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CIDADES, Comunidades e Territórios
versão On-line ISSN 2182-3030
CIDADES no.35 Lisboa dez. 2017
https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.dec2017.035.art03
ARTIGO ORIGINAL
Requalificação de Espaços Residuais Portuários no Brasil: Os Casos do Porto Maravilha e do Cais José Estelita
Requalification of Residual Spaces Waterfronts In Brazil: The Cases of Porto Maravilha and Cais José Estelita
Caroline ZenatoI; André Souza SilvaII
[I]Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil. e-mail: carolinezenato@gmail.com.
[II]Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil. e-mail: silandre@unisinos.br.
RESUMO A presente pesquisa tem por objetivo identificar estratégias sustentáveis utilizadas na requalificação de vazios urbanos situados em áreas portuárias brasileiras, de modo a reestruturá-los produtivamente, atentando aos interesses da coletividade. O estudo analisa, especificamente, os projetos de intervenção Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, e a proposta para o Cais José Estelita, no Recife. O método consiste na (i) revisão de alguns instrumentos do Estatuto da Cidade, na (ii) compreensão em torno da formação de vazios urbanos e na (iii) análise das soluções adotadas para refuncionalização de setores da cidade, como o marketing urbano. A partir do estudo comparativo é possível verificar que a recuperação dos vazios urbanos portuários depende fundamentalmente do planejamento urbano integrado, centrado nas necessidades sociais e culturais das comunidades enraizadas em torno da área de intervenção. The present research aims to identify sustainable strategies used in the requalification of urban voids located in brazilian port areas, in order to productively restructure them, attempting to the community's interests. The study analyzes, specifically, the intervention projects Maravilha Port, in Rio de Janeiro, and the proposal for the José Estelita Pier, in Recife. The proposed method consists in (i) revising some instruments of the City Statute, in (ii) the understanding around the urban voids' formation and in (iii) the analysis of solutions adopted for the refunctionalization of city's sectors, as the urban marketing. From the comparative study, it is possible to verify that the port urban voids' recovery depend crucially on integrated urban planning, centered on the social and cultural needs of communities rooted around the intervention area. A origem das cidades está relacionada à necessidade do convívio em comunidade, aproximando as pessoas a uma série de comodidades, conforme os interesses de cada sociedade. Ao longo dos tempos, o espaço urbano tratou de modificar-se e adaptar-se de acordo com os paradigmas de sua época. Nos dias de hoje, sua gestão consiste em um dos desafios urbanos, visto a rapidez com que ocorrem modificações nas estruturas sociais e econômicas (Rogers; Gumuchdjian, 2001). A exemplo destas mudanças, o processo de reestruturação produtiva em torno das cidades da América do Norte e da Europa desde 1950, e o Brasil por volta de 1980, favorece o aparecimento de novas centralidades, que são reflexos de um novo modelo econômico com maior liberdade locativa, baseado na tecnologia, na mobilidade e na globalização (Vargas; Castilho, 2009). No Brasil, o fenômeno da descentralização tem alterado o contexto urbano herdado de outros tempos. Caracterizado, a partir de 1930, pela industrialização, pelo êxodo-rural e pela formação de metrópoles marcadas pelas desigualdades sociais e por apresentarem melhor infraestrutura e serviços, o tecido das cidades brasileiras tem se modificado, em partes, desde o final do século XX e início do século XXI, dada a transferência de funções de antigas áreas para outros pontos, favorecendo a fragmentação de áreas consolidadas e com relevâncias históricas e culturais significativas, uma vez que estas compõem a identidade e a memória de cada sociedade. Ao mesmo tempo, novos núcleos mais tecnológicos têm configurado na área urbana uma série de espaços residuais e estruturas subutilizadas que emergem em locais antigamente vitais da cidade. Essas mudanças de interesses são também responsáveis por ocasionar rupturas na continuidade do tecido urbano, visto que a falta de funções e diversidade favorecem o abandono e o surgimento de edificações degradadas, além de problemáticas como a violência, o vandalismo e a insegurança (Titton, 2012). Diante do que se expôs, coloca-se a seguinte questão: que alternativas são utilizadas para reabilitar orlas portuárias desvalorizadas, integrando os interesses da comunidade, agentes públicos e a iniciativa privada? Parte-se do princípio de que por meio de intervenções consorciadas, isto é, parcerias público-privadas interessadas na refuncionalização de áreas urbana, associadas a políticas de marketing urbano, seja possível promover a recuperação desses setores. De modo a responder os apontamentos supracitados, ressalta-se que esta pesquisa tem por objetivo identificar estratégias sustentáveis utilizadas para requalificação de vazios urbanos em orlas portuárias brasileiras, a fim de contribuir para a construção de espaços de qualidade, articulados ao tecido da cidade e integrados às expectativas da comunidade. Trata-se de um tema atual e relevante cuja abordagem considera aspectos de ordem ambiental, econômica e sociocultural, posto que a reestruturação produtiva das áreas residuais é indispensável, pois busca identificar as vocações do lugar, estabelecendo novos usos, de modo a reaproveitar a infraestrutura já existente, bem