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CIDADES, Comunidades e Territórios
versão On-line ISSN 2182-3030
CIDADES no.38 Lisboa jun. 2019
https://doi.org/10.15847/citiescommunitiesterritories.jun2019.038.ens04
ENSAIO
Participação cívica e políticas habitacionais: que desafios para Portugal?
Civic participation and housing policies: What challenges for Portugal?
Giovanni AllegrettiI; Nelson DiasII
[I]Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. e-mail: giovanni.allegretti@ces.uc.pt.
[II]Rede das Autarquias Participativas de Portugal, Portugal. e-mail: nelson@nelsondias.org.
Introdução
Vivemos numa época dominada por um “imperativo deliberativo” (Sintomer e Blondiaux, 2002) nas políticas públicas. A criação de novas áreas de participação cívica para envolver, com diferentes modalidades e graus de incidência, os cidadãos na tomada de decisões sobre assuntos de interesse público tem tido duas vertentes: uma instrumental, muito concreta, que procura alcançar maior eficácia e eficiência de políticas e projetos; e outra pedagógica, que visa aumentar o espírito cívico e a consciência coletiva sobre a elevada complexidade dos problemas, assim como identificar os prós e os contras das possíveis soluções. Contudo, vale a pena realçar que inclusive nos países onde as instituições públicas mais se empenharam na construção de espaços de participação o campo das políticas mais estruturantes para o território tem frequentemente ficado de fora dos dispositivos participativos, muitas vezes devido aos montantes reduzidos dos recursos postos em debate ou ao valor apenas consultivo atribuído a muitas dessas arenas deliberativas (Allegretti, 2013).
Mais especificamente, o campo da habitação tem entrado nos debates públicos quase exclusivamente de forma indireta, principalmente em relação à discussão sobre o espaço público envolvente às habitações. Conforme descrito pela metáfora de John Parkinson (2004), muitos dos processos participativos que operam no âmbito territorial tendem a incidir de forma limitada sobre a “pintura” e o “reboco” (aspetos adicionais e secundários das transformações territoriais) para fazer esquecer a “construção” e a “habitação” (as questões estruturais), ou seja, os domínios onde mais se poderia aplicar o saber político dos cidadãos (Sintomer, 2010). Estes últimos são espaços importantes de exercício do poder discricionário das instituições representativas, que têm manifestado resistência em abrir mão de áreas sobre as quais com frequência se concentram negociações público-privadas das quais podem resultar poucas vantagens para a cidade, garantindo pelo contrário favores para alguns administradores e ganhos adicionais fruto de conflitos de interesses ou de comportamentos políticos pouco claros (de Morais, 2013; Moreno, 2010).
Nesta perspetiva, o presente ensaio pretende contribuir para uma reflexão sobre o potencial dos processos participativos nas políticas de habitação no contexto português, com ênfase na Nova Geração de Políticas de Habitação. Antes disso, apresenta-se um conjunto de experiências internacionais que remetem para a relação entre participação, transformações territoriais e habitação, para mostrar como esta é uma área onde vários obstáculos se colocam ao envolvimento dos cidadãos.
Participação cívica e habitação: que experimentações internacionais?
Uma primeira questão crítica evidenciada nas experiências internacionais é que, onde se fala de um amplo leque de “visões” e “cenários” de gestão e transformação territorial (como as Agendas XXI ou o Planeamento Estratégico), a participação tem maioritariamente tomado a forma de “concertação” entre atores pré-organizados do território (entidades patronais, profissionais e corporativas, sindicatos, grandes empresas, ONG, instituições académicas, etc.), dificilmente chegando a atrair e envolver ativamente cidadãos “soltos” e pouco empenhados na vida cívica. Por esta razão, a participação no planeamento tem-se vindo a hibridizar com outros dispositivos participativos de cunho mais “imediatista” (como os orçamentos participativos, OP), no âmbito dos quais se podem obter efeitos mais rápidos e visíveis pela escala reduzida das intervenções e menor complexidade dos procedimentos de aprovação dos projetos [3].
