Enquadramento teórico
Modelos e Aprendizagem Social
A aprendizagem é uma capacidade biológica selecionada evolutivamente e altamente desenvolvida nos humanos. Vários animais apresentam a capacidade de aprender socialmente por observação e imitação (uma passagem de conhecimento). Os humanos repetem e imitam precocemente, com dois meses um bebé imita as expressões faciais do adulto (revisão em Fuertes, 2023). Contudo, a aprendizagem por imitação tem sobretudo valor pela apropriação individual, constituindo-se mais do que a cópia do que é observado (revisão em IIIeris, 2018). Nos humanos, aquele que observa e reproduz, relaciona com o seu conhecimento anterior produzindo não uma cópia do que vê, mas uma nova versão, expandindo não só o seu conhecimento e técnicas, mas granjeando competências e sofisticando representações internas (modelos).
A teoria da aprendizagem social, desenvolvida por Bandura (1977) postula que os indivíduos aprendem comportamentos, atitudes e normas sociais imitando os outros desde a infância. A modelagem de papéis facilita a aquisição de comportamentos morais, sociais e relacionais, e competências cognitivas evidentes na capacidade de antecipar os comportamentos sociais de terceiros.
O processo de aprendizagem social começa quando os indivíduos focam a sua atenção no comportamento dos outros. A investigação levada a cabo por Brown e Treviño (2014) indica que ter tido modelos éticos durante a infância pode influenciar o desenvolvimento da liderança ética na idade adulta. No nosso estudo pretendemos perceber se a criança de 2-3 anos, ao observar e imitar o comportamento do seu parceiro interativo, se dele se apropria e o transmite posteriormente. Será que a melhor maneira de ensinar empatia, tolerância, respeito e compaixão às crianças é tratando-as com empatia, tolerância, respeito e compaixão?
Papel dos Pares na Aprendizagem Social
O contacto com ambientes exteriores à família, envolvendo interações de grupo, acontece precocemente. Nos contextos educativos o contacto com os pares inicia-se cedo, surgindo estes como “agentes socializadores e, nesse sentido, os primeiros níveis de educação de infância constituem os principais contextos onde as crianças interagem com os seus pares, aprendendo a estabelecer relações com os mesmos e desenvolver competências sociais” (Arezes, 2013, p.27). Os pares incentivam a exploração do ambiente físico e social e contribuem para o desenvolvimento cognitivo da criança (Hay et al., 2004). Para Katz (2006) quanto mais novas são as crianças, mais aprendem em interação, onde desempenham um papel ativo.
Com efeito, as crianças em idade de creche procuram ativamente os seus pares, observam, interpelam, brincam lado a lado e imitam (Hohmann & Weikart, 2003). Warneken e Tomasello (2007), descrevem estas aquisições como resultantes de um processo de feedback desenvolvimental, isto é, a criança apresenta capacidades cognitivas e comportamentais sociais emergentes que lhe permitem aprender socialmente com os outros, estas experiências permitem expandir essas capacidades e sofisticá-las em competências sociais, comunicativas e interativas. Vivo no mundo dos outros, com os outros, enquanto construo o meu mundo e ajudo a construir o mundo dos outros!
A Investigação Tandem: estudo do papel da idade, dos parceiros interativos e dos processos interativos
O presente estudo insere-se na linha de investigação Tandem, na qual adultos e crianças são desafiados a criar algo à sua escolha a partir de materiais e ferramentas. A situação Tandem tem permitido observar o comportamento e a comunicação verbal do adulto (pais, mães, educadoras, educadores) e da criança, as dinâmicas interativas entre o adulto e a criança, bem como a participação e criação da criança. Na investigação Tandem anterior (Barroso et al., 2017, Ferreira et al., 2016, Farinha et al., 2018) a idade das crianças surgiu como um fator a ter em conta relativamente ao comportamento interativo. Com crianças mais novas, os adultos tenderam a adotar comportamentos de maior aceitação, estímulo e feedback positivo. Na verdade, quanto mais nova é a criança, mais estes estímulos contribuem para o seu auto-controlo e auto-imagem (Bowlby, 1969). Com crianças mais novas os adultos também tematizaram mais a relação ou aspetos pessoais (experiências, atributos, sentimentos) ou adotaram os mesmos, quando estes partiram da criança (Farinha & Fuertes, 2018). Por outro lado, os adultos deram mais sugestões às crianças mais velhas, enquanto as mais novas foram mais dirigidas pelo adulto (Roque, 2017). Com efeito, no estudo de Barroso et al. (2017), foram dadas mais ordens/pedidos, elogios, críticas e sugestões dos adultos às crianças mais velhas, parecendo que os adultos veem a criança como mais capaz e, portanto, lhe conferem mais autonomia na execução da tarefa. Os autores corroboram que “as crianças mais novas são mais estimuladas a enquadrarem a sua ação, tendo o adulto como suporte, tanto no “como fazer” como na reflexão sobre a ação e no resultado da mesma” (Barroso et al., 2013, p.58).
