INTRODUÇÃO
O Laboratório de Histopatologia Cutânea do Serviço de Dermatologia do Hospital de Santa Maria, cuja criação se deve ao Dr. Luís Garcia e Silva, em abril de 1975, tem funcionado ininterruptamente até hoje, assistindo-se a um aumento progressivo do número de exames realizados, de forma regular e constante.1,2Deste modo, enquanto que a atividade registada no primeiro lustro 1976-1980 foi de 2712 exames histológicos,1 no decénio 1998-2007, o número de biópsias subiu para 34 228.2
O presente trabalho consiste numa análise descritiva sumária de número de exames histológicos feitos no Laboratório de Histopatologia Cutânea do Serviço de Dermatologia do Hospital de Santa Maria durante um período de 12 anos.
Nesta parte I do artigo, analisámos os exames da patologia cutânea tumoral, a sua frequência e comparamos os resultados com os obtidos nos estudos anteriores.1,2Na parte II, a publicar em breve, analisaremos a casuística dos exames de patologia cutânea não tumoral efetuados em igual período.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi realizada uma revisão retrospetiva dos diagnósticos histológicos da patologia cutânea tumoral do arquivo do Laboratório de Histopatologia Cutânea do Serviço de Dermatologia do Hospital de Santa Maria durante um período de 12 anos, de janeiro de 2008 a dezembro de 2019. Os números expressos referem-se a biopsias e peças de exérese e não de doentes ou blocos em parafina.
RESULTADOS
Nestes 12 anos, foram processados 60 741 exames histológicos (média anual de 5062), dos quais 49 027 (80%; média anual de 4085) corresponderam a lesões tumorais, com uma relação praticamente constante de 4:1 entre as afeções tumorais e não tumorais (Fig. 1). Além disso, a separação dos tumores em malignos e benignos, apresentou uma relação de 1:2 (Fig. 2).
Considerando isoladamente o grupo dos tumores malignos (Fig. 3) em número de 15 793, representou 32% das neoplasias e foi constituído principalmente pelos tumores malignos epiteliais em número de 11 955 (76%). Os carcinomas basocelulares foram o tipo de carcinoma mais frequente (n=8341; 53% dos tumores malignos; média anual de 695), seguindo-se os carcinomas espinocelulares (n=3614; 23% das neoplasias malignas; média anual de 301). Quando analisado por sexo, os carcinomas basocelulares foram ligeiramente mais frequentes nos homens do que nas mulheres (54% vs 46%) e o mesmo aconteceu com os carcinomas espinocelulares (53% vs 47%). Um terço dos carcinomas basocelulares e dos carcinomas espinocelulares, apresentou-se na faixa etária dos 71-80 anos. As seguintes faixas etárias nas quais o carcinoma basocelular foi mais frequente foram dos 61-70 anos (23%) e dos 81-90 anos (22%), enquanto no carcinoma espinocelular foram dos 81-90 anos (30%) e dos 61-70 anos (18%).
Os melanomas, em número de 1260 (8%), constituíram o seguinte tipo de tumor maligno em frequência, com uma média anual de 105 casos (Tabela 1). O subtipo histológico de melanoma mais comum na nossa série foi o de extensão superficial (n=567; 45%), depois o lêntigo maligno/ lêntigo maligno melanoma (n=251; 20%), o melanoma nodular (n=100; 8%), o melanoma acrolentiginoso (n=70; 5%) e outros subtipos (n=46; 4%) (Tabela 1). Relativamente à espessura tumoral, quase metade das lesões diagnosticadas foram melanomas in situ (n=534; 42%), enquanto nos tumores invasivos houve um predomínio dos melanomas considerados finos, com índice de Breslow ≤ 1 mm (n=317; 25%) (Tabela 1).