como a ampla variedade de construções edificadas em outras épocas (Queirós, 2007). Isto significa que é preciso introduzir o pensamento cíclico nas cidades, a fim de reduzir o consumo de recursos naturais, materiais e energia, bem como as problemáticas decorrentes da subutilização e do abandono, preservando o que já foi construído e destinando-o a novas finalidades. Além disso, um novo olhar para estes locais exprime a necessidade de sua valorização, de modo a integrá-los no contexto local, devolvendo espaços que são de direito dos cidadãos, dado que essas áreas se demonstram especiais pela sua história, espaços de memória, expressos nas permanências (Edwards, 2008). O método consiste, inicialmente, na análise de determinados instrumentos relacionadas à função social da propriedade urbana (Estatuto da Cidade - Lei nº 10.257/2001), como por exemplo os institutos tributários e financeiros e os institutos jurídicos e políticos, amplamente debatidos por Saule Júnior (2001), Rolnik (2001) e Oliveira (2001). Na sequência, busca-se discorrer sobre a formação de vazios urbanos nas cidades, a partir do pensamento de Salgueiro (1998), Souza e Awad (2012) e Titton (2012). Após, verificam-se as estratégias de requalificação em tecidos urbanos degradados e/ou subutilizados associadas ao conceito de marketing urbano, enquanto solução para atração de investimentos e melhorias para a imagem da cidade, conforme Salgueiro (1999), Queirós (2007) e Costa (2015b). Com base nestas abordagens, propõe-se a análise comparativa entre os planos de intervenções desenvolvidos nos projetos de revitalização do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, e do Cais Estelita, no Recife, tomados como estudo de caso em razão das intervenções propostas para requalificar áreas residuais portuárias brasileiras. Os diversos interesses que regem as cidades dos países em desenvolvimento correspondem a um dos desafios dos gestores públicos, especialmente no Brasil. Tal desigualdade social e espacial reflete a desarticulação entre o descontrolado processo de urbanização, ocorrido ao longo do século XX, e a (falta de) integração entre a gestão, o planejamento urbano e os investidores. Atualmente, o agravamento do quadro da desigualdade e da segregação social ainda desperta conhecidas problemáticas, tanto na cidade como um todo quanto no meio ambiente. Guetos, invasões, favelas periféricas, deslizamentos, alagamentos, degradação de centralidades, poluição e especulação de imóveis rondam os cenários urbanos do país, suscitando iniciativas que tenham como objetivo equilibrar a sociedade, redistribuindo os benefícios de uma forma igualitária, a fim de eliminar os privilégios das classes sociais mais abastadas. Sendo assim, pretende-se que todos os cidadãos sejam devidamente valorizados, estando o bem-estar coletivo e os diretos individuais corretamente assegurados (Oliveira, 2001). Visando concretizar ideais relacionados à justiça social e ao direito à cidade, a elaboração do Estatuto da Cidade surge enquanto instrumento jurídico desenvolvido para regulamentar as políticas urbanas expostas nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988. A estes atribuem-se aspectos relacionados à função social da cidade e da propriedade urbana, bem como a garantia à posse de imóvel urbano para moradia pela usucapião. Deste modo, a partir dessa lei, pretende-se contribuir para a diminuição das desigualdades sociais e espaciais expostas nas cidades brasileiras, melhorando a inclusão social por meio de uma gestão democrática e por um conjunto de diretrizes, instrumentos e tributos relacionados à gestão do espaço urbano (Rolnik, 2001). Trata-se de uma legislação que atua no planejamento em nível de cidades, local onde a vida humana se desenvolve, estando, portanto, o município encarregado de aplicá-la e adaptando-a conforme a sua realidade, pela criação da própria Lei Orgânica Municipal e do Plano Diretor (Saule Júnior, 2001). Segundo Santin e Marangon (2008: 91), o princípio da função social da cidade, diretriz que rege a criação do Estatuto, parte do pressuposto de que todo cidadão brasileiro tem direito “[...] ao acesso à cidade e aos recursos urbanísticos por ela oferecidos.” Para as autoras, é essencial que os gestores públicos se encarreguem do gerenciamento do real aproveitamento do solo urbano, conforme função definida no plano diretor municipal. Deste modo, é possível coibir problemáticas que se contrapõem à dignidade das pessoas, contendo o desequilíbrio entre as classes sociais, a fim de construir uma cidade sustentável, preocupada com o desenvolvimento econômico, a preservação do meio ambiente e a melhora da qualidade de vida da população como um todo. Para Rolnik (2001) prezar pelo exercício da função social da cidade é também opor-se ao urbanismo excludente que vem se concretizando, onde elites, empreendedores e especuladores imobiliários tiram proveito de suas condições financeiras para angariar melhores locais na cidade, frutos dos impostos coletivos, expulsando as classes populares para as zonas afastadas, desfavorecidas e carentes de investimentos. Entretanto, assegurar o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana não depende apenas da construção de um plano diretor, mas também de outras diretrizes previstas pelo Estatuto da Cidade, como a ideia da gestão democrática, a justa distribuição, a redução da especulação imobiliária, o controle fiscal, o conceito de cidade sustentável, a integração urbano-rural e a regularização fundiária. Neste contexto, entende-se o princípio da gestão democrática como a efetiva