinha como autor o professor António Leitão, diretor da Escola Normal Primária de Coimbra, e ficou resumido a estas considerações:
[…] foi um notável homem de sciência e um pedagogo distintíssimo, declarando ao menos que os trabalhos do Prof. Costa Ferreira, pela clareza da exposição, em que são apresentados, pela lógica dedução dos seus preceitos, pelo caracter essencialmente experimental da sua doutrina, ficam bem ao lado de tantos outros com que o saudoso Professor enriqueceu a bibliografia nacional. Este parecer é unanimemente aprovado.
De acordo com Moreirinhas Pinheiro, “os anos em que Costa Ferreira exerceu funções docentes em Benfica, correspondem à época áurea da Escola Normal Primária de Lisboa” (Pinheiro, 1990, p. 81). A sua profícua produção científica, por certo, contribuiu para dar visibilidade à Instituição, mas também é importante dar nota da avaliação que foi feita pelos seus pares do desempenho pedagógico realizado ao serviço da educação e da formação de professores.
Em 1938, o jornal República publicou um artigo assinado por Alberto Pimentel Filho, intitulado A «Sorbonne» de Benfica - os mestres. Este texto foi apontado como uma defesa da Escola do Magistério Primário contra os detratores do corpo docente . Se olharmos para o ano da publicação deste texto, 1938, podemos situá-lo num contexto particularmente sensível da formação de professores . Segundo Pinheiro (2002, p. 35), “o objectivo era recordar a obra construída pelos professores naquela instituição que desde 1936 conhecera a suspensão das matrículas no 1.º ano das Escolas do Magistério”.
No seu entender, o aparecimento da nova Escola em Benfica trouxe uma oposição por parte dos defensores de uma superioridade intelectual e formativa das universidades sobre as escolas normais. Foi por isso que a Escola de Lisboa seria apelidada, pelos seus opositores, de Sorbonne de Benfica. Alberto Pimentel Filho não via nesta designação um prejuízo para o trabalho desenvolvido, tendo em conta a qualidade posta pelo corpo doente ao serviço da Educação.
Pimentel Filho fez uma espécie de registo bibliográfico dos professores de Lisboa, no sentido de não fazer esquecer o seu trajeto académico e pedagógico. A menção a Costa Ferreira é telegráfica, isto porque trabalhou na ENPL por pouco tempo. Ainda assim, sobre ele e Sebastião Cabral da Costa Sacadura referiu que “trouxeram para a nova Escola uma bagagem científica constituída por algumas monografias sobre vários e instantes problemas de Pedologia e de Higiene Escolar” (Pimentel Filho, 1938, p. XX).
Foi reconhecido por ser um grande entusiasta da experimentação, que levava a cabo no trabalho desenvolvido nas disciplinas que lecionava. O arquivo histórico da Escola Superior de Educação de Lisboa guarda no seu espólio documental um livro intitulado Escola Normal Primária de Lisboa - Registo Antropométrico n.º 1, referente ao ano letivo de 1922-1923 . O termo de abertura, escrito por Alberto Pimentel Filho, na qualidade de professor de pedologia e higiene, é um bom exemplo da ligação feita por Costa Ferreira entre a investigação e a atividade docente. Na abertura se escreve que o livro de registo antropométrico dos estudantes foi “organizado principalmente com o fim de verificar os defeitos do regime escolar sobre o desenvolvimento e a conservação da saúde dos que a frequentam” . A fórmula para o cálculo do coeficiente de robustez tinha sido proposta pelo falecido Costa Ferreira e já ensaiada em crianças da Casa Pia de Lisboa, ainda que, por ter falecido, não tivesse tido “tempo de formular um juízo seguro” .
A herança de Costa Ferreira na formação de professores em Lisboa
Ao seu desaparecimento físico não correspondeu um apagamento da profícua obra que realizou em vida e o seu nome e legado ficariam ligados quer à ENPL quer à instituição que lhe sucedeu cronologicamente, a Escola do Magistério Primário de Lisboa.