A distribuição dos melanomas por sexo foi de 43% de homens e 57% de mulheres (Tabela 1). A faixa etária dos 61-70 anos foi a mais afetada pelo melanoma (25%), seguindo-se as faixas etárias dos 71-80 anos (22%) e dos 51-60 anos (17%) (Tabela 1). Em relação à topografia das lesões, a localização mais comum foi o tronco (n=458; 36%), seguido pelos membros inferiores (n=318; 25%) e, com uma frequência semelhante, a região cabeça e pescoço (n=314; 25%) (Tabela 1). Quando analisado por género, os melanomas no tronco foram mais frequentes nos homens do que nas mulheres (relação 1,4:1) e aconteceu o contrário com os melanomas localizados nos membros inferiores (relação homem-mulher de 1:4).
Os linfomas cutâneos primários totalizaram 464 (3%) e foram essencialmente constituídos pelos linfomas cutâneos primários de células T (n=352; 76%), com a micose fungóide (n=266; 57%) como núcleo principal do nosso grupo e, outros menos numerosos como as doenças linfoproliferativas CD30+ (n=42; 9%), a síndrome de Sézary (n=8; 2%), o linfoma de células T pequenas/médias CD4+ primário cutâneo (n=6; 1%) e o linfoma/leucémia de células T do adulto (n=5; 1%) (Tabela 2). Os linfomas cutâneos primários de células B (n=64; 14%) incluíram o linfoma do centro folicular primário da pele (n=31; 7%), o linfoma da zona marginal primário da pele (n=11; 2%) e o linfoma difuso de grandes células B primário da pele (n=8; 2%) (Tabela 2). A neoplasia de células dendríticas plasmocitóides blásticas observou- se em número muito modesto (n=4; 1%) (Tabela 2). Globalmente, os linfomas foram observados mais frequentemente nos homens do que nas mulheres (61% vs 39%) (Tabela 2).
Características clínicas dos Melanomas | n (%) |
---|---|
Sexo | |
Masculino | 538(43%) |
Feminino | 722 (57%) |
Faixa etária | |
0-10 | 0 (0%) |
11-20 | 4 (0,3%) |
21-30 | 33 (2.6%) |
31-40 | 98 (7.8%) |
41-50 | 127 (10.1%) |
51-60 | 213 (16,9%) |
61-70 | 314 (24.9%) |
71-80 | 282 (22.4%) |
81-90 | 171 (13.6%) |
>91 | 18 (1.4%) |
Localização anatómica | |
Região cervico-cefálica M: 141 - F: 173 | 314 (25,0%) |
Tronco M: 266 - F: 192 | 458 (36,3%) |
Membros superiores M: 62 - F:89 | 151 (12%) |
Membros inferiores M: 63 - F: 255 | 318 (25,2%) |
Órgãos genitais externos M: 1 - F: 3 | 4 (0,3%)) |
NOS M: 5 - F: 10 | 15 (1,2%) |
Características histológicas dos Melanomas | n (%) |
Subtipo Histológico de Melanoma | |
Melanoma de extensão superficial | 567 (45%) |
Lêntigo maligno/ Lêntigo maligno melanoma | 251 (20%) |
Melanoma nodular | 100 (8%) |
Melanoma acrolentiginoso | 70 (5%) |
Outros subtipos histológicos | 46 (4%) |
Melanoma NOS | 226 (18%) |
Breslow | |
In situ | 1534 (42,4%) |
≤ 1 | 193 (15,3%) |
> 1-≤ 2 | 232 (18,4%) |
> 2-≤ 4 | 139 (11,0%) |
≥ 4 | 15 (1,2%) |
NOS | 147 (11,7%) |
Nível de Clark | |
I | 534 (42,4%) |
II | 193 (15,3%) |
III | 232 (18,4%) |
IV | 139 (11,0%) |
V | 15 (1,2%) |
NOS | 147 (11,7%) |
NOS - sem outras especificações, M-Masculino, F- Feminino.