possibilidade de participação da população em processos que envolvem o futuro de suas cidades. Isto significa que cada cidadão tem o direito de opinar na elaboração e revisão dos planos diretores, assim como discutir sobre projetos de responsabilidade pública ou privada, que acarretam em consequências aos municípios. Por sua vez, a justa distribuição, o processo de contenção da especulação imobiliária e o limite fiscal vinculam-se à necessidade do poder público promover investimentos e melhorias em conformidade com suas receitas e gastos, a fim de gerar benefícios à coletividade e não apenas a determinados setores da sociedade que aguardam pela valorização de suas propriedades. Trata-se também de promover a sustentabilidade das cidades, integrando e atendendo às necessidades básicas existentes no meio urbano e rural e auxiliando na promoção do desenvolvimento sustentável em todas as suas dimensões. Por fim, a legalização fundiária e urbanística de áreas ocupadas indevidamente por camadas de baixa renda, a partir da criação de ordenamentos específicos, compõe o leque de diretrizes urbanas pensadas para o fortalecimento da cidadania (Oliveira, 2001). Frente a esses desafios e diretrizes, o Estatuto da Cidade (2004) também estabelece um amplo conjunto de instrumentos e tributos que visam ordenar o planejamento urbano, quais sejam: Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo; contribuição de melhoria; incentivos e benefícios fiscais e financeiros; desapropriação; servidão administrativa; limitações administrativas; tombamento; instituição de unidades de conservação; instituição de zonas especiais de interesse social; concessão do direito real de uso; concessão de uso especial para fins de moradia; parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; usucapião especial de imóvel urbano; direito de superfície; direito de preempção; outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; transferência do direito de construir; operações urbanas consorciadas; regularização fundiária; assistência técnica e jurídica gratuita para comunidades desfavorecidas; referendo popular e plesbicito; Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV); e Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA). Todavia, entendendo a amplitude dessa abordagem, coube elencar na presente pesquisa apenas os principais instrumentos que podem vir a ser utilizados como estratégias públicas para a requalificação de áreas urbanas. Dentre as possibilidades supracitadas, elencou-se para discussão o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, o IPTU progressivo no tempo, a desapropriação, as operações urbanas consorciadas, o tombamento e a transferência do direito de construir. Segundo Saule Júnior (2001), o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, assim como o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação com pagamentos de títulos de dívida pública são instrumentos que, sucessivamente, podem vir a ser empregados pelos gestores públicos para obrigar os proprietários de terrenos não ocupados, imóveis subutilizados e edificações abandonadas a exercerem a função social a qual estão destinados pelo plano diretor. Em vista disso, busca-se eliminar a especulação imobiliária na cidade, garantindo benefícios à comunidade. Para a aplicação desse instrumento é essencial que os gestores públicos identifiquem em seus planos os setores específicos que estarão sujeitos a este enquadramento. Por sua vez, a cobrança do IPTU progressivo no tempo, de modo ascendente, ano a ano, no prazo máximo de cinco anos, corresponde a uma espécie de punição aos proprietários de imóveis, que mesmo notificados frente à necessidade da sua correta utilização, optaram por mantê-los vazios ou desocupados. Para Oliveira (2001) esta tributação exige um sistema de gestão bastante coerente e eficiente, uma vez que o cadastro de imóveis deve manter-se sempre atualizado para evitar injustiças. Decorridos cinco anos de cobrança sem as devidas alterações, o poder público adquire o direito de desapropriação com pagamentos em títulos da dívida pública a serem resgatados no prazo máximo de dez anos, por meio de parcelas anuais emitidas pelo Senado Federal. Assim, torna-se viável devolver às pessoas usos relacionados à habitação, cultura, lazer, emprego e renda (Oliveira, 2001). Outra estratégia de intervenção no meio urbano, defendida pelo Estatuto da Cidade (2004), corresponde às operações urbanas consorciadas. Consistem em parcerias público-privadas que tem o objetivo de requalificar determinados lugares da cidade. Todavia, segundo Rolnik (2001: 8), este tipo de iniciativa só é viável se apresentar, necessariamente, um “[...] programa e projeto básicos para a área, o programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação e o estudo de impacto de vizinhança.” Seguindo as ideias de reabilitação urbana, também é de praxe a possibilidade de tombar [3] edificações ou sítios com relevância cultural para a sociedade, buscando preservá-los para as gerações futuras. Tal iniciativa também pode vir a ser fortalecida e complementada pela transferência do direito de construir não efetivado desses imóveis para outros, em zonas distintas (Oliveira, 2001). Deste modo, ao analisar os instrumentos elencados acima, observa-se que todas as principais políticas apresentadas para a reabilitação urbana se demonstram vinculadas à construção de ambiências urbanas mais humanas, transparentes e democráticas. Portanto, tornam-se claros os anseios sociais, que almejam cidades conectadas com as necessidades das próprias comunidades, entendendo o fortalecimento do exercício da cidadania como uma espécie de prerrogativa das cidades sustentáveis. “A forma da cidade é sempre a forma de um tempo da cidade, e existem muitos tempos na forma da cidade. No próprio decorrer da vida de um homem, a cidade muda de fisionomia em volta dele, as referências não são as mesmas. [...]