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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.36 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.jun2018.036.art01 

ARTIGO ORIGINAL

De São Paulo de Luanda a São Paulo de Macau: Fundação e consolidação de duas cidades quinhentistas no Ultramar Português

From São Paulo de Luanda to São Paulo de Macau: Foundation and consolidation of two Portuguese cities in the Portuguese overseas territories

José Luís SaldanhaI

[I]DINÂMIA'CET-IUL, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. e-mail: jose.saldanha@iscte-iul.pt

 


RESUMO

O presente artigo resulta de um trabalho de investigação que visou, especificamente, a contextualização histórica das cidades de Luanda e Macau, dentro do quadro mais lato de um Projecto de Investigação de cariz multidisciplinar financiado pela FCT, “Habitações para o maior número: Lisboa, Luanda, Macau”, Refª PTDC/ATP-AQI/3707/2012.
Conformou-se, todavia, matéria científica autónoma, da qual resulta o presente texto. O levantamento a anteriori das circunstâncias históricas, políticas e territoriais de ambas essas urbes, onde os portugueses se estabeleceram no final do século XVI, será útil e pertinente para o entendimento - individual ou cruzado - dessas metrópoles contemporâneas, em particular perante o quadro radical de alterações sofridas pelas mesmas ao longo do último centénio.
Mereceram especial atenção as obras de Arquitectura Religiosa, Militar e Civil mais significativas de cada cidade - que localizamos sobre bases iconográficas produzidas entre o primeiro quartel do século XVII e o derradeiro quartel do século XIX - pela importância que possuíam no quotidiano e no governo dessas urbes.

Palavras-chave: Luanda, Macau, Arquitectura Militar, Morfologia Urbana, Império Colonial Português.


ABSTRACT

This paper draws from research work specifically aimed at historically contextualizing the cities of Luanda and Macau, inside the broader frame of a multidisciplinary, FCT-funded, Research Project named “Habitações para o maior número: Lisboa, Luanda, Macau”, refª PTDC/ATP-AQI/3707/2012.
Autonomous scientific matter was produced, nonetheless, from which this article yields. The a anteriori reconnaissance of the historical, political and territorial circumstances of both towns where Portuguese settled in the late 16th Century, may be useful and pertinent for the - individual or crossed - penetration of those two contemporary metropoli, particularly regarding the radical set of changes they underwent across the last century.
Special attention was paid to the most important Religious, Military and Civil edifices in each settlement – which we have pinpointed on mapping bases from the first quarter of the 17th Century and the final quarter in the 19th Century - owing to the importance they held in those towns' everyday life and governance.

Keywords: Luanda, Macau, Military Architecture, Urban Morphology, Portuguese Colonial Empire.


 

I. Introdução

Integradas no amplo arco de fortalezas, feitorias e cidades que o Império Colonial Português articulou em todos os continentes do planeta, as cidades de Luanda e Macau possuem diversos aspectos em comum. Desde logo, verifica-se que os portugueses se estabeleceram na cidade do sudeste asiático em 1554, curiosamente - tendo em conta as distâncias respectivas a Lisboa - duas décadas antes de o fazerem, em 1575, em Luanda. O posicionamento estratégico relativo de ambas, dentro da rede urbana ultramarina lançada pelos portugueses, adquire maior significado quando notamos que Luanda se encontra em posição equidistante, por mar, entre Lisboa e a Ilha de Moçambique, ou que a cidade de Lourenço Marques (actual Maputo) se situava a meio-caminho entre Lisboa e Macau.

Em 1576, o Vaticano erigiu em Macau a diocese mais distante de Roma, valendo-lhe o epíteto de Roma do Extremo Oriente, por analogia com o cognome de Goa: a Roma do Oriente. Vinte anos após essa data, é erigida a diocese de Angola e Congo em 1596, a partir daquela de São Tomé, sendo sedeada na mais antiga catedral da África Subsariana - que havia sido construída em S. Salvador do Congo em 1549 – até à transferência do assento episcopal para Luanda, em 1716. Uma curiosidade entre as duas cidades é que cada qual tem, justamente, uma Praia do Bispo.

 

 

Entre outras peculiaridades próprias do urbanismo português, como a Misericórdia e seu hospital, o pelourinho, a alfândega, os paços do concelho, a catedral ou o colégio dos jesuítas, assinala-se que Luanda e Macau foram alvo de investidas holandesas, sensivelmente no mesmo período, as quais iriam produzir consequências na sua organização urbana. Foram abordadas em especial profundidade as obras de Arquitectura Militar, que formaram tópico de fundo para o presente artigo, em consequência do modo como determinaram o desenvolvimento e morfologia urbana de ambas as cidade estudadas. No caso de Macau, foram particularmente significativas na configuração de realidades urbanas intra e extra muros, respectivamente habitados pela comunidade europeizada e pela chinesa, que ao longo dos séculos figuraram recorrentemente no debate entre o governo da cidade e os mandarins de Cantão.