Ora, importa continuar a compreender o papel da criança com menos de 3 anos e do adulto nas interações e nos processos de aprendizagem. Vygotsky (1997) propõe que o adulto deve apoiar as aprendizagens da criança na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Assim, o Educador deve facilitar a aquisição de competências ao criar ambientes estimulantes de aprendizagem e a partir de pistas de comunicação entre as crianças - com reformulações, perguntas, sugestões e outras formas de comunicação que estimulem a sua participação, criatividade e agência no mundo.
A investigação Tandem (Barroso et al., 2017, Ferreira et al., 2016, Farinha et al., 2018) tem revelado que as crianças estão expostas a diferentes modelos e influências nos seus vários contextos de vida e com os seus vários interlocutores. Cada um desses contextos tem uma cultura própria, onde várias pessoas desempenham diferentes papéis na vida das crianças, contribuindo para o seu desenvolvimento, reportando-nos para um quadro sistémico e bioecológico das interações da criança. Os estudos Tandem anteriores (revisão em Veiga et al., 2019) ocorreram nos contextos de vida das crianças, nomeadamente nos jardins-de-infância, com crianças a partir dos 3 anos.
A nossa investigação decorreu, igualmente, num dos contextos de vida das crianças, neste caso, na creche. No nosso estudo pretendemos explorar os comportamentos comunicativos e interativos de crianças mais pequenas, de 2 a 3 anos, questionando-nos acerca do papel do adulto na promoção da agência das crianças em idade de creche. Importa conhecer a criança cidadã e o seu papel social tão precocemente quanto possível.
Que lugar para a criança dos 0 aos 3 anos?
Em Portugal, os cuidados não parentais às crianças iniciam-se desde os 4 meses de vida e a creche é a valência mais utilizada pelas famílias com crianças dos 0 aos 3 anos (Lopes et al., 2021), tendo “um papel determinante na resposta a novos desafios e proporcionando um espaço de desenvolvimento e aprendizagem integral complementar à ação da família” (MSSS, 2011 citado em Lopes et al., 2021). O contexto da creche, no nosso país, tem ganhado importância pela necessidade de resposta às necessidades das famílias, assumindo-se como um microssistema de elevado impacto na vida da criança. No entanto, em Portugal, os cuidados e educação das crianças dos 0 aos 3 anos são regulados pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Já a designada “educação pré-escolar” (3-6 anos), é tutelada desde 1997 pelo Ministério da Educação.
Um longo caminho tem sido percorrido e, em 2024, o Ministério da Educação e o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social publicaram um documento orientador para o desenvolvimento da atividade pedagógica das crianças em Creche. As “Orientações Pedagógicas para a Creche” (Portugal et al., 2024) pretendem contribuir para o reforço da qualidade desta resposta social, enfatizando a Creche como uma valência de oferta de oportunidades de desenvolvimento. Além disso, este conjunto de fundamentos e princípios educativos para a Creche reflete um crescente investimento em políticas e práticas educativas que priorizam o estímulo emocional e cognitivo das crianças nos primeiros anos de vida. Reconhece-se neste referencial pedagógico (Portugal et al., 2024)
a natureza global da aprendizagem e desenvolvimento infantil, o valor do brincar, de aprendizagens ativas, de experiências significativas e de desafios, a importância do desenvolvimento da expressão e comunicação, o papel crucial das outras crianças e adultos no desenvolvimento de cada criança (p.6).
Estes pressupostos validam a ideia de que a Educação de Infância é fundamental neste período dos três primeiros anos de vida, onde ocorrem cruciais ganhos desenvolvimentais. Com efeito, nesta etapa emergem as competências físicas, emocionais, cognitivas e sociais e um desenvolvimento acentuado das diferentes formas de expressão (musical, plástica, linguística). A investigação realizada na área das neurociências indica-nos que “é principalmente durante os três primeiros anos de vida que o cérebro da criança desenvolve as suas conexões neuronais (sinaptogénese), aproveitando a flexibilidade e maleabilidade das estruturas iniciais” (revisão em Caeiro & Correia, 2021, p.14). Não obstante, este desenvolvimento neurológico resulta das interações com os outros, do envolvimento em experiências ativas, de exploração e descoberta.
