INTRODUÇÃO
A urticária multiforme (UM) é uma reação de hipersensibilidade aguda, sendo classificada como um subtipo morfológico da urticária. Ocorre mais comumente em crianças entre 4 meses e 4 anos, e caracteriza-se clinicamente por máculas, pápulas ou placas eritematosas de formato anular ou policíclico, frequentemente, com centro equimótico ou violáceo. As lesões apresentam curta duração, e podem associar-se a angioedema. Os sintomas sistêmicos são geralmente limitados a febre de curta duração (1-3 dias). A erupção cutânea é autolimitada, com tendência à resolução em 8 a 10 dias.1 Pode ocorrer na sequência de infecções ou administração de medicamentos. O diagnóstico é essencialmente clínico, sendo frequentemente subdiagnosticada por ser confundida, clinicamente, com eritema multiforme (EM), vasculite urticariana e menos comumente, com a doença do soro-like.1
Relatamos o caso de um lactente com lesões urticariformes exuberantes associado a manifestações sistêmicas expressivas e achados sugestivos de UM.
CASO CLÍNICO
Lactente, feminino, de 1 ano e 9 meses, observada por lesões cutâneas exuberantes, coriza, tosse, oligúria e febre com 6 dias de evolução. A mãe referiu atendimento noutra unidade de emergência pediátrica 3 dias antes, onde haviam sido prescritos antipiréticos, anti-histamínicos e sulfametoxazol/ trimetoprim para tratamento empírico de infecção urinária.
Cerca de 24 horas após o início da medicação surgiram lesões eritemato-pruriginosas da face que nas horas seguintes progrediram para o tronco e raiz dos membros. A mãe relatava alergia medicamentosa prévia à penicilina e cefalosporinas com o aparecimento de lesões eritematosas generalizadas mas sem manifestações sistémicas.
Na admissão hospitalar, observavam-se placas eritemato-edematosas anulares e policíclicas, com centro equimótico, distribuídas por todo tegumento (Fig.s 1, 2 e 3) além de prostração, broncoespasmo, taquipneia, temperatura axilar de 38,3ºC e saturação de oxigênio em ar ambiente de 92%. Na unidade de cuidados intensivos, foram de imediato iniciados clindamicina e gentamicina empiricamente, além de soroterapia com cloreto de sódio a 0,9% 20 mL/kg/ dia, anti-histamínicos endovenosos (ranitidina 4 mg/kg/dia e hidroxizina 2 mg/kg/dia) e corticoterapia endovenosa (hidrocortisona 10 mg/kg/dia). O estudo analítico do sangue revelou hemoglobina 12,5 g/dL, hematócrito 37,3%, leucócitos totais 6560 mc/L, plaquetas 367 000 mc/L, ureia 27mg/dL, creatinina 0,27 mg/dL, proteína C reativa 1,2 mg/L, sumário de urina sem evidência de piúria ou hematúria, função hepática, ionograma e coagulograma sem alterações e teste de Coombs direto negativo. Realizado painel viral com pesquisa de transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR) em swab de nasofaringe e orofaringe para adenovírus, meptapneumovirus, parainfluenza, influenza A e B e vírus sincicial respiratório, não detectáveis.
Realizado também sorologias para rubéola, citomegalovírus, toxoplasmose, hepatite B, hepatite C, anti-VIH e vírus Epstein Barr, todos não reagentes.
Realizadas duas biópsias cutâneas na região abdominal, sendo uma em lesão purpúrica e outra em área eritematosa para análise histopatológica. Ambas evidenciaram edema da derme com inflamação intersticial composta por linfócitos, neutrófilos e eosinófilos, sem evidência de vasculite, sendo então o diagnóstico compatível com urticária (Fig. 4).
Durante hospitalização o quadro clínico evoluiu favoravelmente com melhoria das lesões cutâneas em aproximadamente 24 horas, ainda que com um quadro transitório de angioedema labial (Fig. 5).
Devido a normalidade em exames laboratoriais, culturas, radiografia de tórax, ultrassonografia do abdómen, eletrocardiograma, ecocardiograma transtorácico e melhora clínica da hipereatividade brônquica, foram suspensos os antibióticos e corticoides intravenosos ao fim do terceiro dia de hospitalização. A paciente obteve alta hospitalar após recuperação completa do quadro em uma semana, sem lesões cutâneas residuais. Não houve novas manifestações cutâneas relatadas até a presente data.