. Vemos como incrivelmente velhas as casas da nossa infância; e a cidade que muda apaga com frequência nossas recordações (Rossi, 2011: 57-58).” O discurso de Rossi a respeito da evolução da cidade demonstra que ao longo da história, a forma que o espaço urbano adquiriu também foi reflexo do modelo econômico vigente. Por este pensamento, Titton (2012) destaca que a cidade contemporânea já evidencia transformações na sua espacialidade, enquanto resposta a um novo tipo de organização, fruto da uma economia digital e globalizada, capaz de alterar as relações entre o homem, seu trabalho, suas necessidades e o espaço urbano. Da antiga cidade industrial, marcada pela estratificação social, pela interdependência e segregação de atividades econômicas, onde o comércio e os serviços eram hierarquizados e localizados em uma única centralidade, evoluiu-se a configuração espacial, a partir dos progressos socioeconômicos decorrentes da tecnologia, impulsionando a desconcentração industrial e o aumento da importância do setor dos serviços. Tais mudanças são efeitos da construção de redes de comunicação como a internet, da ciência, da informatização e das melhorias desenvolvidas no setor dos transportes (Salgueiro, 1998). Diversos autores buscam definições para o novo modelo econômico vigente desde o final da década de 1970. Conforme afirma Titton (2012: 3), “Dá-se início ao surgimento da economia cognitiva de François Ascher, a economia informacional de Borja e Castells ou a economia do conhecimento de Carlos Leite [...].” Contudo, independentemente da terminologia empregada, constata-se que há um consenso a respeito de sua caracterização e das consequências para o meio urbano. Para Souza e Awad (2012), a economia vigente tem como características principais a ideia de inovação, a especialização profissional, as trocas de informações e a flexibilidade locativa. Por outro lado, enquanto consequências, Titton (2012) destaca que essa fase do sistema capitalista é responsável por alterar o modo como as cidades ao redor do mundo vêm crescendo, onde as reestruturações produtivas tornam-se responsáveis pela desconcentração e pela fragmentação de núcleos urbanos. Trata-se da constituição de subcentralidades, que realocam determinadas funções em novos locais do espaço urbano, mais adaptados em termos de espaço, benefícios fiscais, tecnologia e logística, ocasionando rupturas na continuidade das malhas urbanas. Esta fragmentação observada em áreas antigamente consolidadas consiste numa espécie de espaço residual, terrenos sem uso ou edificações subutilizadas, que sofrem com a degradação decorrente de seu abandono. Nesta perspectiva, tipologias vinculadas aos antigos bairros industriais, terrenos baldios e áreas portuárias, são alguns exemplos destas problemáticas decorrentes do esvaziamento produtivo, muito embora apresentem relevante papel na história das cidades, pois podem conformar o patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico de uma região, integrando, portanto, a memória coletiva de uma sociedade (Titton, 2012). Considerando as relevâncias expostas e entendendo-as como parte do desenvolvimento sustentável, Salgueiro (1999) e Queirós (2007) discorrem sobre a reabilitação destas áreas degradadas por meio de estratégias de marketing urbano. Salgueiro (1999) entende que as políticas de marketing vinculadas à cidade correspondem a uma alternativa para estimular novos modos de habitar antigas áreas urbanas potencialmente importantes em termos sociais, culturais, econômicos, políticos e ambientais. Para isso, deve-se optar por intervenções que promovam uma mudança positiva na imagem dessas áreas, de modo a promovê-las. Investimentos na acessibilidade e mobilidade urbana e em novos espaços de lazer, modernização da infraestrutura existente, ocupação de áreas residuais a partir de novos usos, incentivo às atividades comerciais e à prestação de serviços, construção de pólos tecnológicos e promoção de eventos esportivos podem ser algumas das alternativas apontas pela autora para melhorar a visibilidade da cidade e as expectativas quanto à qualidade de vida. Queirós (2007) entende que a articulação em prol do desenvolvimento de cidades mais atrativas depende da mobilização dos gestores urbanos. Promover a melhora gradativa (social, cultural, econômica, política e ambiental) dos vazios urbanos suscita investimentos que podem ser compensados pelos lucros advindos de atividades econômicas como o turismo, o comércio, o lazer e seus impostos correlatos. Não obstante, Salgueiro (1999) reconhece a possibilidade de atrelar planos estratégicos à iniciativa privada, atuando por meio de parcerias que requalificam o meio urbano em troca da exploração econômica. Por sua vez, Arantes (2000) reconhece que de certo modo o marketing urbano trata a cidade como uma espécie de empreendimento, cuja imagem é vendida no seu país e no exterior, alimentando a concorrência. Neste sentido, Queirós (2007: 5) afirma: “A tônica dos discursos é crescentemente direcionada para a necessidade de rentabilização dos traços distintivos e de apostas nos fatores de diferenciação dos contextos urbanos. A imagem da cidade ocupa, por isso, cada vez mais, o centro das preocupações políticas. A crença na transmutação do