Em Luanda, a Arquitectura Militar é representada de modo mais assinalável com as fortalezas construídas em pontos estratégicos para a defesa da cidade e sua baía, embora o perímetro militar desta urbe fosse mais precariamente executado e de menor expressão que em Macau. Ainda assim, sublinha-se em termos territoriais - do modo que a cópia litográfica (realizada sobre desenho de 1816 da autoria de A.L.P da Cunha) denominada Prespectiva da Cidade de S. Paulo de Loanda no Reino de Angola ilustra - a existência de uma Linha de Guaritas, que circundão a Cidade para evitar roubos, Estabelecidas pelo Capitão Gªl. Luis da Motta Feo, que, do lado das colinas que envolviam a cidade, estabeleciam em conjunto com o caminho militar que as ligava um perímetro físico delimitador de um dentro e um fora do território urbano.

 

II. A Presença Portuguesa no Congo e no N'dongo

As navegações portuguesas ao longo da costa ocidental subsaariana do continente africano progrediram com notável velocidade ao longo da segunda metade do século XV. Durante esse período, destacam-se a descoberta do arquipélago de Cabo Verde por João Gomes em 1456, ou o estabelecimento no Gana, em 1482, da feitoria de São Jorge da Mina (a mais antiga fortaleza realizada por europeus nestas paragens). De resto, na região “das Guinés” persistem diversos topónimos de origem portuguesa, como as repúblicas de Serra Leoa (de acordo com nome atribuído por Pêro de Sintra, em 1462) e dos Camarões; as cidades de Porto-Novo (no Benim) ou Lagos (Nigéria); os rios dos Forçados e dos Escravos (nesse último país).

Regista-se com especial interesse a chegada de Diogo Cão à foz do Rio Zaire/Congo, por volta de 1485. O navegador assenta padrões de descobrimento em vários locais, gravando o seu nome e o de alguns companheiros na célebre Pedra de Ielala (Radulet, 1994:193), mais de cem quilómetros a montante da foz do rio que separa a República de Angola da República Democrática do Congo. Esta última usou, entre 1971 e 1997, o nome de República do Zaire, o que merece referência, dado que esse outro nome do mais caudaloso rio africano advém da pronúncia dada pelos portugueses à expressão indígena Nzere, que significa “traga-rios”.

O Reino do Congo tinha então por capital a cidade de Mbanza Kongo - São Salvador do Congo pelos portugueses (designação que manteve até 1975) – na província angolana do Zaire. Nessa cidade, os missionários portugueses construíram em 1549 a mais antiga catedral da África Subsariana, que seria sede da Diocese de Angola e Congo até 1716.

Durante o decénio que sucede ao contacto de Diogo Cão com a desembocadura do Zaire, Duarte Pacheco Pereira reconhece o litoral entre a foz desse rio e aquela do Rio Dande (Mello, 1971: 597), que desagua no oceano meia centena de quilómetros a Norte do local onde virá a ser a cidade de Luanda.

No primeiro quartel do século XVI “os navios portugueses passaram a demandar os portos da foz do Ambriz, do Dande, do Cuanza e outros mais para Sul para mercadejar e embarcar escravos, que eram reunidos na Ilha de Luanda” (Mello, Ibid.). Interessa referir que a fronteira entre o Reino do N'Dongo (ou N'Gola) e o poderoso Reino do Congo se achava entre a foz do Loge e a foz do Dande (logo acima de onde surgirá a moderna capital angolana):

Vários Estados e tribos situados a oriente e a sul [das fronteiras do Congo] reconheciam intermitentemente a sua soberania através do pagamento ocasional de tributo e do envio de presentes ao Mani, chefe ou rei titular, em Mbanza Kongo. O mais meridional destes bastante ténues tributários era o Ngola, rei ou chefe do N'dongo, situado entre o Rio Dande e o Cuanza. […] A moeda mais valiosa era um determinado tipo de conchas chamadas nzimbu, que se encontravam apenas na ilha de Luanda, directamente administrada por um representante real (Boxer, 1992: 106-107).

Quase cem anos depois das passagens de Diogo Cão e Duarte Pacheco Pereira pela região, parte de Lisboa em Outubro de 1574 (Nascimento, 1994: 806-807) uma frota de sete navios e 700 homens sob comando de Paulo Dias de Novais (?-1589) que, de acordo com carta de doação de D. Sebastião de 6 de Setembro de 1571, leva patente de capitão-general, conquistador e governador dos Reinos de Angola e Congo. Este oficial, que já visitara anteriormente a região, instala-se em Janeiro de 1575 na Ilha de Luanda.

[N]o ano seguinte passa à terra firme fronteira e ali começa a erguer a fortaleza de São Miguel, em volta da qual funda a vila de São Paulo de Luanda. Passados poucos anos inicia a sua marcha para o interior e, Cuanza acima, procura alcançar as celebradas minas de prata de Cambambe, chegando em 1582 a Massangano, na margem direita do Cuanza, onde constrói uma fortaleza e funda uma povoação [onde virá a falecer] (Mello, 1971: 598).

 

III. A Cidade de São Paulo da Assunção de Luanda

Decorridos 20 anos da fundação do povoado por Dias de Novais, “achava-se a povoação ainda circunscrita ao recinto da fortaleza de S. Miguel. Na 1ª metade do século XVII, a vila adquiria os traços que hoje conserva, bordando as águas da baía e estendendo-se pelos morros fronteiros” (Mello, 1971: 598). Elevada em 1606 a cidade, Luanda é tomada pelos holandeses em 1641, que a conservam até 1648 quando da sua reconquista por Salvador Correia de Sá. Nesse intervalo temporal, ficou Luanda muito arruinada, tendo havido que proceder nela a numerosas obras novas e de restauro, sendo então renomeada Cidade de São Paulo da Assunção de Luanda.