Anteriormente, Jean Piaget (1923), introduziu um conceito revolucionário nas teorias de aprendizagem, apresentando as crianças como agentes ativos na sua aprendizagem, que interagem com o seu ambiente para o interpretar, assimilar e modificar. Esta interação recíproca ocorre, segundo Piaget, através de processos de desequilíbrio-assimilação-acomodação-equilíbrio (Palangana, 2015), organizados em estágios evolutivos, que irão desenvolver-se progressivamente conforme o amadurecimento e interação da criança com o seu ambiente. De acordo com a conceção piagetiana, a criança de 2 a 3 anos desenvolve competências simbólicas em várias dimensões: linguagem, jogo simbólico e imitação. Nesta fase, a criança começa a dispor dos primeiros esquemas de ação interiorizados, também designados por esquemas representativos, ou seja, começa a ter a capacidade de pensar sobre aquilo que não está presente, construindo imagens mentais de objetos e acontecimentos. Outra característica do período pré-operatório é a conduta egocêntrica ou autocentrada. A criança vê o mundo segundo a sua perspetiva, e não supõe que possa haver outros pontos de vista possíveis (Palangana, 2015).
Em suma, importa olhar para o período dos 0 aos 3 anos como uma “janela de oportunidade” para o desenvolvimento e a aprendizagem, encarando a criança como agente ativo no seu processo de desenvolvimento, numa Educação de Infância que deve ser pensada desde o nascimento e ao longo da vida, em contextos estimulantes e com pessoas confiáveis, desafiantes e estáveis ao longo do tempo.
Objetivos
Com base na revisão da literatura anterior, podemos concluir que a natureza e a qualidade das interações, com adultos e pares (agentes socializadores da criança) assumem um papel fulcral na pessoa em desenvolvimento. Neste sentido, é importante criar oportunidades para que a criança viva experiências significativas, desafiadoras e geradoras de aprendizagens, em ambientes seguros e estimulantes. A atividade Tandem promove oportunidades de colaboração e desafio mútuo entre um adulto e uma criança, permitindo ao adulto estar atento aos interesses e opiniões da criança, ao que esta diz e faz, “para incentivar interações positivas e recíprocas, bem como a participação da criança” (Fuertes et al., 2022, p.5). Entenda-se a participação da criança como o direito a ser reconhecida, capaz de colaborar ativamente no seu processo de desenvolvimento e aprendizagem (Portugal et. al, 2024). Neste âmbito, o nosso estudo pretende observar a participação de crianças de 2-3 anos na atividade Tandem, explorando as características do seu comportamento comunicativo e interativo, primeiro com um adulto, depois com outra criança, assim como observar as oportunidades e modelos dos adultos e sua consequência, pela transferência entre pares.
O objetivo geral desta investigação foi averiguar se os adultos em creche (Educadores/Auxiliares) são modelos sociais e pedagógicos para as crianças de 2 a 3 anos durante uma atividade lúdica de construção conjunta. Desta forma, apresentamos como objetivos específicos:
Identificar e descrever os modelos de participação, desafio pedagógico e envolvimento do adulto (Educador/Auxiliar de Educação) e da criança.
Verificar a forma como o estilo de comunicação do adulto influencia a comunicação e a participação da criança na interação, estudando o comportamento verbal do adulto e da criança.
Estudar a associação entre o comportamento verbal do adulto e o comportamento interativo da criança.
Observar se os modelos de participação, desafio pedagógico e envolvimento do adulto são adquiridos pelas crianças e transferidos a outras crianças na interação a pares.
Métodos
Participantes
A amostra foi composta por 20 crianças (entre os 2 e os 3 anos) e 10 Educadores/Auxiliares, distribuídos por 10 díades Educador/Auxiliar-criança e 10 díades criança-criança. O grupo das crianças era constituído por 11 meninos e 9 meninas sem problemas assinaláveis de desenvolvimento. Das 20 crianças, 8 tinham irmãos mais velhos, 1 tinha um irmão gémeo, 2 tinham um irmão mais novo e as restantes eram primogénitas.