Durante o período em que foi diretor da Casa Pia de Lisboa, Costa Ferreira criou dois serviços dependentes da casa-mãe. Em 1913, surgiu a Colónia Agrícola de S. Bernardino, sediada na Atouguia da Baleia, que começou a ser frequentada por 35 alunos e que era dividida em duas turmas: os designados de turbulentos ou inconstantes e os apáticos ou asténicos. Nesta colónia, os mais novos podiam trabalhar no campo ou em oficinas de carpintaria ou de serralharia durante o dia e frequentar as aulas no período noturno, apesar de existirem aulas diurnas para crianças mais debilitadas. A formação recebida permitia aos alunos serem posteriormente colocados a trabalhar em quintas de lavradores e em oficinas várias.
O segundo serviço surgiu em 1915 e com a designação de Instituto de Santa Isabel, um serviço médico-pedagógico para as crianças “anormais” que viria, como se viu a acolher mutilados da Primeira Grande Guerra. Aquando da sua criação, foi ocupar um edifício que já tinha servido ao Colégio Luso-Brasileiro, ainda no século XIX, e, depois, de casa ao Asilo Municipal de Lisboa, que passou para a Casa Pia, servindo-lhe de colégio externo, tendo ficado conhecido por Anexo de Santa Isabel, por se situar na freguesia de Lisboa com o mesmo nome.
Aurélio tinha a seu cargo a observação clínica e psicológica das crianças, ao passo que as classes especiais eram dirigidas por Fernando Palyart Pinto Ferreira, com a colaboração do professor de ortofonia, José da Cruz Filipe , ambos professores da Escola Normal Primária de Lisboa.
Em 1929, este instituto médico-pedagógico da Casa Pia de Lisboa recebeu a denominação de Instituto António Aurélio da Costa Ferreira (IAACF), em sua homenagem. Nesse ano, o IAACF foi anexado à ENPL. Dedicou-se ao internamento, tratamento e reeducação de crianças portadoras de deficiências (mental, visual, motora e auditiva) (DSDA, 2014) e, até 1935 , promoveu várias formações especializadas: curso de aperfeiçoamento para professores primários; curso de psicologia experimental; curso normal pedagógico para surdos-mudos, uma formação de professores especializados para classes especiais da Casa Pia de Lisboa (Sousa, 2002).
Durante a década de 30 houve um curso de aperfeiçoamento para professores de “anormais”, cujas lições foram publicadas na revista A Criança Anormal. Como referiu Sousa (2002, p. 28), “estas experiências não têm continuidade e só iremos encontrar cursos de formação de professores e outros técnicos a partir de 1941/1942 no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira sob a direção do Professor Vítor Fontes”.
Em 1941 foi criado, por decreto, o curso de preparação de professores e outros agentes de ensino de anormais. Com a duração de um ano letivo, podiam candidatar-se aqueles que tivessem obtido uma classificação não inferior a 16 valores no curso do Magistério Superior, e não podiam ter mais de 35 anos de idade. Existiam apenas duas cadeiras: Psicologia dos Anormais e Pedagogia dos Anormais. De acordo com Sousa (2002, pp. 63-64), pretendia-se “[...] especializar professores em psicologia e pedagogia, pois a preparação inicial obtida pelos Cursos de Magistério Primário era considerada insuficiente. Estes professores destinavam-se a lecionar nas classes especiais e nas Escolas de Reeducação”.
Para além das aulas teóricas , incluía-se aulas práticas realizadas nas classes do Instituto sob a orientação de monitoras e professoras e o estágio previa o acompanhamento de um internado, observado no tempo de recreio e noutras atividades.