 

 

Implantou-se a capital angolana desde cedo sobre um binómio cidade baixa/cidade alta, cujo diferencial varia entre quarenta a oitenta metros. Na cidade alta localizava-se a maioria dos edifícios administrativos e boa parte dos religiosos, com destaque para a Misericórdia e a já referida fortaleza de S. Miguel, edificada sobre o morro de São Paulo sobranceiro à Baía de Luanda e à Ilha do mesmo nome, e que seria muito melhorada no tempo de Francisco de Vasconcelos da Cunha, por 1638 (P. Dias, 1999: 125). Da sua porta de armas seguia a calçada de S. Miguel, arruamento que, pelo festo, mais adiante assumia o topónimo de Rua Diogo Cão/Rua da Imprensa Nacional (actual Rua 17 de Setembro), conduzindo ao Hospital, como se reconhece no Esboço da Planta da Cidade de S. Paulo de Loanda (figura 3).

 

 

Junto ao Hospital dos Capuchinhos, cruzava com a Rua Governador Álvaro Ferreira, que descia sensivelmente até ao meio da frente portuária da cidade baixa, e modernamente possui o nome de Avenida do 1º Congresso do MPLA (que na Prespectiva da Cidade de S. Paulo de Loanda no Reino de Angola desenhada em 1816, figura com o nome de “Calçada Nova”). Daquele ponto de encontro junto ao Hospital seguia uma estrada rural para a Maianga, e eventualmente para o Futungo de Belas e Samba. De acordo com o dicionário de português de 2014 da Porto Editora, a expressão maianga deriva do quimbundo “mazanga”, significando “lagoa” e, por extensão, nascente ou cacimba (poço) - que na verdade se podem reconhecer perfeitamente na Prespectiva.

Na parte baixa da cidade destacavam-se o Pelourinho, a Alfândega, a Igreja do Carmo e a Igreja de Nª Srª dos Remédios, que desde 1940 é sede da diocese única de Angola e Congo (depois alçada a arquidiocese) que, em 1716, vira deslocado o seu assento de São Salvador do Congo para São Paulo de Luanda.

 

 

Caracteriza-se de modo sucinto a obra de fortificação que, para além da Fortaleza de S. Miguel, protegia a cidade e seu porto:

Na segunda metade do século de Seiscentos, Luanda e seus arrabaldes ficavam protegidos por um conjunto de trincheiras e fortins de taipa. Do lado da praia, esta linha defensiva estendia-se desde a Ermida de Nossa Senhora da Nazaré, situada ao lado da Fortaleza da Guia, até à base do morro de São Paulo […].

A fortaleza de São Francisco do Penedo teve origem num pequeno forte construído sobre um rochedo ou ilhota, um penedo, no fundo, do qual herdou a sua designação mais comum. Foi construído, ao que parece por iniciativa do governador Pedro César de Meneses, para defender a barra de Luanda, por 1639, mas, logo de seguida, os Holandeses destruíram-na […]. [S]ó com D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, em 1766 […] é que o forte que chegou aos nossos dias foi reconstruído, com duas baterias a níveis diferentes […] (P. Dias, 1999: 124-125).

A fortaleza da Guia já não existe, embora subsista a Igreja da Nazaré, que resultou do alargamento da ermida original. A fortaleza do Penedo encontra-se inteiramente envolvida pelos aterros portuários que, sobretudo durante o último século, reclamaram terrenos à baía de Luanda.

Do lado oriental da baía foi construída a fortaleza de São Pedro da Barra, cinco quilómetros a nordeste da fortaleza do Penedo. Sensivelmente alinhada com a extremidade da ilha/restinga de Luanda, foi construída na sequência do ataque holandês de 1641 que, nesse local, havia estabelecido uma bateria. Foi sucessivamente modificada até que o governador D. António Álvares da Cunha (1753-1758) a refez desde os alicerces, pouco ficando da original além do sítio e da invocação (P. Dias: 126).

A defesa da cidade do lado de terra era assegurada pelas baterias de Santo António e de São Francisco da Maianga e pelos Redutos do Sítio do Bem-Bem, de Santa Cruz das Ingombotas e de Santa Maria Madalena. A este conjunto, associava-se por fim o Reduto de São José, que Ilídio do Amaral refere na sua monografia sobre a cidade de Luanda, integrando a Igreja de São José (hoje profundamente alterada relativamente ao que a litografia baseada em desenho de 1816 evidencia).

 

IV. A Chegada dos Portugueses ao delta do Rio das Pérolas

There can hardly be a place in the world, which has been so much shaped and re-shaped over the centuries by commercial activities and the interaction of the great European and Chinese cultures, like this old meeting place of Macau (Cremer, 1991: 2).

