INTRODUÇÃO
Foliculite decalvante (FD) e celulite dissecante (CD) estão englobadas nas alopécias neutrofilicas da classificação da North American Hair Research Society (NAHRS) de 2001. Ambas são dermatoses crónicas e progressivas e conduzem a alopécia cicatricial. A FD, na sua forma clínica mais comum, inicia-se como placa irregular com pústulas e crostas em área limitada do couro cabeludo,1,2assintomática ou associada a dor ou prurido, que evolui para alopécia cicatricial.3 Apresenta maior prevalência em adultos de meia idade. Apesar do Staphylococcus aureus ter sido isolado em lesões, não se sabe ao certo o seu papel.2,4,5Mais recentemente, a alteração da microbiota, que levaria à persistência da inflamação, foi considerada o factor determinante.7,8A CD do couro cabeludo é caracterizada por nódulos inflamatórios e abscessos estéreis na região occipital e vertex, que progridem para alopécia cicatricial.2 É mais comum na raça negra entre adultos jovens.5 Esta dermatose integra a tétrade de oclusão folicular juntamente com a hidradenite supurativa, o cisto pilonidal e a acne conglobata, embora CD isolada seja o mais frequente. Alguns estudos genómicos9-11encontraram maior prevalência de determinadas bactérias nas lesões, tais como Pseudomonas, Staphylococcus epidermidis coagulase negativo e Propionibacterium acnes, apesar de culturas bacteriológicas e micológicas serem quase sempre negativas.5 Embora a fisiopatologia não esteja totalmente elucidada, acredita-se que exista oclusão folicular determinada pela resposta imune cutânea aberrante a bactérias comensais.10,11O diagnóstico de CD pode ser realizado combinando os achados clínicos com várias opções de métodos diagnósticos, como tricoscopia, histopatologia e atualmente, o uso da ecografia. O objetivo principal do trabalho consiste em analisar a utilidade da ecografia no diagnóstico da CD na prática dermatológica diária.
CASO CLÍNICO
Os autores partilham 2 casos clínicos ilustrativos. Realizaram ainda uma pesquisa no motor de busca PubMed no dia 12/12/2019 com as key words “dissecting cellulitis” and “ecography” e “dissecting cellulitis” and “ultrasonography” and “folliculitis decalvans”.
Caso 1
Doente de raça negra com 19 anos de idade, com diagnóstico de CD, sob tratamento com isotretinoína 20 mg/d (0,5 mg/kg) desde há 4 meses. Objetivamente, alopécia em placa-nódulo 3x2 cm na região temporo-occipital direita (Fig. 1). À tricoscopia: cabelos partidos a diferentes níveis, orifícios foliculares vazios, áreas amarelas e cabelo velo em crescimento (Fig. 2). Na ecografia visualiza-se lesão com cerca de 2 cm, de bordos relativamente bem definidos, não encapsulada, localizada na hipoderme, com conteúdo hipoecogénico e presença de estruturas lineares hiperecogénicas, que correspondem a pequenos fragmentos de haste capilar. Esta lesão comunica com a derme através dos bulbos dilatados de folículos pilosos e por trajetos fistulosos intercomunicantes (Fig. 3), o que ajuda a confirmar o diagnóstico de CD. Na imagem ecográfica com Doppler a cores é possível ver um aumento da vascularização à periferia que corresponde à atividade inflamatória aumentada (Fig. 4).
Caso 2:
Paciente de 32 anos, caucasiano, com placa inflamatória única bem delimitada no vertex, com alopécia com 2 meses de evolução (Fig. 5). À tricoscopia: observa-se ausência de muitos orifícios foliculares, cabelos distróficos e áreas de inflamação. Sem tratamento prévio.
Na ecografia visualiza-se lesão ovóide de bordos relativamente bem definidos, não encapsulada, com conteúdo hipoecogénico e que comunica com a derme através dos bulbos dilatados de folículos pilosos, o que reforça o diagnóstico de nódulo inflamatório no contexto de CD (Fig. 6).
DISCUSSÃO
Em ambos os casos o diagnóstico de CD foi baseado na apresentação clínica, tricoscopia e utilização da ecografia, não tendo sido realizada de biópsia cutânea do couro cabeludo.
Da revisão bibliográfica realizada na PubMed no dia 12/12/2019 obtiveram-se 12 resultados. Destes, 10 foram eliminados por não conterem dados relevantes para o tema em análise. Foram, assim, selecionados e analisados 2 artigos12,13e da bibliografia de cada artigo foram selecionados 9 artigos adicionais que não constaram da pesquisa inicial, que permitiram caracterizar a importância das várias opções de métodos diagnósticos, como tricoscopia e histopatologia e atualmente, também o uso da ecografia.
Tricoscopia: Em estudo recente14 realizado em 1884 pacientes com alopécia, 84 foram diagnosticados com alopécia cicatricial. Quando comparados com casos controlo, todos os pacientes com alopécia cicatricial mostraram áreas de eritema branco-rosado, ausência de aberturas foliculares, pili torti, descamação interfolicular e hiperqueratose folicular.14- 17
Histopatologia: Na FD e CD, observa-se processo inflamatório perifolicular linfoplasmocitário, com intensidade e composição variada,2 ausência de unidades pilosebáceas e fibroplasia interfolicular.1,5,6Sperling (2002) afirma que devido à sobreposição histológica e clínica entre as formas de alopécia cicatricial, um diagnóstico definitivo nem sempre é possível.18 Em quadros avançados de FD e CD já com extensas áreas de alopécia cicatricial, muitas vezes, há semelhança clínico-patológica e tricoscópica1entre estas entidades, e o recurso à ecografia poderia auxiliar no diagnóstico diferencial. Em casos em que ainda persiste inflamação, esta diferenciação é relevante porque poderia determinar a escolha de um tratamento diferente.