Em 1965 reformulou-se o curso de especialização existente no IAACF, que ganhou a designação de Curso de Especialização de Professores de Crianças Inadaptadas. O decreto-lei n.º 45832/64, de 25 de julho, apontava as motivações que estiveram na origem da reformulação, entre elas: o avanço científico das ciências da educação na recuperação das crianças física ou psiquicamente diminuídas e o desenvolvimento da ortopedagogia ou pedagogia curativa (Sousa, 2002). Em termos de acesso, alargou-se os critérios de admissão àqueles que possuíssem habilitação para o Magistério Primário (nota não inferior a 14 valores) e que tivessem pelo menos um ano de experiência docente, ou ainda àqueles que fossem professores do ensino secundário, por exemplo.
A estrutura curricular foi igualmente alargada, pois as duas cadeiras existentes no curso anterior - Psicologia dos Anormais e Pedagogia dos Anormais - foram desdobradas em cinco: Psicologia da Criança e do Adolescente Inadaptado (dividida em dois semestres: Técnica Psicológica e Psicologia da Criança e do Adolescente Inadaptados); Educação Sensorial e Rítmica; Metodologia e Didática do Ensino Especial; e, Educação e Reeducação da Linguagem.
Este foi o modelo de formação que perdurou no Instituto até ao ano letivo de 1974/1975, ano em que o IAACF encerrou para reestruturação. Com o aparecimento do ensino superior politécnico , em 1973, os cursos de especialização de professores passaram para as Escolas Superiores de Educação (ESE). Em 1985, um grupo de trabalho coordenado por Inês Sim-Sim preparou a transição do IAACF para as ESE . O mesmo inventariou todos os cursos de especialização em educação especial existentes em Portugal, bem como identificou os professores e educadores que os frequentaram. Nas conclusões publicadas no relatório produzido se escreveu que era manifestamente insuficiente a formação ministrada. Como tal, os formadores do IAACF passaram a trabalhar numa lógica de dar continuidade ao que o Instituto fazia, de modo a ingressarem na ESE de Lisboa. Nas palavras de Sousa (2002, p. 124), “[...] a Escola Superior de Educação de Lisboa é a herdeira da qualidade do trabalho pedagógico realizado no IAACF.”
Notas finais
Um dos ex-libris de Costa Ferreira continha uma frase de Lamartine : Servons l'humanité, le siècle, la patrie / Vivre en tout c'est vivre cent fois. Palavras que não deixam de ser irónicas, escolhidas por alguém que deu o melhor de si à sociedade, sobretudo aos menos protegidos, as crianças, mas que interrompeu a vida sem cumprir o mote que apunha nos seus livros. Valorizou mais, em si, o trabalho e menos o homem que era. Esta ideia parece estar explícita num outro ex-libris, este com palavras de La Fontaine, retiradas da fábula “os dois ratos, a raposa e o ovo”: Sur différentes fleurs l'abeille s'y repose / Et fait du miel de toute chose .
Ainda assim, o seu trabalho de abelha frutificou na formação de professores em educação especial na Escola Superior de Educação de Lisboa, que mantém esse curso de especialização (mestrado não profissionalizante) desde o ano letivo de 1986/1987, antes mesmo da obrigatoriedade de os cursos de formação inicial de professores incluírem a preparação para trabalhar com crianças com necessidades educativas especiais (n.º 2 do art. 15.º do DL 344/89).
Terminamos com palavras suas, da lição de abertura do curso de psicologia experimental da Escola Normal Primária de Lisboa, no segundo semestre do ano letivo de 1919-1920. São o perfeito compromisso entre o cientista e o professor ou entre o olhar técnico e a necessidade de se aplicar o conhecimento em sala de aula:
A arte de educar é fundamentalmente a arte de regular a conduta presente e futura dos que se têm de educar. Implica forçosamente o conhecimento da conduta, das causas dela, do seu mecanismo e das possibilidades que o individuo oferece. A arte de educar assenta como a arte de curar, na anatomia e na fisiologia e assim como o médico que tenha de exercer a profissão, tem não só de conhecer as doenças e os remédios, mas também conhecer os doentes e encontrar as indicações, assim também o educador, que tenha de educar, tem não só de conhecer os fins da educação e encontrar a forma de educação que mais lhe convenha e se adapte ao seu feitio.