INTRODUÇÃO
Micoses superficiais são infeções fúngicas que acometem pele, cabelos e unhas, frequentes na prática clínica dermatológica. A prevalência de espécies distintas e formas clínicas variadas depende de cada país e região. As manifestações cutâneas podem ser causadas por dermatófitos (este é o mais frequente), leveduras e fungos não dermatófitos.1,2
Os dermatófitos são representados por três gêneros: Trichophyton, Microsporum e Epidermophyton.
Em função de seu habitat são classificados em antropofílicos - adaptados ao homem (Trichophyton rubrum, Trichophyton inter-digitalis, Epidermophyton floccosum), geofílicos - habitam o solo (Microsporum gypseum) e zoofílicos - nos animais (Microsporum canis, Trichophyton mentagrophytes).3,4
Fungos não dermatófitos, como Fusarium spp, Scopulariopsis spp, Aspergillus spp e Acremonium spp, podem ocasionar infec-ções oportunistas nas unhas.5As leveduras pertencentes ao gênero Candida são as mais relevantes, especialmente Candida albicans, que pode acometer tanto a pele quanto as mucosas e muito excecionalmente as unhas.6 Existem ainda, leveduras lipofílicas do gênero Malassezia, anteriormente conhecidas como Pityrosporum, fungo mais prevalente que faz parte da flora normal da pele (microbioma). Essas leveduras também apresentam potencial patogênico, podendo, em condições adequadas, invadir o estrato córneo.7 O reconhecimento dos gêneros e espécies dos agentes fúngicos responsáveis pelas várias micoses superficiais permite um correto diagnóstico e, consequentemente, é de grande auxílio na prevenção de novas infecções.1
O presente estudo tem como objetivo avaliar a epidemiologia de casos de dermatofitoses e seus índices de concordância entre o exame micológico direto (EMD) e a cultura para fungos.
MATERIAL E MÉTODOS
Realizou-se um estudo retrospectivo com dados obtidos de registos de 439 amostras de 420 pacientes atendidos no Serviço de Dermatologia do Hospital Guilherme Álvaro, Santos- SP, Brasil, no período de 2013 - 2018. Foram incluídos na pesquisa pacientes de todas as idades e de ambos os sexos, com suspeita clínica de micose superficial.
Dos pacientes atendidos no laboratório com suspeita clínica ou com diagnóstico comprovado de dermatomicose, foram colhidas do livro de registo informações como: idade, sexo, local da lesão, resultado do EMD e da cultura para fungos. Não há informações em relação a contato com animais domésticos, ocupação ou hobbies dos pacientes. Os dados colhidos foram mantidos em absoluto sigilo e sem identificação dos doentes.
Foram obtidas amostras de lesões das regiões palmar (Tinea manum), plantar (Tinea pedis) e de outras áreas do corpo (Tinea corporis), através de raspados realizados com lâmina de bisturi em toda lesão, principalmente do bordo ativo; de lesões ungueais (Tinea unguium), tanto de quirodáctilo quanto de pododáctilo, previamente higienizadas com gaze e álcool 70% e posteriormente realizada a colheita da região subungueal com uso de cureta; e da região do couro cabeludo (Tinea capitis) através de raspagem local e retirada de cabelos suspeitos com pinça.
Os materiais coletados foram avaliados ao laboratório de mi-cologia do Centro Universitário Lusíada.
O EMD foi realizado com clarificador KOH 20% + DMSO (di-metil sulfóxido). Parte das amostras foram inoculadas em placa de Petri contendo ágar Sabouraud-dextrose adicionado com cloranfenicol e ciclohexamida (Ágar Mycosel), incubadas a 27°C e 37°C por 4 semanas e examinadas uma vez por semana. Nos casos suspeitos de Malassezia furfur, o meio de cultura utilizado foi o ágar Sabourauddextrose adicionado a bile de boi 10% e óleo de oliva 1%, incubado a 37°C por 7 dias.
A identificação do fungo foi realizada através das características macroscópicas como cor, textura, aspecto, tempo de crescimento e ausência ou presença de pigmento; e posteriormente, feito o estudo micromorfológico. Em alguns casos, foram realizados testes de urea-se e produção de órgãos perfuradores. A confirmação de fungos filamentosos não dermatófitos foi obtida pelo crescimento da colônia do mesmo fungo em três amostras consecutivas.
Análise Estatística
A distribuição de frequências (número de casos e percentual) foi utilizada para descrever as variáveis categóricas e as medidas de tendência central (média e mediana) e de variabilidade (varia-ção e desvio padrão) para as numéricas. Para comparar as va-riáveis categóricas e gênero (feminino, masculino) em tabelas de contingência, foi adotado o teste de frequências do qui-quadrado. Para verificar a associação entre as idades e variáveis categóricas, foi aplicado o teste não paramétrico de Kruskal-Wallis.
