INTRODUÇÃO
As reações de fotossensibilidade caracterizam-se por uma resposta cutânea alterada à radiação não-ionizante, traduzindo-se numa variedade de padrões clínicos que refletem as suas diversas causas.1 Estas podem resultar de uma resposta tecidular anómala à absorção da radiação por moléculas endógenas ou ser causadas por compostos foto-ativos, quer de origem endógena, como as porfirinas, quer exógena, como fármacos ou químicos administrados sistemicamente ou aplicados diretamente na pele.2
O reconhecimento de um padrão de fotossensibilidade pressupõe o atingimento de áreas foto-expostas como a face, pavilhões auriculares, região cervical posterior, “V” do decote e dorso das mãos, poupando as áreas sombra, como a região retro-auricular, pregas nasogenianas, pálpebras superiores e zona submentoniana.3
CASO CLÍNICO
Doente de 58 anos, género masculino, fototipo III, operário na construção de estradas, observado por dermatose pruriginosa da face, com 2 meses de evolução. Sem história de alergias medicamentosas ou introdução recente de novos fármacos e sem qualquer queixa sistémica. Previamente medicado com aceponato de metilprednisolona 0,1% creme e bilastina 20 mg em SOS, sem qualquer benefício.
Ao exame dermatológico verificava-se eritema vermelho vivo levemente descamativo, bem demarcado, da face e do pescoço, poupando as regiões palpebrais, sulcos nasogenianos e área inframentoniana, sendo compatível com padrão de fotossensibilidade (Fig. 1). Não apresentava outras anomalias ao exame físico, nomeadamente adenopatias cervicais.
Realizou testes epicutâneos, que incluíram a série básica do Grupo Português de Estudo das Dermatites de Contacto e as séries de plantas e cosméticos/veículos de tópicos, bem como testes foto-epicutâneos, com a série de foto-alergénios Europeia (Chemotechnique Diagnostics, Vellinge, Suécia) irradiados com 5 J/cm2 de UVA (Waldmann®7001K). Observou-se uma reação positiva fraca (1+) apenas a componentes de líquens (mistura de ácidos liquénicos 0,3% vas, ácido único 0,1% vas e atranorina 0,1% vas), sem foto-agravamento (Fig. 2).
Dada a dificuldade em evitar a exposição aos líquens perante a sua profissão, cumpriu um ciclo de corticoterapia oral (24 mg/dia de metilprednisolona em esquema de desmame durante 15 dias), e tópica (aceponato de metilprednisolona 0,1% creme durante 10 dias), que se mostraram pouco úteis, com manutenção do quadro 3 meses após a primeira visita.
Foram posteriormente realizados fototestes, em áreas de 5x5 cm de pele sã, não exposta do dorso, a doses crescentes de UVA e UVB, utilizando como fonte de irradiação a câmara Waldmann®7001K. Estes demonstraram ausência de reação cutânea às 24 e 48 horas após irradiação com 5, 10 e 15 J/cm2 de UVA, mas eritema para doses iguais ou superiores a 0,5 J/cm2 de UVB 311nm, implicando uma discreta redução da dose de eritema mínimo para o seu fototipo (Fig. 3).
Atendendo ao quadro clínico, que evocava a possibilidade de dermatite actínica crónica, ponderou-se iniciar azatioprina, procedendo-se à colheita de estudo analítico, incluindo hemograma, marcadores de função hepática, renal e serologias infeciosas. Os parâmetros encontravam-se normais, à exceção de uma positividade para o vírus da imunodeficiência humana (VIH)-1, confirmado por ELISA de quarta geração.
O estudo subsequente revelou uma carga viral de 91 700 cópias/mL e uma contagem de células T CD4+ de 147 células/mm3, consubstanciando o diagnóstico de síndrome da imunodeficiência adquirida.