Devido à apresentação das lesões cutâneas sugestivas, presença de angioedema, ausência de artrite, curta duração das lesões, resposta satisfatória a anti-histamínicos e corticoides e biópsia cutânea sem evidências de vasculite foi atribuído o diagnóstico de urticária aguda, com o aspecto morfológico de urticária multiforme.
DISCUSSÃO
A UM foi inicialmente descrita por Tamayo-Sanchez et al em 19972 como urticária anular aguda e posteriormente renomeada de urticária multiforme por Shah et al em 2007, devido a semelhança clínica com EM.1 É considerada uma reacção de hipersensibilidade mediada pela histamina que se caracteriza pelo início agudo de placas urticarianas transitórias, eritemato-edematosas policíclicas e anulares com centro equimótico.1-3
Ocorre sobretudo na infância entre 4 meses a 4 anos, porém pode também ocorrer em recém-nascidos e adultos.1,4Devido às características das lesões com aspecto anular ou policíclico de coloração eritematosa e por vezes violáceas até acastanhadas com centro equimótico, tem sido interpretada como EM ou doença do soro-like.1,4,5Na maior parte dos casos, há história prévia de infecção viral ou bacteriana, destacando o Mycoplasma, adenovírus, Estreptococos e vírus Epstein-Barr como possíveis desencadeantes.1,4,5Segundo alguns autores, processos infecciosos parecem ser a causa mais comum de urticária aguda em crianças,6,7no entanto, o uso prévio de antimicrobianos também pode estar relacionado, sendo amoxicilina, furazolidona,8 cefalosporinas e macrolídeos os fármacos mais citados.1 De acordo com Tamayo-Sanchez et al, 65% de seus casos foram precedidos de diarreia relacionada com possível infecção intestinal por Giardia lamblia tratada com furazolidona.2,3Há também casos associados à vacinação,8 porém não existem evidências da UM ser desencadeada por alergia alimentar.7
O diagnóstico da UM é clínico, não sendo necessária biópsia cutânea. Os critérios para seu diagnóstico incluem lesão urticariforme de morfologia anular e policíclica, transitórias com ou sem lesões purpúricas concomitante, ausência de lesões em alvo verdadeiras, bolhas, necrose cutânea ou acometimento de mucosas, tempo de duração das lesões individuais menor que 24 horas, presença de dermografismo, presença de angioedema sem artralgia ou artrite e resposta favorável a anti-histamínicos.1 O exame histopatológico mostra os achados clássicos de urticária típica, com edema dérmico e infiltração linfocítica perivascular e intersticial com eosinófilos e por vezes, neutrófilos.
Esses achados distinguem facilmente a UM de seu principal diagnóstico diferencial, o EM cuja histologia mostra necrose epidérmica e degeneração vacuolar da camada basal.4
Na UM encontramos lesões cutâneas transitórias, com morfologia anular e crescimento centrífugo, podendo forma grandes placas arciformes, de contornos policíclicos com zona central equimótica ou violácea.8 Caracteristicamente, são lesões efêmeras, que de acordo com Shah et al se resolvem em até 24 horas, e tal como na urticária clássica, podem ser acompanhadas por febre e angioedema, estando este presente em 61% dos casos.1 Geralmente, os pacientes que apresentam urticária e angioedema tendem a ter sintomas mais graves e duradouros do que pacientes sem essa combinação.6 Não se associa a artralgia ou artrite ou envolvimento de outros órgãos internos, ainda que neste caso tenha havido um quadro transitório de broncospasmo e dispneia que rapidamente resolveu. Laboratorialmente, pode-se observar aumento discreto de velocidade de hemossedimentação e proteína C reativa, assim como, leucocitose leve.1,4-6,8
O tratamento da UM é baseado na administração de anti-histamínicos anti-H1 de segunda geração.1 Corticosteróides sistêmicos raramente são necessários, podendo ser administrados em casos de refratariedade à terapia anti-histamínica ou casos mais graves,1,4,9como no caso relatado, em que a UM se associou a broncoespasmo e sinais de hipoxemia.