O grupo dos adultos (educadoras e auxiliares) era, na sua totalidade, do sexo feminino, com idades compreendidas entre os 26 e os 58 anos e apresentando entre 6 e 30 anos de serviço (cf. Tabela 1). Todas as educadoras eram detentoras de um curso superior, e as auxiliares de educação do 12ºano de escolaridade ou de um curso técnico-profissional.
Todos os adultos participantes trabalhavam numa Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), na valência de creche.
Procedimentos
Os participantes foram convidados pela investigadora principal (primeira autora) para colaborar no estudo. Após serem explicados os objetivos e procedimentos, foi entregue um folheto explicativo acerca do estudo e respondidas as perguntas dos participantes. As educadoras, auxiliares e pais que concordaram em participar no estudo, preencheram e assinaram o consentimento informado. Foi também recolhido o assentimento das crianças através de decalque da mão. O levantamento dos dados demográficos foi realizado através de um questionário dirigido aos pais, às educadoras e às auxiliares.
Para observar o comportamento adulto-criança e criança-criança numa tarefa conjunta individualizada, cada díade (educadora/auxiliar-criança e criança-criança) foi filmada numa atividade livre de construção conjunta com os materiais disponíveis, seguindo o protocolo original do Estudo Tandem (Brandes et al., 2015). Durante 15 minutos, os participantes puderam fazer um produto à sua escolha. O tempo original da atividade Tandem é 20 minutos, mas a equipa considerou pertinente adaptar a duração à idade das crianças e ao facto de o estudo envolver interação entre as mesmas. Foi disponibilizada uma caixa com materiais (cf. Figura 1) revistos à priori pela equipa e adaptados à faixa etária das crianças. Também foi disponibilizado um cronómetro para que os participantes monitorizassem o tempo de duração da atividade. Foram utilizados sempre os mesmos materiais e nas mesmas quantidades, em todas as atividades de construção.
Numa primeira fase os participantes - um adulto e uma criança - foram filmados durante 15 minutos na situação Tandem. Numa segunda fase os participantes - criança participante na fase 1 e outra criança - foram filmados durante 15 minutos na situação Tandem (cf.Figura 2). As duas fases foram filmadas com um intervalo mínimo de 2 dias e máximo de 5 dias, e ocorreram no mesmo espaço físico e com os mesmos materiais.
Nota. Imagem inspirada em Azevedo (2023)
A gravação dos vídeos ocorreu em contexto de creche, nas salas de atividades ou espaços polivalentes (biblioteca) conhecidos das crianças. Em mais de metade das díades criança-criança (6 das 10 interações), o adulto esteve presente na sala, para garantir a segurança das crianças ou responder às suas solicitações, procurando não intervir. Nas díades em que o adulto esteve presente foram frequentes os pedidos de validação e ajuda feitos pelas crianças ao adulto.
Procedimentos éticos
Os participantes foram informados do seu direito de desistir em qualquer momento do estudo sem que esta decisão acarretasse qualquer prejuízo. Os vídeos recolhidos foram armazenados de forma segura, em bases de dados anónimas e após a conclusão do estudo foram destruídos, e o seu uso foi exclusivamente para efeitos científicos.
Análise e tratamento de dados
Cotação dos modelos participação, desafio e relacionais do adulto
As educadoras/auxiliares e as crianças-modelo (participantes nas duas fases) foram cotados com as tipologias Tandem (Fuertes, 2023, cf. Tabela 2) em termos de participação, desafio pedagógico e relação.
As observações realizadas com esta grelha foram analisadas por 4 cotadores e 1 mediador para obter o consenso. Cada cotador atribuiu individualmente uma tipologia em cada categoria após a visualização dos vídeos. Posteriormente, os cotadores apresentaram e justificaram a sua escolha em conferência de cotadores. A tipologia consensual foi discutida e acordada relativamente à perspetiva de todos os cotadores.
Descrição dos comportamentos comunicativos do adulto e da criança
Para a descrição dos comportamentos comunicativos do adulto e da criança- C1 foi utilizada uma grelha previamente definida (Ladeiras & Fuertes, 2018) que contempla 8 categorias verbais: perguntas de conteúdo, perguntas de processo, sugestões, dirige, ordens, ensino, elogios/estímulos e desaprovação/ comentários negativos (cf. Tabela 3).
Os dados foram recolhidos por frequência, sendo registado o comportamento, o tempo, a duração e transcrita a verbalização.