Características clínicas dos Linfomas cutâneos primários | n (%) |
---|---|
Sexo | |
Masculino | 284 (61%) |
Feminino | 180 (39%) |
Faixa etária | |
0-10 | 2 (05,%) |
11-20 | 2 (0,5%) |
21-30 | 17 (4%) |
31-40 | 43 (9%) |
41-50 | 47 (10%) |
51-60 | 80 (17%) |
61-70 | 82 (18%) |
71-80 | 144 (31%) |
81-90 | 40 (9%) |
>91 | 7 (1%) |
Subtipo histológico de Linfoma cutâneo primário | n (%) |
Linfomas cutâneos primários de células T | |
Micose fungóide | 266 (57,3%) |
Síndrome de Sézary | 8 (1,7%) |
Doenças linfoproliferativas CD30+ | 42 (9,1%) |
Linfoma de células T, pequenas/médias CD4+, primário cutâneo | 6 (1,3%) |
Linfoma/leucémia de células T do adulto | 5 (1,1%) |
Linfoma de células T, CD8+, citotóxico, primário cutâneo, epidermotrópico agressivo | 3 (0,6%) |
Linfoma de células T subcutâneo semelhante a paniculite | 2 (0,4%) |
Linfoma extranodal de células NK/T, de tipo nasal | 4 (0,9%) |
Doença linfoproliferativa T, NOS | 16 (3,4%) |
Linfomas cutâneos primários de células B | |
Linfoma do centro folicular primário da pele | 131 (6,7%) |
Linfoma da zona marginal primário da pele | 11 (2,4%) |
Linfoma difuso de grandes células B, primário da pele | 8 (1,7%) |
Doença linfoproliferativa B, NOS | 14 (3%) |
Neoplasia de células dendríticas plasmocitóides blásticas | 4 (0,9%) |
Linfomas cutâneos primários NOS | 44 (9,5%) |
NOS - sem outras especificações.
As faixas etárias com maior número de linfomas foram dos 71-80 anos (31%), dos 61 a 70 anos e dos 51-60 anos (18% e 17%, respetivamente) (Tabela 2).
O grupo de tumores vasculares malignos foi sobretudo representado pelo sarcoma de Kaposi (n=219; 1%), que afetou mais homens do que mulheres (81% vs 19%). As faixas etárias em que este tumor foi mais frequente foram dos 41-50 anos (23%), dos 31-40 anos (19%) e dos 61-70 anos (16%). Outro tumor vascular maligno na nossa série foi o angiossarcoma (n=11).
Merecem um destaque especial as afeções da pele por doenças malignas extracutâneas. Desta forma, metástases cutâneas de tumores sólidos constituiram 244 (2%) dos casos. O melanoma e o cancro de mama foram os dois tipos de neoplasias malignas que induziram mais metástases cutâneas (49% e 22% delas, respetivamente) seguindo-se o adenocarcinoma de pulmão (2%), o carcinoma espinocelular (2%), o adenocarcinoma gástrico (2%), o carcinoma da tiróide (1%) e outros (carcinoma neuroendócrino, carcinoma hepatocelular, cancro do rim e condrossarcoma) com menos de 1% de casos, cada um deles. As metástases cutâneas foram mais frequentes nas mulheres do que nos homens (55% vs 45%) e na faixa etária dos 71-80 anos (27%).
A infiltração cutânea por doenças hematológicas (linfomas sistémicos, leucémia e mieloma múltiplo) observou-se em 82 exames histológicos (0,5%). Foram mais frequentesnos homens do que nas mulheres (65% vs 35%) e na faixa etária dos 71-80 anos (32%).
Outros tumores malignos constatados foram a doença de Paget (n=31), os tumores anexiais malignos (n=27), o fibroxantoma atípico (n=24), o dermatofibrosarcoma protuberans (n=21) e o carcinoma de células de Merkel (n=17).
O grupo de tumores benignos (Fig. 4) totalizou 33 234 exames e representou 68% do total das lesões tumorais. Metade deles correspondeu aos nevos melanocíticos, tendo-se identificado entre eles 4959 nevos displásicos (30%) e 219 nevos de Spitz/Reed (1%). Pela sua frequência, merecem referência as verrugas seborreicas (n=5290; 16%) e os quistos (n=1857; 6%) que, na sua maior parte, foram foliculares (epidermóides= 1255 e quistos triquilémicos =444).
