INTRODUÇÃO
A endometriose, doença estrogénio-dependente1,2inicialmente descrita por Rokitansky em 1860,1,3acomete cerca de 10% das mulheres em idade reprodutiva.2,4,5
Histopatologicamente é definida pela presença de tecido glandular endometrial e/ou estroma fora da cavidade uterina que pode ocorrer por transformação metaplásica, metástase ou iatrogenia.1,3,5Os sintomas mais frequentes incluem dor pélvica, dispareunia e dismenorreia, mas variam consoante a localização dos implantes endometriais podendo ser assintomática em 50% dos casos.1 É causa conhecida de infertilidade e tem como localização mais frequente os órgãos pélvicos, principalmente os ovários e trompas uterinas.1-3
Em cerca de 12% dos casos de endometriose são encontradas lesões extragenitais, que ocorrem em qualquer órgão, incluindo cérebro, pulmão, fígado, mesentério, intestino, pleura e pele.2,3,5A endometriose cutânea é um evento raro,3 representando 5,5% dos casos de endometriose extrapélvica.6A sua patogênese ainda não está bem definida,2permanecendo como um desafio diagnóstico.6
CASO CLÍNICO
Paciente feminina, 31 anos, nulípara, apresentava nódulo violáceo na cicatriz umbilical há 1 ano, medindo cerca de 0,5 cm de diâmetro (Fig. 1). Relatava sangramento espontâneo coincidente com o período menstrual e aos mínimos traumas. Negava doenças ginecológicas e procedimentos cirúrgicos abdominais ou pélvicos prévios. Foi feita a excisão cirúrgica da lesão, com incisão fusiforme perpendicular à linha alba. A sutura simples foi realizada com mononylon 4-0. Ao exame histopatológico, foram observadas estruturas glandulares dilatadas no meio de estroma celular do tipo endometrial e infiltrado linfocítico perivascular (Fig.s 2 e 3), achados compatíveis com endometriose cutânea. Avaliação ginecológica descartou endometriose pélvica. A paciente evoluiu com resultado estético satisfatório, e não houve sinais de recidiva da doença após dois anos de seguimento clínico.
DISCUSSÃO
A endometriose cutânea acomete mulheres sobretudo entre os 30 a 35 anos6 e tem como localização principal o umbigo5 - acredita-se que seja pelo fato do seu funcionamento como cicatriz fisiológica.6 A maioria dos casos (70%) são secundários à cirurgia pélvica anterior como cesariana - que aumenta o risco em 27 vezes -, exérese de cisto de glândula de Bartholin, injeções intrauterinas para abortamento, laparoscopia, amniocentese, ligação tubária, episiotomia, além de apendicectomia e hernioplastia inguinal ou abdominal.1,3,6
A endometriose cutânea surge cerca de 30 meses após estes procedimentos cirúrgicos.6Em 0,5% a 1% de todos os casos não houve cirurgia prévia - trata-se de endometriose primária ou espontânea,2,6como no presente caso. É também chamada nódulo de Villar - médico que primeiro descreveu em 1886.6,7
A lesão cutânea tem dimensão média de 2 a 3 cm e pode ter apresentação clínica variável, com coloração vermelha, azulada, roxa ou acastanhada, dependendo da profundidade e quantidade de hemorragia, e é circundada por eritema.1,2,6,7 A endometriose cutânea pode ser assintomática em 80% dos casos, ou cursar com edema, dor e sangramento associados ao ciclo menstrual.6 É uma patologia subdiagnosticada, havendo uma diversidade de diagnósticos diferenciais, que incluem hérnia, persistência/lesão do úraco, granulomas, melanoma, abscesso, fístula, nevo benigno, lipoma, queloide, nódulo de Irmã Maria José (metástase cutânea umbilical).2,6-9
A patogénese da endometriose umbilical ainda não está bem esclarecida,2,8a teoria mais aceita é a que sugere a migração de tecido endometrial a partir da menstruação retrógrada, havendo, então a implantação das células endometriais na superfície peritoneal dos órgãos pélvicos.2 Há, ainda, a descrição da migração linfática ou vascular, metaplasia celular, cujo processo envolve transformação de células mesoteliais do peritoneu de origem celômica em células endometriais; e a metástase iatrogénica, associada a disseminação de células endometriais a partir de procedimentos cirúrgicos, com implantação das células na cicatriz.1,2,6No que se refere a endometriose umbilical isolada, o acometimento pode ser em virtude da transformação metaplásica de remanescentes do úraco ou, ainda, advindo da contaminação do cordão umbilical por células endometriais após o nascimento.2
A investigação é baseada na anamnese, exame físico detalhados e no exame histopatológico.6,7A dermatoscopia ao evidenciar coloração avermelhada homogénea com pequenas estruturas globulares vermelhas pode contribuir para o diagnóstico.6,7A punção por agulha fina guiada por ultrassom é um método controverso, uma vez que tem precisão variável e há o risco de implantação de tecido endometrial além do sítio de punção e é inadequada para exclusão de malignidade.2,6Assim a confirmação diagnóstica está dependente do exame histopatológico.2,6O estudo da endometriose cutânea deve ser complementado com avaliação ginecológica e exames de imagem como ultrassonografia pélvica/abdominal, ressonância magnética e tomografia computadorizada,1,2,6,8para avaliar outras lesões intra-abdominais que ocorrem em 26% dos casos de endometriose cutânea.3
O tratamento de escolha é a ressecção cirúrgica.2,6,9Não há técnica estabelecida em virtude da raridade desta patologia, podendo ser realizada mediante excisão completa do umbigo com ou sem reconstrução da fáscia subjacente e peritoneu ou remoção apenas do nódulo endometrial, poupando o umbigo, como no presente caso.10 A terapia hormonal é sugerida por alguns autores como forma de reduzir o tamanho da lesão e aliviar sintomas, no entanto, o uso de análogos da hormona libertadora de gonadotrofinas, danazol ou anticoncepcional hormonal oral2,8,9,10no pré-operatório pode levar a excisão incompleta com recorrência.2,6A recorrência é rara,9 mas pode acontecer nos 2 anos que se seguem à excisão inicial.10
Na literatura, está bem descrito, apesar de rara, a possibilidade de transformação maligna a partir de um endometrioma umbilical,1-3o que corrobora a escolha da ressecção cirúrgica como melhor opção terapêutica e a necessidade de uma exame histopatológico.3,7A aspiração por agulha fina com exame citológico pode levar a resultados falso-positivos para malignidade pela identificação de atipias nas células glandulares.3
CONCLUSÃO
A endometriose umbilical primária é uma patologia extremamente rara e frequentemente subdiagnosticada, gerando múltiplas idas a diversos médicos e atraso no diagnóstico, podendo levar de 9 a 12 anos entre o início dos sintomas e a confirmação diagnóstica para todos os tipos de endometriose.4 Sendo assim, é importante manter alta suspeição diagnóstica diante de um paciente com massa palpável na parede abdominal, mesmo sem história de cirurgia prévia, atentando para os sintomas associados ao ciclo menstrual.2,6
A condução do caso deve envolver uma equipe multidisciplinar composta por cirurgião geral, radiologista, dermatologista e ginecologista.2