capital simbólico em capital econômico tornou-se um pilar fundamental das estratégias urbanas, compelindo os responsáveis políticos a intervir no sentido do reforço da atratividade das suas cidades, enquanto centros de cultura, turismo e consumo.” Segundo Costa (2015b) várias cidades ao redor do mundo têm se utilizado de políticas de marketing urbano para intervir em áreas que necessitavam de requalificação. É o caso, por exemplo, da área industrial Canary Wharf, em Londres, transformada em centro empresarial, e da zona portuária de Sidney, na Austrália, hoje composta por um centro cultural, habitacional e de mercado. Além destas, as intervenções no Museu do Louvre, em Paris, no Parque das Nações, em Lisboa, em decorrência da Exposição Internacional de 1998, e os projetos executados nas cidades-sedes de megaeventos esportivos, como os Jogos Olímpicos em Barcelona (Salgueiro, 1999) e mais recentemente no Rio de Janeiro também ajudam a ilustrar a aplicação dessas políticas que transformam cenários degradantes em cartões postais. Deste modo, buscando compreender o panorama das recentes intervenções para requalificação urbana no Brasil, apresentam-se os estudos de caso a seguir, referentes ao cais do Rio de Janeiro e de Recife respectivamente. O Porto Maravilha é um projeto que tem como objetivo requalificar a zona portuária da cidade do Rio de Janeiro em virtude dos Jogos Olímpicos de 2016. Surge a partir de um novo regramento urbanístico e ambiental desenvolvido pelo poder público para esse setor de interesse especial. Sua execução acontece por meio de uma operação urbana consorciada, respaldada pelo Estatuto da Cidade, envolvendo uma parceria entre agentes públicos, isto é, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), criada pela prefeitura para fiscalizar as obras, e a iniciativa privada, a cargo da Concessionária Porto Novo, escolhida por licitação para executar obras e prestar serviços ao município até 2026. O projeto de intervenção, delimitado pelas Avenidas Brasil, Rodrigues Alves, Rio Branco, Presidente Vargas e Francisco Bicalho (Figura 1), pretende densificar uma área de cinco milhões de metros quadrados, divididos entre os bairros Santo Cristo, Gamboa, Saúde, Caju, Cidade Nova, São Cristóvão e partes do Centro, de modo a elevar a população de 32 mil habitantes para 100 mil em dez anos (CPN, 2017a; Porto Maravilha, 2017b). O interesse da gestão pública na requalificação da região portuária do Rio de Janeiro ocorre na medida em que se consideram suas relevâncias históricas e culturais para a cidade e para o Brasil. Desenvolvida a partir de aterros sobre a Baía de Guanabara, a região abrange o marco zero do porto carioca, assim como as primeiras ruas da cidade, em 1567. Ao longo dos séculos, a área adquiriu diferentes funções: foi ponto de desembarque e residência para escravos, juntamente com operários industriais ligados ao setor cafeeiro, assumindo também o papel de principal acesso do país, desde a chegada da Coroa Portuguesa. Após sucessivas transformações e expansões, o século XX marcou o declínio do setor, em vista da construção do Porto de Itaguaí, em 1982, transferindo as principais atividades para lá. Deste modo, o esvaziamento populacional da região induziu o aparecimento de vazios urbanos, refletidos na degradação das edificações e nas diversas problemáticas sociais ali presentes. Entretanto, um conjunto de 50 bens tombados e 1.500 imóveis preservados por lei, dentre eles, um acervo de igrejas do século XVIII, fortaleza, casarios em estilo colonial português e demais tipologias arquitetônicas ligadas ao segmento portuário ainda podem ser encontradas na região, constituindo a identidade nacional e denotando o potencial da área (Toledo, 2012). Com base nas problemáticas expostas, a parceria público-privado para requalificação da zona portuária busca promover a melhora da qualidade de vida, a fim de atrair desenvolvimento econômico e novos moradores. Para isso, a intervenção (Figura 2) busca priorizar investimentos na acessibilidade e mobilidade urbana, na infraestrutura, no setor imobiliário e nas áreas de lazer e cultura. Dentre as mudanças que englobam o projeto Porto Maravilha enumera-se: a demolição de parte do elevado da perimetral, realizada entre 2013 e 2014, a abertura das ruas denominadas Binário do Porto e Via Expressa, inauguradas em 2013 e 2016 respectivamente, a construção de 17 km de ciclovia, a construção de diversos túneis, finalizados entre 2015 e 2016, as melhorias nas calçadas, o novo mobiliário urbano, a arborização, a instalação do Teleférico da Providência em 2014 e a conclusão da primeira etapa de implantação do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) em 2016, integrando o aeroporto, a rodoviária e os demais modais de transporte por sistema de passagem única. Outros investimentos também vêm acontecendo gradativamente. É o caso da implantação de novas redes de infraestrutura para água, esgoto e gás, da iluminação pública, da drenagem, do cabeamento subterrâneo e da prestação de serviços urbanos relacionados à limpeza, manutenção, sinalização, poda de árvore, coleta de lixo e combate a pragas (CPN, 2017b; Porto Maravilha, 2017f). Além de todas as mudanças propostas, também estão previstas as alterações no setor imobiliário, a fim de aumentar o potencial construtivo dos terrenos, incluindo benefícios fiscais. A Lei Complementar nº 101 de 23 de novembro de 2009 estabeleceu novos regimes urbanísticos para a zona portuária (Quadro 1), os quais estão de acordo com os subsetores apresentados pelo zoneamento da Figura 3. Ademais, foi