A presença de navegadores portugueses no delta do Rio das Pérolas, a data em que a fixação na península de Macau lhes terá sido consentida, a fundação da cidade que leva o mesmo nome, e ainda os benefícios bilaterais que resultariam dessa presença, são objecto de alguma controvérsia na qual o mito marca sempre presença. Um documento chave para os efeitos é a carta que Leonel de Sousa envia de Cochim ao Infante D. Luís (o influente irmão de D. João III), a 15 de Janeiro de 1556, na qual informa o príncipe de que havia concluído um «assentamento oral» com o haidao (comandante encarregue da defesa costeira do Cantão) Wang Bo – sublinhando que “não fiz com ele pauta nem assento pelo não levar por Regimento” (Cremer: xxii-xxiii). Esse acordo, verbal portanto, permitiria o estabelecimento dos portugueses na península, em troca do pagamento de direitos comerciais no valor de uma décima dos bens transaccionados neste entreposto. Sousa havia comparecido ao encontro com 17 navios, o que poderia ter transmitido a Wang Bo a expectativa de contar com aliados no combate aos piratas (wokou) que assolavam as povoações litorâneas e a navegação na região. Na verdade, em certos momentos da história, os piratas criaram coligações muito poderosas. A capitã Ching Shih (a Viúva Ching), por exemplo, conquistou reputação e autoridade na primeira metade do século XIX, dispondo de forças que infestaram o litoral do Cantão, cuja celebridade justificou inclusão na História Universal da Infâmia, de Jorge Luís Borges:

Então os seiscentos juncos de guerra e os quarenta mil piratas vitoriosos da viúva soberba subiram pelas bocas do Sequião, multiplicando incêndios e festas medonhas e órfãos a bombordo e a estibordo. […] Cento e vinte mulheres que solicitaram o confuso amparo dos juncais e arrozais vizinhos foram denunciadas pelo incontível choro de um menino e vendidas depois em Macau.

 

 

O delta do Rio “do Oeste” (ou Rio Xi, Xi-Jiang, ou Rio Sequião) ocorre 10 km a Oeste de Macau, do lado Poente da Ilha da Lapa (Ilha Patera, ou Wanzai); da Ilha de D. João (Ilha Macarira ou Xiao Hengqin); e da Ilha Montanha (Vong-Cam ou Da Hengqin). Estas ilhas, cuja posse no começo do século XX era ainda reivindicada pelos portugueses, foram por si pontualmente ocupadas, tendo edificado, por exemplo, uma leprosaria na Ilha de D. João.

A condição endémica da pirataria – que se prolongou até ao começo do século XX – é testemunhada em numerosas fontes, de que consultamos textos do padre jesuíta Benjamim Videira Pires (1991: 10; 15), de Álvaro de Melo Machado (1913; 1997: 136-141) e C. Montalto de Jesus (1926; 1990: 39-45, 172-177, 260-270). Alinhados em discurso colonial de ênfase patriótico, apresentam os portugueses como protectores das povoações e da navegação locais, compilando os seus recontros contra os piratas chineses, de entre os quais se destaca, em 1809, a Batalha da Boca do Tigre, contra as forças do pirata Cam Pau Sai (ou Quan Apon Chay) que - por determinação de D. João VI do ano seguinte - valerá à Câmara de Macau o título de “Leal” Senado, em reconhecimento do seu contributo na protecção da soberania portuguesa na cidade.

A má-fama de Macau, originada no problema dos piratas, na prática de contrabando, no comércio do ópio e no crime organizado das «tríades» chinesas, vê-se acrescentada por um sistema de governo de grande autonomia, cujas vicissitudes são descritas pelo frade arrábido José de Jesus Maria, que esteve em Macau de 1742 a 1745:

No governo político, e do economico, na qualidade, civilidade, costumes, acçoens, tratamento, e genio das gentes de Macao me resolvo a não dizer o que no presente tempo se observa, por vergonha minha, e credito da Nação; porque havendo nesta cidade algumas pessoas (mas poucas) que cuidão da sua reputação, com honra, verdade e brio, pelas mais se acha todo Macau inficionado, sendo sem conto os enredos, falçidades, testemunhos, odios, vinganças; e o peior hé que arguindo alguns, me responderão que ninguém podia viver em Macao sem mintiras, enganos, trapaças e carambolas (apud Durão, 1996: 18).

O cenário era agravado com os jogo-de-azar, que o governo da cidade passou a licenciar em 1847 (a ponto de no primeiro quartel do século XX já se lhe chamar a Monte-Carlo da China), com a legalização do tradicional fan-tan. Esse conjunto de vícios poderá justificar o diálogo em “A Dama de Xangai” - realizado por Orson Welles e lançado em 1947 pela Columbia Pictures - entre Elsa “Rosalie” Bannister (interpretada por Rita Hayworth) e Michael O'Hara (representado por Welles):

MIKE - Where does the princess come from?

ELSA - […] You never heard of the place she comes from: […] Zhifu.

MIKE - It's on the China Coast, Zhifu. It's the second wickedest city in the world!

- What's the first?

- Macau. Wouldn't you say so?

- I would. I worked there.

- You worked in Macau???!!!...

 

V. A Consolidação da Cidade

Conhecida como Porto do Nome de Deus pelo menos desde 1564 (Pires, 1991: 11), Macau é renomeada Cidade do Porto do Nome de Deus de Macau na China na bula Super Specula Militantis Ecclesiae de 23 de Janeiro de 1576 em que o Papa Gregório XIII a erige em diocese. Torna-se então o baluarte avançado da religião cristã nestas paragens, o que lhe valeu o cognome de Roma do Extremo Oriente e Mãe das Missões da Ásia (Teixeira, 1991: 43). A sua jurisdição religiosa abrangia a China, Tartária, Tonquim, Japão, Coreia e ilhas adjacentes, embora essa incrível extensão fosse progressivamente reduzida com a criação da diocese de Funai (Oita) no Japão, em 1588, com o desmembramento da diocese de Tonquim (1658), e com o estabelecimento das dioceses de Pequim e Nanquim pelo Papa Alexandre VIII, em 1690.