Referimos, também, os tumores anexiais benignos (n=848; 3%) cuja relevância reside no fato de que, devido a sua semiologia clínica não específica, é necessário o estudo histológico para se chegar ao diagnóstico definitivo. Além disso, estes tumores podem ser reveladores de neoplasias de outros orgãos (síndrome de Muir-Torre, Cowden ou síndrome de Birt-Hogg-Dube; entre outros). Os mais numerosos neste grupo foram as hiperplasias sebáceas (n=102), os tricoblastomas/tricoepiteliomas (n=97), os hidrocistomas (n=94) e os pilomatricomas (n=94).
Por último, dado que podem ser marcadores de síndromes (síndrome POEMS, síndrome de Maffucci, neurofibromatose; entre outros), assinalamos os tumores vasculares benignos (n=1470; 4%), principalmente representados pelos hemangiomas (n=636), e as neoplasias benignas neurais cutâneas (n=328; 1%), com os neurofibromas (n=266) como tumores neurais mais frequentes.
DISCUSSÃO
Em comparação com o movimento no decénio 1998-2007,2 verificou-se um incremento de 48% na média anual dos estudos histológicos totais e de 53% na média anual das análises das afeções tumorais cutâneas. A relação entre as afeções tumorais e não tumorais (4:1) foi semelhante à observada no decénio 1998-2007,2 ao contrário da relação (1:2) registada no lustro 1976-1980.1
Relativamente á separação dos tumores em malignos e benignos, apresentou uma relação ligeiramente superior á da casuística do decénio 1998-2007 (1:2 vs 1:3),2 o que é explicado pelo incremento atual das exéreses de neoplasias malignas. Se compararmos com o estudo de 1976-1980, a relação dos tumores em malignos e benignos foi de 1:1.1 Esta desproporção talvez seja consequência não só do aumento da excisão de lesões cutâneas por motivos estéticos, como eventualmente da maior consciencialização atual da necessidade de se efetuar exame histopatológico de todas as peças excisadas.
Globalmente, os grupos de tumores malignos analisados foram mais numerosos nos últimos 6 anos do período de estudo (n=6298) do que durante os primeiros 6 anos (n=9495), com exceção do sarcoma de Kaposi (3% das neoplasias malignas nas duas publicações prévias).1,2
Uma possível explicação para este fenómeno, prende-se com o facto do sarcoma de Kaposi ocorrer habitualmente associado ao SIDA sendo que, nos últimos anos, o tratamento antirretroviral melhorou sobremaneira o estado imunitário dos doentes com infeção pelo VIH.
À semelhança nos estudos anteriores,1,2os três tumores malignos mais frequentes foram os carcinomas basocelulares, os carcinomas espinocelulares e os melanomas, contudo, a média anual de cada um deles duplicou nos últimos 12 anos. O envelhecimento demográfico, o aumento da procura de cuidados médicos e a realização de exame histopatológico, por rotina, de todas as peças excisadas, podem ser razões que expliquem o aumento considerável dos tumores epiteliais e dos melanomas no presente estudo.
A distribuição dos diferentes tipos de tumores benignos foi semelhante à observada entre 1998 e 2007, à exceção dos nevos displásicos cuja percentagem aumentou e os quistos foliculares que diminuíram relativamente.
CONCLUSÃO
Tem-se assistido a um aumento constante e regular da atividade geral do Laboratório de Histopatologia Cutânea do Serviço de Dermatologia do Hospital de Santa Maria nos últimos 12 anos. Isto tem-se refletido num aumento no número de diagnósticos de alguns tumores malignos (carcinomas basocelulares, carcinomas espinocelulares e melanomas).
Com base nos nossos resultados, gostaríamos de destacar a importância do exame histológico como componente central no diagnóstico e subsequente tratamento das condições neoplásicas da pele.