Utilizou-se o teste de Shapiro - Wilk para verificar normalidade da variável idade. O teste de McNemar foi utilizado para verificar a homogeneidade dos exames, enquanto o índice Kappa foi aplicado para verificar a concordância entre o EMD e a cultura para fungos. O índice K foi interpretado como mostrando concordância mínima, razoável, moderada, substancial ou quase perfeita, respetivamente quando <0,20; 0,21-0,40; 0,41-0,60; 0,61-0,80; e 0,81-1,00.8,9
O nível de significância de 5% foi adotado para todos os testes estatísticos.
O programa STATA versão 10.0 foi utilizado para a realização das análises estatísticas.10
RESULTADOS
Num período de 6 anos, houve um total de 439 amostras colhidas de 420 pacientes provenientes do serviço de Dermatologia, das quais 438 foram obtidos resultados de cultura. O sexo femi-nino foi o que apresentou a maior frequência de casos clínicos, totalizando 268 (63,8%). A idade variou de 3 meses a 95 anos, com média de 45,7 anos. Os locais de colheita mais frequentes das 439 amostras, foram as unhas com 190 casos (43,4%), a pele do corpo com 106 (24,1%), sendo a região palmar a menos fre-quente, com apenas 14 casos (3,2%) (Tabela 1).
No EMD, em 242 amostras (55,1 %) foram detetadas hifas hialinas e em 44 (10,0%) leveduras ou pseudohifas, sendo os restantes 153 negativos. Das 438 informações de cultura para fungos, 155 (35,4%) resultaram negativas, em 125 (28,5%) obtivemos conta-minação que não permitiu identificar o fungo e em 158 (36,1%) foi identificado um fungo, sendo o mais frequente o Trichophyton rubrum identificado em 41 amostras (9,4%) (Tabela 1).
A tabela 2 mostra a distribuição das variáveis de acordo com o local da colheita. Observa-se que a idade média e mediana da Tinea capitis foi significativamente inferior às demais, enquanto o grupo da Tinea manum foi o mais idoso, não havendo relação entre o sexo e a localização da lesão que motivou a colheita. Não foi observada diferença estatisticamente significativa entre o local da colheita e o resultado do EMD (p=0,148) ou da cultura (p=0,785).
Quando analisamos a concordância entre os EMD e cultura, observamos que 149 (96,1%) EMD negativos foram concordan-tes com a cultura; 117 (74%) positivos para hifas hialinas apresentaram também cultura positiva. Das culturas em que ocorreu contaminação, a maioria dos casos 119 (95,2%) mostraram hifas hialinas no EMD. Todos os casos de levedura, no EMD, foram positivos ou contaminantes na cultura, indicando associação estatis-ticamente significativa. Agrupando-se hifas e leveduras no EMD comparado com a cultura, observou-se correlação quase perfeita (k= 0,955) entre EMD e a cultura, se excluirmos os casos de contaminação da cultura. Do total de 313 exames, apenas 6 casos de EMD positivo apresentaram cultura negativa e só em 1 caso de EMD negativo a cultura foi positiva.
Em relação ao local, destaca-se a perfeita concordância entre EMD e cultura na Tinea pedis.
O fungo mais encontrado, independentemente do local, foi o Trichophyton rubrum, com 41 casos. Porém, na análise em separado, o resultado da cultura de acordo com o local, mostrou que Trichophyton tonsurans (54,2%) foi o mais frequente na Tinea capitis, o Trichopyton rubrum (40,9%) na Tinea corporis, o Trichophyton mentagrophytes (33,3%) na Tinea pedis. A Tinea manum e a Tinea unguium apresentaram a maior frequência de fungos não dermatófitos (57,1% e 40,7%, respetivamente).