Particularmente relevante foi a obra da Companhia de Jesus, que se estabeleceu na cidade em 1563-1565. A sua residência transformou-se no Colégio de São Paulo, anexo ao qual os Jesuítas construíram a grande Igreja da Madre de Deus (vulgo “de São Paulo”) em 1602-1603. Tudo foi devorado por um incêndio a 26 de Janeiro de 1835 (Pires, 1971: 860-861), de que restou somente a magnífica fachada em granito do templo. Inscreve-se, juntamente com a Fortaleza do Monte, na relação dos monumentos históricos do Centro Histórico de Macau incluída na Lista do Património Mundial da Humanidade da UNESCO.

 

 

O posicionamento estratégico da cidade permitiu a Macau prosperar comercial e financeiramente, sendo local de passagem da navegação nos eixos Goa-Malaca-Macau, Macau-Manila, Macau-Java (até Timor), ou na rota Cantão-Macau-Nagasaki – cidade japonesa onde os portugueses se estabelecem em 1569, por autorização do Daimio de Omira (Cremer, 1991: 33-35). Deste modo, Macau assumiria um papel chave no Império Português, tornando-se o mais rico entreposto do mundo. Tratando-se da cidade portuguesa mais distante da Europa, não surpreende que desde a fundação gozasse de assinalável autonomia de governação:

O governo de Macau foi primeiro investido no capitão-mor, ou comodoro, da frota comercial que periodicamente lá aportava a caminho do Japão ou à sua volta, e num conselho composto pelo capitão-de-terra, o juiz e os quatro principais mercadores nomeados pela comunidade. O facto de a maioria deste conselho ser representado por mercadores é, em si, sugestivo da superior influência comercial, ante a qual as considerações políticas se tornavam insignificantes. (Jesus, 1926; 1990: 50).

Em 1585, com parecer do bispo e do capitão-mor, os moradores fundaram o Senado da Câmara, que passou a administrar a cidade, excepto nos assuntos militares (da competência do capitão-geral) e estrangeiros (nos quais o capitão-geral tinha de ser ouvido) (Pires, 1971: 857), correspondendo aos moldes de grande independência, até mesmo face ao vice-rei da Índia, em que a cidade se havia fundado e prosperado. Esse modelo de governação reconhece-se na descrição, publicada em Amesterdão em 1646, que Marco d'Avalo faz do governo da cidade:

At the foundation and construction of this city, it was governed in the manner of a republic by the oldest councilors, without any general or governor, because this place had not been won by force of arms but only by the permission of the Chinese mandarins (apud Willis, 2002: 94).

Os colonos portugueses e seus descendentes miscigenados (os macaenses) procuravam subtrair-se quanto possível ao controlo externo, conforme escreveu o governador-geral holandês da Batávia, António van Diemen, aos seus superiores em Amesterdão (ainda que sem se circunscrever especificamente a Macau), em 1642: “A maioria dos portugueses na Índia (Ásia) consideram esta região o seu país natal. Já não pensam mais em Portugal. Comerciam pouco ou nada com Portugal, e contentam-se com o comércio entre os vários portos da Ásia, exactamente como se fossem dali e não tivessem nenhum outro país” (apud Boxer, 1992: 127). Esta caracterização surge, aliás, divertidamente retratada na personagem ficcional de Yanez de Gomera: o inseparável companheiro português (que nas edições portuguesas figura como Gastão de Sequeira) do pirata Sandokan, na série novelesca de Emílio Salgari que tinha por palco de acção o mar da China Meridional até ao estreito de Malaca e Mar de Java.

 

VI. Macau fora-de-muros

A cidade de Macau fixou-se na parte central da península, confinada a Oeste pelo porto interior (braço de água que a separa da Ilha da Lapa, que lhe é fronteira) e estendendo a urbanização à Praia Grande, que interrompia a Sudeste o arco de colinas graníticas da face exterior da península (directamente exposta ao delta do Rio das Pérolas). A Norte ficavam terrenos de cultivo e várzeas extramuros; a Sul as colinas e o extremo meridional do território (Maneiras, 1996: 11).

A ligação do território ao continente era assegurada através de um istmo arenoso cuja largura se cifrava em “apenas uns escassos 30 metros, e cuja cota média era tão baixa que frequentemente durante as marés vivas se encontrava debaixo de água - por esta razão Macau era designado às vezes como sendo uma ilha” (Graça, 1998: 68). A meio do istmo, foi em 1573 erguida pelos chineses a chamada “Porta do Cerco”, ou “do Limite” (Teixeira, 1971: 857), através da qual, de acordo com d'Avalo, todos os víveres, mercadoria ou semelhantes artigos, eram sujeitos a pagamento de imposto ao Imperador da China, acrescentando: “This aplies only to the Chinese, as the Portuguese are never allowed to pass through” (Willis, 2002: 81). Istmo e Porta figuram também no diário de Peter Mundy, que chegou a Macau em 5 de Julho de 1637 numa frota de cinco navios ingleses:

About three-quarters of a mile further is a very narrow neck of land, which joins that part of the Island whereon Macau stands with the rest. At this place is a wall athwart, reaching from sea to sea, about half a flight-shot in all, in the said wall is a gate or passage with China watchmen, through which no Portugal is allowed to pass without special licence (apud Willis, 2002: 84).