Dentre os principais diagnósticos diferenciais, cita-se o EM, a doença do soro-like e a vasculite urticariana. A duração mais efêmera das lesões da UM são uma das principais diferenças em relação ao EM, que se caracteriza por lesões fixas, que duram dias a semanas. Ainda a UM tende a resolver espontaneamente em 6 a 10 dias sem deixar pigmentação residual e, no EM, há tendência à hiperpigmentação residual após sua resolução.1,8,10O prurido é um sintoma comum na UM e habitualmente ausente no EM.3 O dermografismo, que pode ser encontrado na UM, está ausente tanto no EM, quanto na doença do soro-like.1,3
A doença do soro ocorre, classicamente, de 1 a 3 semanas após a administração de soro animal ou proteínas exógenas e resolve espontaneamente em dias a semanas.
As lesões cutâneas são fixas, urticariformes policíclicas, purpúricas e com angioedema, e associam-se a vasculite, nefrite com hematúria e albuminúria, artralgia e/ou artrite, mialgia e linfadenopatia.1 A doença do soro é rara em crianças, sendo a doença do soro-like mais comum, caracterizada por febre, artralgia, linfadenopatia, lesões urticariformes e angioedema raramente com vasculite ou nefrite.1,10,1Também são diagnósticos diferenciais, principalmente em crianças com febre e edema acral e de face, o edema hemorrágico agudo da infância, exantema viral, e, no sobretudo no adulto, seria também de considerar a vasculite urticariana e o lúpus eritematoso.5
O edema agudo hemorrágico da infância é uma vasculite leucocitoclástica de pequenos vasos, que ocorre em lactentes e crianças pequenas. Caracteriza-se pelo aparecimento súbito e rápida progressão de lesões eritematosas e purpúricas associadas a edema das extremidades e febre. Trata-se de uma entidade pouco conhecida e acredita-se que 75% dos casos descritos foram precedidos de infecções de trato respiratório superior, imunização ou fármacos (penicilinas, paracetamol). A instalação súbita e exuberância do exantema contrastam com o bom estado geral da criança. O diagnóstico é clínico, o quadro benigno e autolimitado.12
A vasculite urticariana é uma entidade clínico-patológica identificada por episódios recorrentes de urticária que apresentam características histopatológicas de vasculite leucocitoclástica,13 semelhante ao edema agudo hemorrágico da infância. Embora a vasculite urticariana seja rara em crianças, sendo mais frequente em adultos de média idade,14clinicamente deve ser considerada um diagnóstico diferencial pois também pode dar lesões urticariformes e com coloração equimótica ou eritematosa e pode estar associada a angioedema e doença pulmonar obstrutiva em mais de 20% dos casos.14 Apresenta com lesões cutâneas que podem variar de tamanho e geralmente persistem por mais de 24horas, com duração média de 3-4 dias.12 As lesões são difusas podendo se transformar em extensas placas e cursar com elementos purpúricos como petéquias e hematomas, além de clareamento central das lesões. Na maioria dos casos as lesões cutâneas são pruriginosas, mas também podem cursar com dor.13 O angioedema ocorre em 42% dos casos e os sintomas sistêmicos mais comuns são febre (10%), artralgia transitória e mal estar mas também os pacientes podem cursar com sintomas gastrointestinais, nefrite, asma e conjuntivite ou uveíte.14 Na histopatologia cutânea da vasculite urticariana pode-se encontrar edema e necrose das células endoteliais, infiltrado inflamatório perivascular principalmente neutrofílico, extravasamento de hemácias, leucocitoclasia perivascular e depósito intersticial de material fibrinóide. Embora o quadro clínico possa se sobrepor às da urticária alérgica,13 podemos notar algumas diferenças com o nosso caso como: lesões urticarianas e purpúricas com duração menor que 24 horas, ausência de lesões residuais e histopatológico cutâneo sem evidência de necrose de células endoteliais ou vasculite.
Devido a exuberância e raridade, relatamos este caso de UM, uma forma morfológica particular de urticária aguda, sobretudo em crianças, neste caso com algumas repercussões sistêmica (broncoespasmo), mas com desfecho favorável.
Enfatizamos a importância do diagnóstico correto com intuito de minimizar exames desnecessários, porém levando em consideração a possível evolução de cada caso.