DISCUSSÃO
As micoses superficiais são as infecções fúngicas mais comuns, principalmente aquelas causadas por dermatófitos. Cada país e região apresenta características distintas em relação às espécies e formas clínicas.11 A prevalência encontrada de acordo com a World Health Organization (WHO) é de 20%-25%.12,13
Em relação à epidemiologia, em nossa casuística, encontrou-se a predominância do sexo feminino, como já demonstrado em estudo realizado no Irão e no Chile.11,14A média de idade analisada foi de 45,7 anos, semelhante a encontrada na cidade de Valparaíso.11
Quanto ao local de acometimento, os trabalhos mostram resultados divergentes. No presente estudo o maior número de casos clínicos foram nas regiões ungueal (43,4%), corporal (24,1%) e plantar (18%), semelhante ao encontrado por Koksal et al.13 Por outro lado, Panasiti et al, na cidade de Roma, obtiveram com maior frequência as regiões corporais e couro cabeludo.15
Ainda, correlacionado-se a idade com o local de acometimento, vários estudos mostram que a Tinea capitis é mais frequente em criança, achado também demonstrado neste relato.11,13,16
O EMD demonstrou associação significativamente estatística com a cultura, o que já foi relatado na literatura em um estudo realizado em Istambul, onde tanto o EMD quanto a cultura foram positivas em 97%, semelhante a nossa casuística de 99,4%.13 A concordância entre o EMD e a cultura demonstram a confiabilidade dos mesmos, auxiliando no diagnóstico da dermatomicose. Resultados discordantes entre EMD e cultura, sobretudo quando o primeiro é positivo e a cultura negativa, são atribuídos a amostras que contém hifas não viáveis, amostras insuficientes ou coletadas de maneira incorreta.17 A correlação com contaminação atribuímos ao ambiente quente e húmido da cidade onde coletamos as amostras, como também, à proliferação de ácaros no meio ambiente e no próprio material coletado do paciente. Observamos que o índice de contaminação reduziu ao mantermos as culturas fechadas separadamente em sacos plásticos.
O Trichophyton rubrum, dermatófito antropofílico, foi o agente mais observado na cultura, corroborando com trabalhos de diversas localidades das Américas, Europa e Ásia.11,13,16,18-20Nota-se o aumento da frequência do T. rubrum em meio urbano, isso se deve à relação com grandes aglomerados populacionais, movimentos sociais, frequência de espaços públicos como piscinas, balneários e ginásios.21
Porém ao analisarmos os outros fungos mais prevalentes, em nossa casuística encontramos o Trichophyton tonsurans em segundo lugar, o que não se assemelha a grande maioria dos estudos, os quais observaram o Trichophyton mentagrophytes, dermatófito zoofílico, terceiro mais frequente no presente trabalho.11,13,15,16,18-20Em um estudo realizado em Portugal, T. rubrum foi a espécie mais frequente, com 53,6% dos isolamentos, seguido do M. audouinii e do T. mentagrophytes, respetivamente com 10,7% e 10,4% dos isolamentos.22Tanto o primeiro como o terceiro fungo mais frequente desse trabalho, corroboram com os achados do nosso estudo.
O resultado da cultura se torna um arsenal para decisão terapêutica, já que algumas espécies são mais sensíveis a certos antifúngicos. Ao analisarmos o resultado da cultura com o local de acometimento, somando-se os fungos não dermatófitos, podemos observar em nosso estudo que apenas dois locais, região ungueal e palmar, não obtiveram como fungos mais frequentes os dermatófitos, resultado que diverge da grande maioria dos estudos.11,13-16,19Os autores questionam se essa divergência se deve ao fato do local da pesquisa estar situado em cidade de praia de um país tropical, onde a humidade é prevalente, favorecendo o crescimento de leveduras.
A espécie mais prevalente da Tinea capitis na maioria dos trabalhos foi Microsporum canis,11,13,15,20o que não coincide com as análises do nosso estudo, que obteve o mesmo resultado do trabalho realizado nos Estados Unidos, o qual encontrou o Trichophyton onsurans como mais frequente.20 Em Portugal observou-se que o M. Audouinii foi o dermatófito mais frequentemente isolado em couro cabeludo (42,6% dos casos), seguido do T. Soudanense (22,1%), T. tonsurans (10,8%) e então M. Canis (10,5%).22 Interroga-se o motivo dessa diferença de achados. Os autores acreditam que nas populações com prevalência de M. canis o contato com animais domésticos seja maior; diferentemente dos outros estudos, incluindo o nosso, onde encontraram-se aumento de fungos antropofílicos, sugerindo um contato mais frequente entre seres humanos, seja por aglomerações ou maior frequentação à espaços públicos.
Por fim, o Trichophyton rubrum prevaleceu nas micoses corporais, achado concordante com o trabalho da China que evidenciou 91% deste fungo no local.16
CONCLUSÃO
As micoses superficiais são afecções fúngicas que acometem pele, pelo e unha, e a prevalência das espécies varia conforme o local de acometimento, bem como o país ou a região estudada. Seu diagnóstico pode ser obtido através de EMD e cultura, os quais mostraram concordância nos resultados analisados. É de suma importância a determinação de fatores de risco do acometimento fúngico com o local, já que há divergências nos resultados da maioria dos trabalhos analisados.