 

 

O controlo de acesso é igualmente referido por José de Jesus Maria:

[N]ão so padece o povo pelo mao governo nos que tão mal o governa, mas pellos excessos dos chinas a que está subordinado e tão sogeito que em havendo qualquer accidente, ou opposição as suas rezolluçoens, determinam os Mandarins se fexem boticas (isto he todas as loges em que se vende o comestivel), e também a porta do Cerco por donde os generos entrão, deixando a Macao em cerco, athé que a fome os preciza á satizfação dos seus desígnios (apud Durão, 1996: 18).

O final do século XVI e a primeira metade do século XVII produzem alterações significativas em Macau. Desde logo a fortificação da cidade, que vinha sendo proibida pelos chineses no estabelecimento dos portugueses em Macau (Teixeira, 1971: 857), tornou-se imperativa por força da chegada dos holandeses, causadora aliás de preocupação patenteada em carta régia de 17 de Março de 1598 enviada ao vice-rei, na qual se ordena que se acuda “a esta necessidade tão presente e de tanta importância como é o castigo dos ditos Holandeses” (Carita, 1999: 19). Mais tarde, Filipe II solicita aos vice-reis que enviem para Portugal descrições e representações das cidades e fortalezas onde os portugueses tinham os seus interesses, de que são exemplo aquela que Manuel Godinho de Herédia preparou em 1610 (que abordaremos em mais detalhe) ou o Livro das Plantas de todas as cidades e fortalezas da Índia, realizado pelo guarda-mor da Torre do Tombo de Goa, António Bocarro, com ilustrações da autoria do capitão Pedro Barreto de Resende, secretário do vice-rei da Índia, D. Miguel de Noronha, e datável de 1635 (Carita, Id.: 23).

A primeira muralha provisória de Macau foi realizada em 1606 (Teixeira: 1971: 857), achando-se as obras mais definitivas, incluindo fortes, baluartes e fortins, por concluir integralmente quando os holandeses realizam o ataque à cidade (repelido com êxito) de 24 de Junho de 1622. O italiano d'Avalo descreve deste modo as consequências do episódio (apud Willis, 2002: 94):

Owing to fears of further troublesome attacks, the viceroy in Goa received letters and messengers asking him to send a governor, as well as three hundred soldiers, to be paid for by the inhabitants and the city. The viceroy grasped that this was an important opportunity and duly dispatched (…) Dom Francisco de Mascarenhas, a nobleman of the royal household.

O primeiro capitão-geral (que equivalia ao lugar de governador) da cidade, D. Francisco de Mascarenhas, é empossado a 17 de Julho de 1623 por nomeação directa do Rei, para prover à organização das forças militares, bem como da segurança da fortificação generalizada da cidade, que durante muitos anos as autoridades chinesas não haviam autorizado, mas seriam agora prosseguidas em melhor ritmo (Jesus, 1926; 1990: 88). Porém, a sua presença e desempenho do cargo não são bem recebidos pelos colonos, cujo Senado procurava ainda sobrepor-se a tudo: mesmo aos decretos reais e do vice-rei sempre que possível (Pires, 1971: 857) - o que a curiosa Descrição da Cidade do Nome de Deus de 1635, da autoria de António Bocarro, confirma:

Tem além disto esta cidade muitos marinheiros e pilotos e mestres portugueses, os mais deles casados no reino, outros solteiros que andam nas viagens de Japão, Manila, Solor, Macassa, Cochinchina, destes mais de cento e cinquenta […], que por nenhum modo querem passar a Goa por não lançarem mão deles ou as justiças por algum crime, ou os vice-reis para serviço de Sua Majestade, e assim também muitos mercadores solteiros muito ricos em que mulitam [sic] as mesmas razões.

Observamos com mais demora a fortificação de Macau, de acordo com a ilustração constante do Lyvro de Plantaforma das Fortalezas da Índia, “obra colectiva (…) efectuada com base num rosto de Manuel Godinho de Herédia e de um conjunto de obras suas” (Carita, 1999: 29), que se encontra conservado na Biblioteca da Fortaleza de São Julião da Barra. O mestiço Herédia é, desde logo, uma bela metáfora do Império Marítimo Português, tendo nascido em Malaca em 1563, filho de mãe malaia e pai português, e falecido em Goa em 1623 (Idem: 10). Ao núcleo de desenhos de sua produção, vê-se o códice que leva o seu nome acrescentado de desenhos de autoria alheia e posterior à sua vida. Entre estes, conta-se o de Macau, de autoria ignota mas copiado da representação de Pedro Barreto de Resende (Ibid.: 28). A descrição da cidade, feita por Marco d'Avalo em 1646 (apud Willis, 2002: 81-83), realiza excelente complemento, sensivelmente no mesmo período temporal, daquilo que a planta revela:

The city is surrounded by strong walls and ramparts and has three hills with a fort on the top of each one, forming a triangle. The strongest and most prominent of these castles is named São Paulo.

[…] The second fort is named Nossa Senhora da Penha de França and holds inside it a hermitage of the same name. It possesses six light cannon that fire iron shot of six to eight pounds.