Segundo: as formas de planeamento participativo aplicadas a temas territoriais têm frequentemente evidenciado uma tendência para tratar o tema do “habitar” de forma indireta, sem incidir claramente nas políticas habitacionais. A partir desta reflexão, não é por acaso que a participação cívica nas políticas habitacionais tem assumido formas mais “reativas” ou por “insurgência” (Blas e Ibarra, 2006), nomeadamente através de modalidades assentes na maior ou menor capacidade de auto-organização dos movimentos e da sua capacidade de exercer pressão sobre as instituições para a produção de soluções autónomas e de emergência, frente a problemas sociais urgentes. Neste sentido, podemos considerar os núcleos autoconstruídos, ao formarem-se como uma resposta às carências do estado social na oferta de habitação, como o exemplo mais explícito destas formas de participação. Especialmente no hemisfério Sul, o reconhecimento da autoconstrução como espaço de participação cívica tem resultado, a partir dos anos 1960, na incorporação, por muitos governos, das estratégias de regularização dos bairros como componente central da reconfiguração das políticas habitacionais e de desenvolvimento urbano [4].
Terceiro: no campo da habitação (e em particular da habitação social), a participação tende geralmente a ser valorizada sobretudo nas fases de diagnóstico como nos processos de “Community-Based Monitoring”, muito frequentes nas Filipinas e noutros países [5] ou na conceção de novos assentamentos para grupos-alvo específicos, como no caso do bairro Byker, em Newcastle-upon-Tyne (RU), realizado por Ralph Erskine no final dos anos 1960. Até no setor privado há exemplos deste último tipo de participação, especialmente no âmbito de intervenções integradas como bem ilustram os casos do Villaggio Matteotti de Terni e das residências universitárias de Urbino, ambas planeadas no final dos anos 1960 por Giancarlo De Carlo (Marini, 2015).
Por último, no setor habitacional a participação cívica parece ser valorizada principalmente em planos e projetos locais específicos, onde seja possível lê-la como um “envolvimento direto dos beneficiários” de um determinado empreendimento. Nomeadamente, ela assume um papel central no caso de intervenções em territórios já habitados, onde seria bem mais complexo intervir sem um diálogo com os moradores. Nesta perspetiva, a importância das abordagens participativas é particularmente evidente na regularização de aglomerados informais, inclusive os de escala urbana mais ampla (Raposo e Valente, 2010), como o célebre programa “Favela-Bairro”, no Rio de Janeiro, no início do milénio, ou nas operações integradas de recuperação de bairros residenciais de alojamento social, como nos bairros Laurentino 38, Tor Bella Monaca ou Corviale em Roma, na primeira década de 2000 (Allegretti, 2018).
Nalguns casos, mais raros, a participação pode contudo ser concebida como uma forma de codesign e coprodução das políticas públicas. Sobre o tema da coprodução habitacional, merecem destaque as experiências que têm vindo a promover soluções alternativas à produção de habitação, como o Co-housing ou os Community Land Trust. Nesse último âmbito vale a pena citar uma experiência-piloto promovida em Londres, na área de Mile End, para construir no ex-hospital de Saint Clemens o “East London community land trust” como forma de “compensação” para rebalancear os fenómenos de gentrificação e especulação imobiliária impulsionados pelas Olimpíadas de 2012 [6]. Merecem igualmente uma referência alguns programas sociais que, a partir de uma perspetiva de construção dos direitos - e sobretudo do “direito à cidade” - têm tratado questões habitacionais para grupo sociais específicos. É o caso da “Política Pública Distrital para el fenómeno de Habitabilidad de la Calle” [7], desenvolvida a partir de 2012 no âmbito do quadro programático da “Bogotá Humana”, na Colômbia, por vezes em conflito aberto com outras políticas urbanísticas de corte “higienizador” da mesma administração.
Os casos mais interessantes de políticas participativas no setor habitacional são os Orçamentos Participativos Habitação (OP), como o da cidade brasileira de Belo Horizonte, iniciado nos anos 1990. Estes processos visam discutir «os recursos orçamentais do município destinados à produção habitacional, para beneficiar famílias organizadas em núcleos do movimento de luta pela moradia» e definir «empreendimentos e benefícios para moradia social» [8], no quadro do desenvolvimento urbano. Esta experiência inspirou outras mais recentes, como o OP Habitação do Município do Paul, em Cabo Verde, o OP gender-responsive da Ilha de Penang na Malásia [9] e o OP da Toronto Community Housing (gerido pela segunda maior empresa municipal de habitação social da América do Norte) [10]. É também o caso do OP dos Inquilinos da LOGIPARC de Poitiers [11], em França, e dos dois processos similares em curso na capital francesa: o primeiro, realizado pela agência Paris Habitat, para discutir com os locatários algumas prioridades de despesa para melhorar a vida comum nos imóveis; o segundo, desenvolvido como uma variante do OP de Paris, destinando uma percentagem fixa dos seus recursos para áreas de habitação pública socialmente mais vulneráveis [12].