Análise do comportamento interativo, participativo e colaborativo da criança
Para análise do comportamento interativo, participativo e colaborativo da criança-C1 foi utilizada a escala de observação do comportamento da criança (Ladeiras & Fuertes, 2018). A cotação final foi obtida através da contagem do número total de vezes em que cada comportamento foi observado (cf. Tabela 4).
Análise dos Resultados
Este estudo inclui análises quantitativas e descrições comportamentais de natureza qualitativa. Os dados quantitativos foram analisados com recurso a estatística descritiva (frequência de comportamentos) e univariada (comparação de grupos e correlação de comportamentos) usando a versão 26 do programa SPSS. Na análise qualitativa, os discursos das interações foram recolhidos, transcritos e analisados por frequências.
Resultados
Estudo dos modelos de participação, desafio e relação dos adultos e sua transferência para pares
Nesta amostra não se verifica a transferência de modelos de participação e de desafio do adulto para a criança, embora se verifique em termos relacionais. Na categoria da participação, os adultos foram sobretudo colaborativos (cf. Tabela 5) ou orientados para a tarefa. Já as crianças, quando em interação com um par, tenderam a assumir um modelo diretivo autoritário, orientado para regras e autocentrado (4 em 10), ou um modelo distante ou sem intencionalidade (3 em 10), agindo em situação de jogo paralelo a maior parte do tempo.
A atividade pareceu ser mais exploratória dos materiais do que de construção (a criança brinca mais do que constrói). Nos casos em que as crianças assumiram um modelo de participação diretivo, verificou-se que as mesmas estabeleceram, com frequência, o papel da outra criança na atividade, tomando decisões acerca dos materiais que ambos iriam utilizar, definindo as tarefas e exigindo em alguns momentos a participação da outra criança.
Quanto ao desafio, os adultos adotaram maioritariamente um modelo desafiador ou instrutor (cf. Tabela 5). Colocaram questões que estimularam a reflexão e desafiaram a criança, nalguns casos com recurso à fantasia, acompanhando a atividade por meio de fantasias associativas e narrações ou adotando as mesmas, quando estas partiram da criança. As crianças, na interação com os pares, mostraram-se sobretudo pouco estimulantes, não existindo ainda oferta de oportunidades de aprendizagem para a outra criança na interação. Uma minoria (3 em 10) assumiu um modelo instrutor, demonstrando e informando sem uso de perguntas ou sugestões.
No entanto, é possível verificar alguma influência do modelo relacional transmitido pelo adulto. Com efeito, em 4 das 10 sequências ocorreu um clima caloroso/muito positivo nas duas fases (cf. Tabela 5).
Estudo dos comportamentos verbais dos adultos e das crianças
Relativamente ao comportamento verbal do adulto, é possível verificar que os adultos tenderam a utilizar sugestões, perguntas de processo, elogios e estímulos (cf. Tabela 6) durante a atividade conjunta.
Não se encontraram diferenças significativas relacionadas com o género da criança ou dos adultos. Em quase todas as díades criança-criança a comunicação verbal foi pouco estimulante, havendo uma produção verbal baixa na maioria das díades. As crianças dialogaram pouco umas com as outras. Contudo, a criança com o adulto comunicou de forma eficaz e com troca de turnos. Os resultados (cf.Tabela 7) indicam algumas correlações no comportamento comunicativo dos participantes. Os adultos mais velhos fizeram mais perguntas de processo, e os mais experientes profissionalmente deram mais direções à criança. Adicionalmente, as crianças que colaboraram com adultos mais velhos e mais experientes foram também as que fizeram menos perguntas de ensino, durante a díade com o par.
Verifica-se, ainda, que as crianças que fizeram mais perguntas de conteúdo na díade com a outra criança foram também as que deram mais sugestões, direções e ordens ao seu par (cf.Tabela 7).
Relação entre o comportamento verbal do adulto e o comportamento interativo da criança
Os resultados indicam que a criança persistiu mais na sua ideia quando o adulto fez mais perguntas de processo (cf. Tabela 8). Já quando o adulto deu mais direções à criança esta revelou mais sinais de desconforto ou insatisfação na interação. Adicionalmente, a criança realizou mais escolhas a pedido do adulto quando o adulto deu mais sugestões e fez mais perguntas de ensino (cf.Tabela 8).