The third fort is named Nossa Senhora da Guia and stands outside the town. It offers no advantage except that this hill is higher than the others an overlooks them, consequently, it is fortified, equipped and protected with four to five cannon. It too has a hermitage within its walls.

[…] Moreover, the city has four bulwarks at low level, of which three are on the sea, or water side, and four on the land side. The first is named Santiago da Barra, and the ships pass by it.

[…] The second bulwark is named Nossa Senhora do Bom Parto, is located on the southwest, on the hill of Penha de França, and has eight bronze cannon.

(…) From here there begins a half moon [a Praia Grande] serving as a sea wall, with a redoubt in the middle [o reduto de São Pedro, provavelmente inexistente aquando da realização do desenho inserido na planta do códice de Herédia], on which three cannon can be mounted in time of need. On the outside a low wall runs to another bulwark called São Francisco. Between these two bulwarks lies a beach lined with fine elegant buildings […].

The third bulwark, São Francisco, bigger than that of Nossa Senhora do Bom Parto, is mounted with twelve cannon and has a redoubt that projects far out to sea. In 1632 a platform was made at the foot of this bulwark, and on it was sited a culverin [uma colubrina inserida na bateria baixa, que viria mais modernamente a receber o nome de “bateria 1º de Dezembro”], which shoots a forty-eight pound iron shot […].

The fourth bulwark lies on the land side and is named São João. Three cannon are sited here, close to the land gate called São Lázaro. The wall climbs the hill to the São Paulo fort and from there it proceeds to the Jesuit house.

 

 

A descrição do italiano é muito precisa, correspondendo adequadamente à representação do Lyvro de Godinho de Herédia. Esta última sugere uma ligação pedonal sobre um plano de muralha, talvez com parapeito de ambos os lados, entre o Forte de S. Tiago e um fortim com planta quadrangular, que poderia ser o reduto sobranceiro, na colina da Barra, que D'Avalo assinala. Montalto de Jesus (1926; 1990: 89) acrescenta que, do Forte do Bomparto (ou Bom Porto), se estendia “uma muralha que ultrapassava a elevação da Penha” - o que o desenho confirma também.

À narração de d'Avalo, acrescenta Montalto de Jesus que ao “longo da muralha que vai de São Francisco ao Monte havia dois redutos, o de São Jerónimo e o de São João, o último sobranceiro à histórica planura do sopé da Guia, chamado Campo da Vitória”. Esse reduto de São João guardava a Porta do Campo (ou de São Lázaro), correspondendo talvez ao “Baluarte da Muralha”. Anteriormente à visita do italiano, fora ainda construído pelos portugueses o Forte do Patane (ou da Palanchica) que “porém, foi demolido pelos Chineses, por estar voltado para a China, em 1625” (Pires, 1971: 858).

Toda esta obra de fortificação, realizada na primeira metade do século XVII, introduziu uma segregação física, mas também étnica, dentro da península, que passou assim a dividir-se numa Macau intra, e numa Macau extra-muros. Esta última estendia-se até à Porta do Cerco, em território historicamente eivado de ambiguidades e causador de atritos entre portugueses e chineses, porquanto a cidade ficou com duas fronteiras: uma funcional, política, estratégica e simbólica, e outra no cariz bélico, tangível, da estrutura amuralhada: “Fortresses and walls surrounded the Christian City, where the Portuguese lived. The Chinese City was located outside the fortified skirts of the Christian City and called Wang-Xia, Mong-Ha in the local dialect” (Marreiros: 102). Os portugueses consideravam que:

Macau é a península de Macau, onde se encontra a cidade; e dependências, as aguas, os portos, as ilhas (…). Emquanto que a China sustenta que: Macau é apenas uma parte da península do mesmo nome, limitada por uma antiga muralha que ainda se pode reconhecer; e dependências, a porção de terreno que vae d'essa muralha à porta do Cerco” (Machado, 1913; 1997: 51).

Além do bairro do Patane, junto ao porto interior, que integrava a paróquia de Santo António - centrada na igreja homónima construída em 1558 (antes, portanto, da realização da cerca militar) e situada imediatamente a Norte da muralha -, residiam também os chineses em São Lázaro (com igreja paroquial com o nome desse orago), que se desenvolvia para Norte, a partir da Porta do Campo e paralelamente à colina da Guia. Foi inicialmente o local da ermida de Nossa Senhora da Esperança, cuja construção se iniciou em 1557, derivando o topónimo da fundação de uma leprosaria anexa (mais tarde transferida para a Ilha de D. João, conforme assinalámos). Por fim, a comunidade chinesa habitava a colina de Mong-Ha (sobranceira ao istmo que ligava a Península ao continente) e sua envolvente.

Em momento crispado, no ano de 1787, resolveram “os portugueses expulsar a comunidade chinesa no Patane e expulsar os aldeãos de Mong-Ha, de modo a colocar a colónia na sua antiga forma” (Jesus, 1926; 1990: 148). Por outro lado, em 1818:

“[O] mandarim de Chinsan, cumprindo ordens do vice-rei de Cantão, requereu ao procurador [português] que expulsasse todos os cristãos instalados em São Lázaro e os mandasse retirar para dentro das muralhas da cidade, embora em São Lázaro estivesse a mais antiga igreja de Macau!” (Idem: 179).