Ecografia: A análise ecográfica de lesões de couro cabeludo com utilização de transdutores de alta frequência e baixa penetração (seguido ou não da avaliação com Doppler a cores) permite a visualização de folículos, tractos capilares e tecido glandular com excelente resolução.19 O estudo ecográfico pode ser considerado o método de escolha para avaliação inicial, visto ser não invasivo, ter baixo custo e permitir análise das estruturas e fluxo sanguíneo local com definição.20A ecogenicidade de cada camada da pele está relacionada com o principal componente: queratina (epiderme), colagénio (derme) e lóbulos de gordura (hipoderme). Epiderme e derme correspondem a banda hiperecogénica: a primeira mais fina e a segunda mais espessa e com menor brilho.21 O tecido subcutâneo visualiza-se uma banda hipoecogénica12,13interrompida por hiperecogenicidades que correspondem aos septos fibrosos,3 enquanto que os vasos sanguíneos (venosos ou arteriais) aparecem como canais finos com baixa resistência.22 Os folículos pilosos correspondem a bandas oblíquas hipoecogénicas, que podem abranger diferentes camadas dependendo da fase folicular: em telogénese, o bulbo localiza-se na derme, enquanto em anagénese, no tecido sub-cutâneo.19
Em 2010, foi realizado um estudo com 4338 exames de ecografia cutânea em lesões cutâneas diversas: tumores benignos, malignos e lesões inflamatórias, com 130 casos controlo saudáveis. Obteve-se elevada sensibilidade e especificidade na distinção entre estes grupos de lesões e os controlos, e entre estes grupos entre si, pelo que a ecografia poderia tornar-se, no futuro, ferramenta útil no diagnóstico de lesões cutâneas.3
Em 2012 Wortsman et al12 descreveram achados que contribuem para diferenciação entre CD e FD: Na primeira, observam-se abscessos como áreas hipoecogénicas com múltiplos trajetos fistulosos intercomunicantes, que atingem o bulbo capilar, gerando folículos com base dilatada, bem como coleções de fluidos e detritos (marcado por ecos internos). Na segunda, não se observam fístulas e existe espessamento folicular localizado. A hipoecogenicidade dos folículos pilosos corresponde a inflamação.
Ecografia com Doppler: É útil associar o Doppler a cores à ecografia, já que o Doppler detectaria inflamação através de um aumento importante no fluxo sanguíneo tecidual.12,21Em 2017,13 num caso de Cataldo-Cerda et al, um paciente com nódulo único que clinicamente se poderia confundir com quisto triquilémico, o exame ecográfico com Doppler a cores evidenciou coleção de líquido não-ecogénico hipodérmico, dilatação de folículos capilares e presença de detritos (presença de ecos internos), confirmando o diagnóstico de CD.
Admite-se que hidradenite supurativa (HS) e CD correspondam a um mesmo espectro de doença, caracterizado por obstrução folicular.11,22Em 2019, Martorell et al realizaram um estudo multicêntrico para comparar a classificação de gravidade da doença dada através do exame clínico com recurso a ecografia. Esse estudo revelou que 44,7% dos pacientes classificados em estádio I pelo exame clínico, após o exame ecográfico foram enquadrados em estádios II e III, com possível impacto terapêutico. Outra vantagem seria permitir a detecção da doença em fase subclínica.11,22Em 2018, Ximena Wortsman defendeu que estudos ecográficos permitiriam a visualização de conexões ocultas entre os trajetos fistulosos na pele e a quantificação do tamanho das coleções, o que não poderia ser avaliado a olho nu, contribuindo assim ao estadiamento e a determinar a extensão da doença.23,24
Ecografia combinada com elastografia: A elastografia é uma técnica que tem sido utilizada desde o século XX, baseada na detecção de alterações na elasticidade dos tecidos. De forma geral, a perda da elasticidade/aumento da rigidez está relacionado com a intensidade dos processos inflamatórios pré-existentes.25,26Desta forma, a ecografia associado à elastografia funcionaria como um bom marcador de inflamação.15 Em 2019 foi publicado o primeiro estudo ecográfico27 com utilização de 2 métodos - elastografia por cisalhamento (shear wave elastography-SWE) e a ecografia de imagem microvascular (superb microvascular imaging-SMI) - com o objetivo de avaliar espessura, elasticidade e vascularização do tecido potencialmente inflamado. Este método combinado perceberia precocemente alterações na elasticidade do couro cabeludo, reflectindo o grau de inflamação.27
CONCLUSÃO
Em conclusão, podemos dizer que a ecografia na CD pode, no futuro, ter três utilidades: 1. Em casos de longa evolução e com importante alopécia cicatricial, na distinção entre FD e CD.
2. Em casos muito iniciais de CD com nódulo único ou com poucos nódulos na distinção com quisto triquilémico.
3. Ao permitir avaliar a inflamação quando combinado com Doppler a cores, poderia servir para monitorizar o controlo da inflamação e a resposta terapêutica.