Discussão de Resultados
O objetivo geral desta investigação foi averiguar se os adultos em creche (Educadores/Auxiliares) são modelos sociais e pedagógicos para as crianças de 2 a 3 anos durante uma atividade lúdica de construção conjunta.
Para o efeito, participaram 20 crianças, entre os 2 os 3 anos, e 10 educadoras/auxiliares, distribuídas por 10 díades adulto-criança e 10 díades criança-criança. Cada díade foi filmada durante 15 minutos numa atividade lúdica com materiais pré-definidos, seguindo o protocolo original do Estudo Tandem.
Modelos de participação, desafio pedagógico e envolvimento do adulto e da criança
Os nossos resultados indicam uma pequena tendência, nas crianças participantes nas 2 fases, durante a interação a pares, para apresentarem o modelo de participação Autoritário/Orientado para regras e autocentrado (4 em 10). Julgamos que esta questão possa estar ligada ao desenvolvimento cognitivo das crianças desta idade. Encontrando-se no início do período pré-operatório (Piaget, 1964), a visão ainda egocêntrica que a criança tem da realidade, impede a criação de espaço de participação para o seu par. Surgem, assim, comportamentos autocentrados e de autoridade em relação à outra criança, procurando impor as suas ideias, escolha de materiais e ações. Em 3 das 10 díades criança-criança o clima de participação foi distante, sem envolvimento nem intencionalidade em relação à outra criança. Nestas díades, a situação de jogo paralelo ganhou destaque: a criança brincou ao lado da outra criança, mas não com a outra criança. Não planearam, não traçaram objetivos comuns e não construíram em conjunto.
Três dos adultos participantes, todas auxiliares de educação, assumiram um modelo diretivo orientado para a tarefa. Pareceram estar mais preocupadas com a execução da tarefa e com a transmissão à criança de um modelo a seguir. A investigação Tandem de Barroso e colegas (2016), refere que
as crianças mais novas são mais estimuladas a enquadrarem a sua ação, tendo o adulto como suporte, tanto no «como fazer» como na reflexão sobre a ação e no resultado da mesma. (p.59)
Questionamo-nos se com crianças mais novas os profissionais de educação tendem a dirigir mais a atividade da criança, preocupados com a passagem de um modelo, mostrando-lhe os processos da atividade (como fazer).
Influência do estilo de comunicação do adulto na comunicação e participação da criança na interação
O nosso estudo sugere que a comunicação do adulto pode ser impulsionadora de uma interação eficaz, desenvolvida em colaboração. Efetivamente, na primeira fase do estudo a criança fez a sua atividade em parceria ou colaboração com o adulto, mas na fase 2 a maioria realizou-a em paralelo com a outra criança. As crianças (em díade) pareciam estar frequentemente à espera da validação e de indicações do adulto para atuarem. Parece que, aos 2 anos de idade, o modelo do adulto surge como “andaime” às oportunidades de “treino” da participação, da autonomia e do trabalho colaborativo, atuando na zona de desenvolvimento próximo (Vygotsky, 1997).
A idade dos adultos também parece afetar os resultados. Os adultos mais velhos foram os que fizeram mais perguntas de processo, e aqueles que têm mais anos de experiência profissional deram mais direções à criança. Contudo, no estudo de Ferreira et al. (2012), os resultados são distintos, na medida em que, a experiência profissional dos Educadores se correlacionou negativamente com os comportamentos verbais diretivos, ou seja, os Educadores com mais anos de experiência profissional dirigiram menos o comportamento da criança. Questionamo-nos se os adultos com mais experiência profissional sentem necessidade de dirigir mais a atividade com crianças mais novas e qual a razão. Reconhecerão, estes adultos, menos a competência e a “agência” da criança em idade de creche? Corroborando uma resposta afirmativa, o estudo de Roque (2017) indica que as crianças mais novas foram mais dirigidas pelo adulto, enquanto as mais velhas receberam mais sugestões.
Relativamente ao comportamento verbal da criança, os resultados indicam que as crianças que fizeram mais perguntas de conteúdo na díade com a outra criança foram também as que deram mais sugestões (“Vamos pintar, o Subaradan e o António?”; “Queres um livro?”); mais direções (“Para a Alice, para mim”; “Vou desenhar”); e mais ordens (“Não!”; “Pára!”, “Vai buscar o azul”) ao seu par. Consideramos a hipótese de estas crianças serem mais competentes do ponto de vista linguístico e cognitivo, verbalizando mais durante a atividade.