Os processos acima referidos têm em comum o volume limitado dos recursos e o facto de incidirem em tecidos urbanos consolidados, sem contribuir para uma discussão mais alargada sobre as políticas habitacionais. Mas eles formam parte de um conjunto de ações inovadoras que visam aumentar a presença dos cidadãos no debate sobre a qualidade da vida, sobretudo frente a um panorama de transformações urbanas (quer dos seus problemas quer das suas possíveis soluções) cada vez mais rápidas e imprevisíveis.
Neste sentido vale a pena citar uma iniciativa interessante, que atua no âmbito da turistificação e do esvaziamento dos centros das grandes cidades: o projeto “Intransito” da cidade de Palermo, na Sicília [13]. Embora o montante financeiro seja limitado e concentrado nos dois bairros de experimentação de Danisinni e Ballarò, este orçamento participativo traz um objetivo novo: alocar uma parte da taxa de turismo ao financiamento de projetos de requalificação territorial e desenvolvimento local, propostos e escolhidos pelos cidadãos. Para tal, o projeto conta com o apoio da Airbnb, a plataforma de viagens que em abril de 2018 começou a cobrança automática do imposto de residência através do seu portal (conforme exigido pela legislação local), destinando 10% dos valores arrecadados a projetos de requalificação e dinamização territorial escolhidos pelos habitantes no âmbito da referida iniciativa. Esta experiência tem sido criticada por circunscrever a participação pública às decisões sobre um volume preestabelecido de recursos (sem envolver os habitantes na definição dos limites e das regras que a plataforma online do alojamento turístico deveria respeitar), mas também por poder constituir uma forma de “limpeza da imagem” de um dos grandes atores da nova deriva metropolitana neoliberal, que exerce forte pressão sobre os sistemas habitacionais de muitas cidades. Apesar disto, ela é interessante por ir na direção de outras políticas participativas em gradual florescimento, canalizando os recursos de um território em benefício das áreas que mais têm contribuído para a recolha dos mesmos [14]. Ir além disto é possível se, por exemplo, olharmos para a experiência de Taiwan, onde entre 2015 e 2016 o Ministério da Digitalização tem promovido debates abertos (tornados públicos em streaming) sobre a construção da Lei onde estabelecer direitos e deveres para a regularização da Airbnb e de outras plataformas.
Nesta perspetiva, afigura-se interessante o facto de em vários orçamentos participativos terem emergido, como resposta à necessidade de promover habitação a preços acessíveis, propostas cidadãs visando a promoção de formações, de fundos de investimento de tipo ´capital semente` ou de programas-piloto. Recentemente, o caso mais interessante é o de Rochester, nos Estados Unidos, onde o OP 2018 (chamado “Your Voice Matters”) trouxe aos primeiros lugares da votação projetos de casas acessíveis para veteranos de guerra, fundos de emergência para pessoas sem-abrigo, programas de aconselhamento habitacional ou abertura de processos de criação de Community Land Trusts [15].
O quadro português
Portugal não foge ao quadro geral delineado na primeira parte deste ensaio. Embora um amplo leque de processos participativos locais tenha vindo a tomar forma na última década, a construção dos instrumentos de planeamento territorial e as políticas habitacionais continuam pouco permeáveis a um maior envolvimento direto dos cidadãos e das cidadãs, e mantêm-se no domínio do procedimentalismo burocrático, ainda que por vezes enriquecido por audiências ou assembleias públicas inseridas num contexto de escolha seletiva (cherry-picking) institucional. Nos próprios orçamentos participativos, a tipologia de processos participativos mais frequente hoje (Dias, 2018) não tem emergido de pedidos especiais ou de propostas sobre temas de políticas habitacionais, em parte, provavelmente, pelas reduzidas quantias de recursos postos à disposição dos processos em cada autarquia. O facto de a provisão de habitação pública estar regulada por instrumentos legais próprios e procedimentos burocráticos muito concretos, retirou este tema da esfera da participação pública, remetendo-o para as ações de gestão corrente das instituições.