Neste seguimento, iniciou terapêutica anti-retroviral com tenofovir/emtricitabina e dolutegavir, verificando-se resolução rápida e completa do prurido e das lesões fotossensíveis (Fig. 4). O doente mantém terapêutica anti-retroviral e fotoproteção sem recorrência da sintomatologia após 1 ano de seguimento, apesar da mesma exposição profissional.
DISCUSSÃO
Estima-se que em algum momento da sua evolução 5% dos doentes com infecção por VIH apresentem fotossensibilidade.3 Habitualmente associada a fármacos utilizados no seu tratamento, tem também sido descrita sob a forma de dermatoses fotossensíveis ou, mais raramente, como manifestação inicial da infeção pelo vírus.4
Os fármacos mais frequentemente implicados compreendem os agentes anti-retrovirais, destacando-se o efavirenz e o saquinavir, trimetoprim-sulfametoxazol, anti-inflamatórios não esteroides, cetoconazol, azitromicina e dapsona.4-6Neste contexto, apresentam-se como reações fototóxicas, fotoalérgicas ou erupções liquenóides fotossensíveis, sendo as últimas principalmente observadas com administração de trimetoprim-sulfametoxazol e anti-inflamatórios não esteroides.3
A fotossensibilidade em doentes com infecção VIH pode também ocorrer sob a forma de outras dermatoses fotossensíveis como a porfiria e pseudo-porfiria cutânea tarda, granuloma anular fotossensível, hiperpigmentação facial primária, despigmentação tipo-vitiligo, pelagra, eritrodermia e dermatite actínica crónica.3,6-8
Embora menos descrita, a fotossensibilidade pode ainda constituir a manifestação inicial (e única) da infeção por VIH.4,6
Também nesta situação, foram identificados diversos quadros morfológicos, alguns mais específicos que outros, em que o mais recorrentemente observado demonstra características semelhantes às de dermatite actínica crónica.1,9,10
Sabe-se que um dos efeitos da radiação ultravioleta diz respeito à produção de espécies reativas de oxigénio resultando em dano de ADN e destruição celular. Já os mecanismos subjacentes ao maior risco de desenvolvimento de fotossensibilidade em doentes com VIH não estão totalmente estabelecidos.
Uma das teorias propostas consiste na disfunção das vias de neutralização de radicais livres originando maior produção de espécies reativas de oxigénio.3,6Esta disfunção pode dever-se a uma deficiência relativa de glutationa e tioredoxina, a alterações na absorção de vitaminas e flavonoides ou a dano hepático secundário à administração de fármacos.12
Verifica-se também uma relação entre o grau de imunossupressão e a ocorrência de fotossensibilidade, sendo mais frequentemente reportada em doentes com contagens de células T CD4+ inferiores a 200 células/mm3,3,6,9-11tal como acontece no caso reportado. Nestas situações, o padrão mais descrito corresponde a um quadro eczematoso crónico.6
A abordagem perante um quadro eczematoso com fotossensibilidade passa, inicialmente, pela exclusão de causas farmacológicas ou outros agentes exógenos, com auxílio a testes foto-epicutâneos.3 Esta deverá posteriormente ser orientada segundo as manifestações clínicas com eventual recurso a estudo analítico (incluindo serologias de hepatites, doseamento de porfirinas séricas/urinárias, ferro, vitaminas e anticorpos anti-nucleares), fototestes e biópsia cutânea.3
A instituição terapêutica mais direcionada dependerá da etiologia do quadro, sendo a fotoproteção e evicção solar essenciais em todas as condições.3,9
Em situações de fotossensibilidade sem causa aparente, pretendemos relembrar a associação à infeção VIH, de modo a estabelecer-se um diagnóstico correto e um tratamento adequado.
Apesar da fotossensibilidade em doentes com VIH ter vindo a ser crescentemente reconhecida como uma entidade clínica distinta, permanece ainda um desafio diagnóstico, devido não só à heterogeneidade de manifestações clínicas, mas também à escassa caracterização do ponto de vista fotobiológico e fisiopatológico.