Associação entre o comportamento verbal do adulto e o comportamento interativo da criança
Analisando a qualidade comunicativa e interativa da criança na díade com o adulto e na díade com a outra criança, verifica-se uma diminuição significativa da produção verbal na díade com o par. O modelo de aprendizagem socialmente mediada desenvolvido por Vygotsky (1978)
considera que as competências da criança se desenvolvem em cooperação com adultos e pares mais competentes, antes de serem interiorizadas e de passarem, assim, a fazer parte do mundo psicológico da criança. (Pinto, 2006, p.55)
Esta questão remete-nos para a ideia, já referida no enquadramento teórico desta pesquisa, de o adulto funcionar como “andaime” para a criança atingir o seu nível de desenvolvimento potencial. A comunicação com o adulto na zona de desenvolvimento próximo da criança (Vygotsky, 1978), e a qualidade e quantidade de linguagem é fundamental na sua aquisição (Hart & Risley, 1995). A utilização da língua em contexto traduz-se na força e na motivação da criança para aprender o vocabulário, a gramática e a pragmática (Tomasello, 2003). O estudo de Barroso et al. (2016) também reflete sobre o papel fundamental do adulto no desenvolvimento da linguagem das crianças mais novas:
A comunicação verbal dos adultos permite o acesso da criança à língua, explicando-lhe o mundo, medeia a aprendizagem de conceitos e conteúdos, oferece um contexto afetivo (no tom e forma como é produzida), contribui para a sua auto-estima e auto-imagem (se for elogiosa, construtiva e positiva), estipula regras e mergulha a criança na sua cultura e códigos sociais (p.46).
Quando o adulto colocou mais perguntas processuais (e.g., “O que é que queres pôr para fazer a boca?”; “E como é que fazemos umas escadas?”; “O que é que precisamos para fazer o boneco?”) a criança pareceu ganhar confiança no processo da tarefa, persistindo mais nas suas ideias. As perguntas de processo pareceram motivar a criança para o envolvimento na tarefa, procurando compreender os processos.
As crianças revelaram mais sinais de insatisfação/desconforto na interação quando os adultos foram mais diretivos e fizeram mais perguntas de ensino. Podemos interpretar esta ação mais diretiva do adulto na execução da tarefa, como uma tentativa de se apresentar como modelo à criança em futuras atividades. No estudo de Barroso et al. (2016), referindo-se às mães:
este comportamento poderá estar na origem da desmotivação da criança, já que nem sempre encontrou espaço e tempo para poder seguir a sua vontade. Não obstante, esta é uma forma de transmissão de conhecimento secular entre pais e filhos (p.57).
Possivelmente, é, também uma forma de transmissão, tendencialmente adotada pelos profissionais com crianças mais novas. Através das perguntas de ensino
o adulto elabora acerca quer da atividade, quer do comportamento da criança: explicando, justificando, dando razões para eventos ou entidades (Clérigo et al., 2021, p.131).
De acordo com os autores anteriores, o educador assume um papel de mediador da ação e de coconstrutor da ação com a criança.
As crianças fizeram mais escolhas a pedido do adulto quando estes deram mais sugestões e fizeram mais perguntas de ensino. De acordo com Clérigo e colegas (2021), as sugestões contemplam
os enunciados em que o adulto se dirige à criança enunciando uma proposta, ou apresentando alternativas quer favorecendo a ação, quer a reflexão da criança (p.136).
Ao apresentar sugestões, o adulto está a dar à criança possibilidades sobre as quais ela terá de pensar e de tomar de decisões. Ao sugerir, o adulto está a respeitar o espaço de ação e de decisão da criança e a reconhecer o que esta sabe, podendo as sugestões ser consideradas como “suporte para a ação” (scaffolding, conceito já referido anteriormente nesta pesquisa) e para a participação da criança na atividade, permitindo-lhe decidir, “mas decidir sobre o que o adulto emitiu” (Clérigo et al., p.140). As sugestões podem, ainda, ser entendidas como uma “estratégia de colaboração” na zona de desenvolvimento próximo da criança (Vygotky, 1984).