estabelecida a possibilidade de elevação do gabarito em alguns setores da área intervinda por meio da venda de Certificados de Potencial Adicional Construtivo (CEPACs), assegurados por lei municipal. Deste modo, a compra de índices construtivos torna-se um meio de atrair investidores imobiliários para região e ao mesmo tempo arrecadar fundos para serem investidos em obras de infraestrutura, recuperação do patrimônio histórico e fomento a programas de desenvolvimento social para moradores (Porto Maravilha, 2017b). Quanto à concessão de benefícios fiscais para pessoas e empresas que se instalarem na região, Toledo (2012: 55) afirma haver possibilidade de “[...] perdão de dívidas, isenção de IPTU por dez anos, isenção do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis por Ato Oneroso (ITBI) e redução do Imposto Sob Serviços (ISS).” Buscando preservar a memória coletiva, o Porto Maravilha também destaca ações do Programa Porto Maravilha Cultural, destinado à preservação do patrimônio cultural, material e imaterial, e construção de novos equipamentos culturais, responsáveis por transmitir uma nova imagem da região. Sendo assim, o diálogo entre a história, a arte e a cultura contemporânea é estimulado pela preservação do sítio arqueológico Cais do Valongo e pelo restauro de bens como o Centro Cultural José Bonifácio, reinaugurado em 2013, o Jardim Suspenso do Valongo, entregue em 2012, e a Igreja São Francisco da Prainha, finalizada em 2015. Há também a requalificação da Praça XV e a refuncionalização dos centenários Galpões da Gamboa (Figura 4) para práticas culturais, assim como do Palacete Dom João VI, requalificado para abrigar parte do Museu de Arte do Rio (MAR). Prevê-se ainda o estímulo à exploração econômica das edificações, o desenvolvimento de um circuito histórico-arqueológico e incentivo às manifestações ligadas ao samba e à cultura afro-brasileira. Soma-se a essas propostas um conjunto de novos equipamentos culturais como o Museu de Amanhã (Figura 5), projetado pelo arquiteto Santiago Calatrava e inaugurado no final de 2015, localizado na Praça Mauá, novo cartão postal do Rio de Janeiro (Porto Maravilha, 2017c), a nova sede do Banco Central, a expansão da Biblioteca Nacional, a fábrica de espetáculos do Theatro Municipal e o aquário marinho AquaRio, aberto ao público em outubro de 2016 (RIOetc, 2015). Além da sustentabilidade cultural, o consórcio Porto Novo também prevê atendimento aos compromissos sociais, fixados pelo programa Porto Maravilha Cidadão, preparando moradores e usuários da região para futuras oportunidades. Dentre as linhas de ação do programa, destaca-se o apoio à habitação de interesse social, o estímulo à formação ou a requalificação profissional da população local, a inserção dos mesmos no mercado de trabalho, a inclusão social e tecnológica e o fomento ao micro empreendedorismo local, pautado no artesanato e na gastronomia, em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE (Porto Maravilha, 2017d). É importante mencionar também o relevante incentivo ao desenvolvimento de atividades de inovação na zona portuária. Recentemente, a criação de um distrito criativo na região tem auxiliado no fortalecimento da indústria criativa, a qual já movimenta 20% da economia carioca (RIOetc, 2015). Esse cluster criativo apresenta-se como um conjunto de empresas inovadoras voltadas ao design, à arte, ao marketing, ao desenvolvimento digital, à comunicação e à música. Juntos, dividem espaços, ideias e capital humano em grupos denominados Bhering, Goma e Coletivo do Porto, onde desenvolvimento sustentável e inovação são prioridades (Porto Maravilha, 2016a). Diante do exporto, pode-se perceber que o projeto Porto Maravilha integra uma gestão estratégica que tem a finalidade de melhorar o marketing do Rio de Janeiro. A intervenção na zona portuária carioca tem redefinido partes da cidade e transformado cenários degradante em lugares contemplativos, atraindo investimentos e lucros provenientes do estabelecimento de atividades econômicas, como é o caso do turismo ressaltado por Arantes (2000) e Queirós (2007). Os últimos megaeventos esportivos ocorridos no Rio de Janeiro, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, também auxiliaram na divulgação da cidade enquanto um produto. Além das clássicas imagens que reportaram à Baia de Guanabara, ao Pão de Açúcar, ao Cristo Redentor, à Lagoa Rodrigo de Freitas, à praia de Copacabana e ao estádio Maracanã, um novo espaço modelo associado ao Museu de Amanhã e a Praça Mauá foi utilizado para sintetizar a cidade, promovendo-a em nível global. Já a intervenção no Cais José Estelita, assim como o caso carioca, também é resultado de uma operação urbana consorciada. Trata-se de uma associação de empresas cujo objetivo é revitalizar parte da degradada região do Cais (Figura 6), no centro da cidade de Recife, promovendo o desenvolvimento socioeconômico e preservando o patrimônio histórico-cultural. Entretanto, diferentemente do Rio de Janeiro, a intervenção portuária em Recife caracteriza-se pelo incentivo aos investidores (iniciativa privada), pela ausência de um plano urbanístico específico e pela falta de apoio da população em razão dos impactos urbanos gerados (Mendonça, 2015). Segundo Sousa (2014), o interesse pelo Cais José Estelita, no bairro São José, pode ser justificado pelo fato da área ser considerada de interesse cultural, um local bastante tradicional de Recife. O bairro situado na Ilha Antônio Vaz é caracterizado pelos usos essencialmente destinados ao comércio e aos serviços, apresentando a menor população residente da