Para os mandarins de Cantão, “Macau passava por ser um arrendamento meramente tolerado em solo chinês, que ia só até à demolida muralha antiga da cidade e já não até à Porta do Cerco, mais velha ainda, e erigida pelos próprios chineses como limite de fronteira” (Jesus, 1926; 1990: 291). Ponto de vista que as autoridades chinesas sublinharam em 1844, quando comunicaram ao governo de Macau que “a muralha da cidade serviria de fronteira” (Idem: 214).

Nas primeiras décadas do presente século a cidade alastrou-se a Norte, para fora dos muros – hoje desaparecidos – ocupando anteriores áreas planas de cultivo e várzeas. Nesta metade Norte da cidade o traçado urbano mostra já grandes eixos (avenidas) e vias transversais num sistema viário ortogonal, com a propriedade emparcelada em terrenos de configuração regular e de maior área que as incidências na cidade antiga (Maneiras, 1996: 11).

A ligação da Porta do Cerco ao centro da cidade descia então até à Porta do Campo, pelo lado oriental da colina de Mong-Ha, através da Estrada da Areia Preta, mas um acesso alternativo ao Patane consolidar-se-ia no começo do século XX, pelo lado Poente da península, através da Avenida de Artur Tamagnini Barbosa (sensivelmente paralela ao eixo do istmo Ferreira do Amaral) e em seguida pela Avenida do Almirante Lacerda (que corre a par do canídromo de Macau).

 

VI.Considerações Finais

Procedeu-se à investigação sobre um recorte do Império Colonial Português, em pontos bem diversos do planeta: a capital angolana de São Paulo de Luanda e a cosmópole asiática de Macau. Assinalámos afinidades históricas entre ambas, que hoje incluem ainda novos elementos de convergência, nas radicais alterações morfológicas que sofreram ao longo das últimas décadas por força do seu exponencial crescimento demográfico. Em Luanda, o aumento populacional foi correspondido com um urban sprawl que se dilatou para o hinterland da cidade, catalisado com a inauguração do aeroporto da cidade em 1954, quando “surgiram novas avenidas que iam atravessando estes terrenos ainda não habitados organizadamente de forma a ligá-lo ao centro da cidade” (Carvalho et alli, 2015: 24).

Em Macau, foi-se densificando o tecido urbano e ocupando sucessivamente os raros terrenos disponíveis que, na parte norte da península, subsistiam. Porém, ao contrário do que sucede com a capital angolana, a exiguidade do território disponível nesta Região Administrativa Especial da China obrigou à realização continuada de aterros sobre as águas do delta do Rio das Pérolas. Estes só começaram “a fazer-se sentir no século XVIII. Todavia, de 1912 a 2006, em menos de um século, a península de Macau, que é onde sempre se concentrou a população, cresceu de 3,49 km² para 8,50 km², ou seja, 234,55%.” (Marreiros, 2015: 7). A Ilha Verde, por exemplo, foi totalmente absorvida pela península em 1923, mas o primeiro grande aterro (sobre o qual seria construído o Hotel Lisboa em 1970), sobre o Porto Exterior, seria elaborado para a zona do Jardim de São Francisco e da Areia Preta, de acordo com Plano do Gabinete de Urbanização de Macau, seguido pelo Plano da Baía da Praia Grande, elaborado entre 1982 e 1994.

 

 

A realização destas pesadas operações de engenharia - ainda incentivadas pelo maior agrupamento de casinos no planeta que se constitui em Macau, em particular desde 2002, com o fim do monopólio da STDM sobre o jogo licenciado - prossegue até à actualidade, embora, de acordo com Manuel Graça Dias (M.G.Dias, 2011: 40), “[n]enhuma intencionalidade que não a estritamente utilitária e comercial comandou o desenho destes aterros; os hotéis e casinos nascem em espaços vazios entre auto-estradas aos volteios, em macro pinceladas frágeis num olhar próximo, disputando a atenção”.

Este conjunto de alterações ocorridas em ambas as cidades não produzem somente consequências físicas e visuais no território, como colocam em causa a sua identidade e legado, que no caso de Macau valeu mesmo em 2015 a inclusão do seu centro histórico na lista do Património Mundial da Humanidade da UNESCO, devido ao seu “Superior Valor Universal”. Em Luanda, a condição de encrave da seiscentista fortaleza do Penedo dentro do aterro portuário da cidade é cruel metáfora da vulnerabilidade do património paisagístico e arquitectónico, perante o avanço imparável do “progresso”.

Procurámos assim, com o presente artigo, resgatar pistas para o entendimento da morfologia urbana destas cidades, nos seus diferentes níveis, etapas e padrões de crescimento. Este reconhecimento permitiu levantar - sobre fontes iconográficas do século XVII e XIX - elos perdidos da história urbana destas metrópoles, em especial caracterizando os perímetros militares e administrativos dos seus territórios e da importância que os mesmos tiveram na existência dessas cidades. No caso da urbe chinesa, esse aspecto surge ainda reforçado pelo facto de que a “arquitectura portuguesa de Macau mais pura refere-se às construções militares, religiosas, institucionais e de alguma edificação residencial, tanto fidalga como plebeia” (Marreiros, 2015: 7) - mas também porque a maioria das fortificações referenciadas já não existem, por terem sido demolidas ao longo dos séculos.

 

 

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Received: 17-07-2017; Accepted: 08-01-2018.

 

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