Contudo, passados cerca de 40 anos depois da revolução de Abril de 1974, o país parece ter construído um consenso em torno da nova estratégia nacional para a habitação consenso pressionado pelo acumular de problemas históricos da habitação, com crises recentes devidas à rápida sucessão de períodos de crise, austeridade e retoma assente no turismo e no imobiliário (ver Allegra, Tulumello, este volume). Num quadro como este, impunha-se, de facto, uma nova política pública de habitação, capaz de fazer frente aos problemas mais clássicos, como a falta de casas, mas também aos mais emergentes, resultantes das dinâmicas do mercado. Uma aposta com esta magnitude, assumida num quadro de fortes pressões políticas e sociais sobre o setor, não poderia ser feita sem uma ampla mobilização dos atores estratégicos, pois correria o risco de gerar um forte descontentamento (Guerra, 2011).
Efetivamente, a chamada Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH; ver Allegra e Tulumello, este volume), plasmada na Resolução do Conselho de Ministros n.º 50-A/2018,de …DATA, aposta numa «reorientação da centralização da política de habitação no objeto (a “casa”) para o objetivo (o “acesso à habitação”), a criação de instrumentos mais flexíveis e adaptáveis a diferentes necessidades, públicos-alvo e territórios, uma implementação com base numa forte cooperação horizontal (entre políticas e organismos setoriais), vertical (entre níveis de governo) e entre os setores público e privado, incluindo o cooperativo, bem como uma grande proximidade aos cidadãos».
Este último ponto constitui, aliás, um dos princípios distintivos das novas orientações políticas, na medida em que reconhece, simultaneamente, o papel imprescindível dos municípios, na esteira da lógica de descentralização e de subsidiariedade, e da participação pública, no sentido em que deve ser assegurado o envolvimento dos destinatários, diretamente ou através de associações que os representem, na definição e implementação das soluções habitacionais e sociais que lhes são destinadas, em particular quando estão em causa interesses específicos de pessoas e grupos mais vulneráveis. Esta ênfase na participação e na proximidade coloca a NGPH num patamar distinto quando comparado com programas anteriores, como o Programa Especial de Realojamento, tendo sido a primeira vez que o Governo da República desenvolveu uma dinâmica participativa, de caráter consultivo, com vista à definição de uma política nacional de habitação.
A fase de conceção da NGPH foi cumprida num período extremamente rápido, inferior a um ano, tendo em conta os demorados procedimentos que se impõem à ação legislativa e governativa. Por esta razão, as formas de diálogo social que adotou para aperfeiçoar as suas previsões foram principalmente dirigidas a organizações sociais e profissionais já focadas nos temas habitacionais e de desenvolvimento urbano.
Este novo enquadramento enfrenta naturalmente alguns desafios, na medida em que a sua efetivação depende de um conjunto de variáveis, entre as quais se destaca uma complexa articulação interinstitucional, que na lógica da subsidiariedade passa para os municípios a responsabilidade de executar muitas das medidas previstas, incluindo as que apresentam maior peso orçamental - mesmo que com o apoio financeiro do Governo. Este aspeto é, talvez, o mais relevante quando procuramos perspetivar a participação cidadã no quadro da execução da NGPH. Como será assegurada? Quais as garantias previstas?
A transferência para os municípios da execução direta das medidas descentraliza também a responsabilidade em matéria de promoção da participação cidadã, não sendo, por isso, possível assegurar que essa será uma preocupação igualmente vincada em todos os contextos. É, aliás, expectável que a geometria da participação venha a ser muito diversificada, dependendo sobretudo da sensibilidade de algumas autarquias para a matéria ou da necessidade que possam ter na resolução de problemas mais graves, como, por exemplo, os relacionados com focos de conflito grupal ou territorial, que exijam, por isso, a construção de consensos mínimos sobre as respostas de habitação mais adequadas a cada caso. As diferenças não serão apenas ao nível da “geografia da participação” no contexto dos municípios portugueses, mas também da intensidade da mesma, sendo expectável que neste âmbito se venham a verificar diferenças substanciais em função dos contextos locais.