cidade, cerca de 8.668 habitantes distribuídos em 326 hectares. Abriga um acervo de antigos galpões, além da uma linha férrea desativada, pertencente à União, alvo do processo de intervenção (Figura 7). A origem do Cais remonta ao século XVII, época em que os holandeses se fixaram na ilha, urbanizando-a por meio do estabelecimento do traçado viário inicial e pela construção de ponte, aterro e do Forte das Cinco Pontas. Posteriormente, a economia baseada na produção de açúcar favoreceu o adensamento local, enriquecendo o espaço urbano com significativas edificações, dada a necessária conexão entre o porto e os engenhos. A estrada de ferro, em 1856, também passou a fortalecer as trocas comerciais, ligando a capital ao Rio São Francisco. Contudo, no final do século XX, a área de extrema importância foi desativada e as atividades do Porto do Recife migraram para o Porto de Suape. Em 2003, buscando valorizar o patrimônio cultural das cidades de Olinda e Recife, propostas de requalificação foram lançadas para o Cais José Estelita e para o Cais de Santa Rita. Muito embora não tenham sido executadas, despertaram o interesse dos investidores por essa área do centro histórico, próxima de diversos equipamentos urbanos e com vista privilegiada para o rio Capibaribe e para o mar. Em 2008, um grupo de empresas da construção civil arrematou a área portuária com 101.754,27m² em um leilão e, posteriormente, elaborou um projeto de intervenção, denominado Novo Recife (Sousa, 2014). O projeto de intervenção divulgado em 2011 buscou explorar a ausência de um zoneamento restritivo na área portuária. Sousa (2014) destaca que a intenção do consórcio Novo Recife, ao propor a inclusão de torres verticais próximas à orla, distantes 50 metros em relação ao sítio tombado, deu-se em virtude da necessidade de ser incentivada a mescla de usos, incluindo moradia e prestação de serviços na região. Entretanto, desde 2012 a proposta (Figura 8) vem recebendo inúmeras críticas no que se refere à falta de inclusão social, à verticalização, ao rompimento da paisagem urbana existente, marcada pelas edificações históricas, (Figura 9) e à ausência de estímulo à vitalidade urbana, uma vez que os pavimentos térreos dos edifícios não possuiriam boas relações com o passeio público, apresentando-se murados ou sem atividades convidativas. Após diversas manifestações civis e intensos debates com a gestão pública, o projeto de requalificação desse setor passou por algumas alterações. A Lei nº 18.138/ 2015 foi instituída para ordenar o Plano Específico para o Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga. A partir do documento aprovado, a área passou a possuir um novo zoneamento, conforme é demonstrado pelo Quadro 2 e pela demarcação das quadras da Figura 10. Além disso, foram estabelecidas diretrizes específicas que envolvem mobilidade urbana, preservação histórica, cultura, lazer, reestruturação produtiva, integração social, estímulo a novas edificações próximas às preexistências e incentivo à habitação popular (Novo Recife, 2014). Entretanto, embora aparentemente o planejamento estratégico de Recife, pautado pelo marketing, busque apresentar o projeto de intervenção da área portuária como uma melhoria para a imagem da cidade, Mendonça (2015) alerta para o fato de que a parceria público-privado estaria beneficiando significativamente os investidores, sem contemplar a população como um todo, infringindo as diretrizes previstas no Estatuto da Cidade. De fato, as alterações pensadas para o cenário portuário tendem à construção especulativa do lugar e ao consumismo, opondo-se à requalificação dos espaços urbanos conforme os interesses sociais locais. As inconsistências socioculturais, históricas, econômicas e ambientais apontadas, somadas ao tangente cumprimento do direito à cidade, paulatinamente suscitaram mobilizações contra a intervenção na área. A exemplo deste descontentamento civil é o Movimento Ocupe Estelita cujo objetivo é prezar pela sustentabilidade do cais, cuidando do meio ambiente, permitindo a inclusão social e atentando para diretrizes econômicas responsáveis. Diante dessa situação polêmica, a implantação das propostas por parte do consórcio Novo Recife tem encontrado impasses para a devida viabilização até os dias de hoje. Isso demonstra que as políticas de marketing urbano que visam transformar áreas degradadas em ambientes atrativos nem sempre significam ganho em qualidade de vida, pois muitas vezes podem estar desassociadas dos interesses e valores atribuídos pela coletividade. A partir das informações obtidas a respeito dos projetos de recuperação de vazios urbanos relacionados ao Cais do Rio de Janeiro e Cais Estelita, no Recife, elaborou-se um quadro comparativo (Quadro 3) para relacionar as principais estratégias de intervenção adotadas em cada projeto, bem como os instrumentos jurídicos, políticos e tributários do Estatuto da Cidade, mencionados para subsidiar as propostas. Contudo, a análise comparativa dos projetos também apontou para várias dessemelhanças entre eles, relacionadas principalmente às questões que envolvem transparência, direito à cidade e emprego de instrumentos do Estatuto da Cidade. O projeto Porto Maravilha apoia-se nos instrumentos jurídicos, políticos e tributários para fundamentar suas diretrizes e estimular proprietários e investidores. As alterações de uso do solo, o direito de superfície e a diminuição de impostos são estratégias utilizadas para estimular a densificação da zona portuária, ao passo que a transferência do direito de construir e a possibilidade de compra de CEPACs estão