Transferência dos modelos de participação, desafio e envolvimento do adulto na interação a pares
Os resultados da nossa investigação parecem indicar que os modelos de participação e desafio do adulto não foram transferidos a grande parte das crianças em estudo. Colocamos duas hipóteses: i) talvez o modelo dos pais ainda seja mais impactante do que os modelos dos profissionais de educação nesta faixa etária; ou ii) a criança, nesta faixa etária, age de forma autocentrada (evidente no jogo paralelo) e intelectualmente “egocêntrica” no sentido Piagetiano (i.e., não consegue integrar o ponto de vista do outro, dando preferência aos seus interesses e desejos). Assim, ao colaborar pouco, a transferência de modelos não ocorre.
Curiosamente, os resultados sugerem que em relação ao envolvimento, o modelo do adulto pode influenciar a criança na sua relação com os pares. Os dados indicam que um clima positivo de empatia, elogio, escuta ativa, boa disposição e responsividade transmitido pelo adulto na primeira fase do estudo se começa a refletir em díades entre pares onde o clima foi caloroso/muito positivo (4 em 10), considerando-se a existência em algumas díades na fase 2 de uma empatia não verbal através de expressões faciais e ações. Nestes casos a criança-modelo observou a outra criança, manifestando interesse pela atividade do par. Foi elogiosa e encorajou a outra criança (“Tu sabes!”, “Faz tu!”, “Uau!”). A comunicação não verbal foi bastante utilizada pelas crianças participantes. O trabalho desenvolvido por Farinha e Fuertes (2018), sugere que “em boas relações existe espaço para o desafio e o estímulo à criança” (p.52). Na verdade, crianças que estabelecem relações positivas com os adultos desenvolvem uma imagem positiva de si próprias e melhores relações com os seus pares (Farinha & Fuertes, 2018).
Limitações e sugestões para estudos futuros
Este é um estudo exploratório com 20 díades, pelo que consideramos importante continuar a recolha de dados para ampliar a amostra permitindo, potencialmente, generalizar resultados.
O facto de a criança ter realizado uma única vez a atividade com o adulto poderá ter limitado a modelagem. Levanta-se a questão: Se repetíssemos mais vezes, o resultado seria diferente? O tempo decorrido ao longo do processo, permitiu-nos apenas uma avaliação a curto prazo, não sendo possível, desta forma, avaliar a consistência e a estabilidade de potenciais mudanças, eventualmente através da repetição da tarefa. Por outro lado, não sabemos se a repetição da atividade não retiraria espontaneidade à mesma, visto haver um conhecimento prévio do que iria acontecer.
Colocando a hipótese de, nestas idades, os processos vinculativos e afetivos terem ainda um grande impacto na criança, pensamos que poderia ser interessante aplicar o mesmo procedimento experimental, com mães e pais. Importa, igualmente realizar estudos comparativos com crianças mais velhas para compreender de que forma os processos de desenvolvimento da criança podem afetar o efeito de modelagem da criança.
Conclusões finais
A atividade Tandem oferece uma oportunidade de colaboração, partilha e desafio mútuo entre um adulto e uma criança. Desta forma, a sensibilidade verbal e não verbal do adulto relativamente às ações e interesses da criança é fundamental para incentivar “interações positivas e recíprocas, bem como a participação das crianças” (Fuertes et al., 2022, p.5). A nossa pesquisa vem reforçar esta ideia, verificámos que em colaboração ou parceria com o adulto, a criança verbalizou mais, expressou mais as suas ideias, tornou-se mais participativa na atividade conjunta. Quando o profissional de creche se mostra elogioso, empático e dá reforços positivos, a criança desenvolve uma autoimagem positiva e reforça a sua autoestima, tornando-se mais participativa e colaborante na atividade.
Denota-se alguma tendência nas auxiliares de educação para orientar e dar diretrizes à criança, muitas vezes sob a forma de sugestões, para que a criança reflita e expanda os seus conhecimentos. Também no estudo de Barroso e sua equipa (2016), as crianças mais novas foram mais incentivadas a enquadrarem a sua ação, surgindo o adulto como um suporte na execução e na reflexão sobre a ação.
Uma vez que as crianças de 2-3 anos passam grande parte do seu dia-a-dia em contexto de creche, entendemos que os profissionais de educação devem contribuir para tornar a criança, progressivamente, mais autónoma e participativa (a agência da criança) no seu processo de desenvolvimento e aprendizagens. Mais, “a criança ao participar ativamente em todo o processo e ao ser apoiada pelo adulto, através de tarefas colaborativas, poderá sentir-se segura ao adquirir domínio sobre a exploração e a interação” (Portugal & Luís, 2016).






