relacionados ao atendimento dos gabaritos estabelecidos pelo plano urbanístico da prefeitura, bem como ao financiamento das obras relacionadas ao marketing e à inclusão sócio-produtiva. No caso do Rio de Janeiro, segundo o Porto Maravilha (2016b), ao menos 3% dos recursos obtidos pela venda de CEPACs deverão ser utilizados no patrimônio cultural e na capacitação profissional de classes populares que conformam o centro carioca. Além disso, outra ação assertiva do Consórcio Porto Novo consiste no processo de transparência de informações, aproximando as propostas e a comunidade. De acordo com Toledo (2012), assuntos relacionados à revitalização podem ser acessados em diferentes canais da internet, como a página oficial do projeto, blogs, Twitter e Facebook, além da Revista Porto Maravilha, um meio de divulgação impresso quadrimestral desenvolvido desde 2010. Por outro lado, a requalificação do Cais Estelita não menciona claramente a possibilidade de uso de instrumentos assegurados pelo Estatuto da Cidade. De acordo com Sousa (2014), na base do processo de intervenção inexistia um plano estratégico para a área de interesse especial, tampouco limites dos índices urbanísticos, como a restrição de altura das edificações. Para Mendonça (2015), em relação à qualidade da proposta, as rupturas na paisagem demonstram a falta de integração ao contexto histórico. Acrescenta-se a isto a existência de uma lacuna relacionada ao desenvolvimento sociocultural das camadas populares. Tais aspectos, dentre outros, impulsionaram a participação democrática da população no processo de tomada de decisão junto com poder público para as intervenções na área. A pesquisa tratou de identificar estratégias sustentáveis que podem ser utilizadas no processo de requalificação de vazios urbanos em orlas portuárias, frente aos interesses de toda a sociedade. Para tanto, buscou compreender as diretrizes e instrumentos do Estatuto da Cidade, assim como o conceito de marketing urbano, enquanto estratégia para reaproveitamento de espaços residuais e atração de novas atividades econômicas. Tomados como estudo de caso, comparou-se os projetos Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, e Cais José Estelita, no Recife, buscando relacionar as alternativas pensadas para essas orlas portuárias e os instrumentos jurídicos, políticos e tributários do Estatuto. Diante do que se expôs, é possível considerar que, em ambas as propostas, as principais intervenções estão relacionadas a investimentos na infraestrutura, na acessibilidade e mobilidade urbana, na preservação do patrimônio histórico e cultural, no estímulo a densificação pela mescla de usos, na proposta de espaços verdes e no incentivo à construção de novas edificações sob a ótica da sustentabilidade. Tais diretrizes de intervenção acontecem por meio de parcerias entre agentes públicos e privados, visando melhorar o marketing urbano e atrair novos investidores, moradores e turistas para as regiões, devolvendo também a comunidade. Contudo, observa-se que as parcerias entre agentes públicos e privados e as estratégias vinculadas ao marketing urbano não são suficientes para obter-se êxito na requalificação das orlas portuárias brasileiras. O caso do Porto Maravilha, embora criticado quanto ao incentivo ao mercado imobiliário, também merece reconhecimento pelas melhorias alcançadas no espaço urbano. A promoção de um desenho urbano sustentável, voltado à vitalidade, à densidade e às necessidades da coletividade traz marcas positivas para a região. Além disso, os investimentos propostos para o patrimônio cultural material, expresso nas edificações, e imaterial, isto é, atrelado às manifestações ligadas a cultura brasileira, fortemente enraizadas na localidade, assim como às propostas de habitação social e emprego para comunidades de baixa renda, facilitam a aceitação do projeto pela comunidade local, pois demonstram atender aos interesses de diversas classes sociais. É interessante ressaltar também que tais iniciativas foram viabilizadas a partir da aplicação dos instrumentos assegurados no Estatuto da Cidade e pela gestão e o planejamento urbano, que tratou de desenvolver um plano urbanístico do setor a ser intervindo para, posteriormente, permitir o envolvimento de investidores na região. Diferentemente desse caso, o redesenho do Cais Estelita demonstra situação inversa, pois apesar de possuir estratégias similares relacionadas ao marketing urbano, sua não aceitação por parte da população acontece, dentre outros aspectos, devido à falta de propostas atreladas à coletividade democrática. No Recife, a requalificação da orla portuária adquiriu diversos entraves, uma vez que a limitada utilização dos instrumentos do Estatuto da Cidade e a proposta de intervenção urbana remetem parcialmente à promoção do desenvolvimento sustentável de comunidades desfavorecidas, segregando-as. Assim sendo, parcerias público-privadas, instrumentos de desenvolvimento da cidade e investimentos no marketing urbano podem potencializar significativamente a requalificação de áreas residuais, desde que haja um planejamento urbano setorial integrado aos interesses e expectativas tanto dos investidores quanto, principalmente, de toda a população. Arantes, O.B.F. (2000) “Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas”, in O.B.F. Arantes, C.B. Vainer, E. Maricato (Org.), A cidade do pensamento único: desmanchando consensos, Petrópolis: Vozes, pp. 11-74. [ Links ] Brasil (1988) Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 02 out. 2017. 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ABSTRACT