A dificuldade acima referida significa que, embora a participação cidadã faça parte do enunciado legislativo como princípio central da organização das políticas - como acontece no Programa 1º Direito -, a garantia da sua efetivação no quadro da execução das políticas não poderá ser assumida de forma inequívoca. O exposto representa um desafio para as instâncias de governo, bem como para os agentes académicos e da sociedade civil, na medida em que se afigura importante acompanhar a fase de execução da NGPH, por forma a compreender como se assegura a passagem da participação enquanto princípio à participação enquanto prática.
É importante sublinhar como a abordagem participativa presente na NGPH é convergente com um contexto que em Portugal, sobretudo na última década, se tem mostrado mais favorável à criação de novos espaços de participação dos cidadãos em matérias tradicionalmente circunscritas à reflexão e decisão por parte das elites políticas e dos órgãos eleitos.
Esta dinâmica saiu reforçada nos anos de maior agudez da crise económico-financeira de 2008, em que o Estado, sobretudo a nível local, se mostrou sensível à criação voluntária de espaços deliberativos para construir algumas decisões de interesse coletivo. Apesar da Constituição Portuguesa de 1976 estabelecer o dever do Estado de Direito de “aprofundar a democracia participativa” (art.º 2), a administração pública não tem sido forjada em torno de objetivos visando um sólido envolvimento direto dos cidadãos nas decisões estratégicas tomadas às diferentes escalas de governo. Na última década, porém, o país assistiu a uma rápida multiplicação de diferentes tipologias de processos participativos que especialmente a partir das autarquias locais tem vindo a enriquecer o debate sobre as necessidades e as aspirações dos habitantes, e sobre a transformação das políticas públicas, que gradualmente se vão abrindo a uma maior descentralização de competências. Entre as diferentes tipologias de dispositivos participativos experimentadas em Portugal na última década, os Orçamentos Participativos têm ocupado um espaço preponderante, reavivando gradualmente, e depois substituindo, precedentes experimentações de cunho mais consultivo (como as Agendas XXI) ou soluções em rede de co-construção das políticas públicas de âmbito socioeducativo e cultural realizadas através de uma concertação entre estruturas organizadas da sociedade civil (as chamadas “redes sociais”).
Hoje, uma boa parte dos municípios e também várias freguesias tem experimentado ciclos de OP baseados em competências e recursos próprios (Dias, 2018) ou tem-se empenhado nos diferentes processos de OP nacional que o governo despoletou a partir de 2017, chegando a criar o Despacho n.º 436-A/2017, que obriga as escolas públicas do terceiro ciclo e secundárias a envolver os alunos em experiências de orçamentação participativa sobre uma pequena parte dos fundos transferidos pelo Ministério da Educação (Falanga, 2018). Apesar deste dinamismo trans-escalar, quase todas as experiências de OP em Portugal impactaram de forma pontual os espaços públicos e os sistemas de mobilidade, mas raramente envolveram os habitantes num leque de atividades participativas visando formular coletivamente escolhas estratégicas e visões de médio-longo prazo. Aliás, aconteceu frequentemente (especialmente em municípios da área metropolitana de Lisboa) que o “alento participativo” que animava o OP tivesse, simultaneamente, sido renegado noutras decisões de corte mais autoritário relativas à recuperação (ou ao planeamento de novos) assentamentos habitacionais ou à localização e avaliação da oportunidade de grandes investimentos (públicos, mas sobretudo privados) com forte impacto na vida da cidade.
Uma conclusão em aberto
Portugal está, provavelmente, face a uma “bifurcação”. Por um lado, regista-se um aumento exponencial (especialmente à escala local) de experimentações de cunho participativo mais institucionalizadas em múltiplos sectores do investimento público, visando ir além de uma cultura de mera negociação com os stakeholders mais poderosos. Por outro, o país passou recentemente por uma parcial reestruturação de muitas das normativas nacionais relativas às políticas de habitação, onde algumas experiências importantes de diálogo social foram tentadas mas sem ultrapassar de um modo significativo as tradicionais formas de consulta dos principais portadores de interesses organizados e sem disponibilizar montantes de recursos capazes de serem atrativos para a maioria dos cidadãos e suscitarem modificações sólidas nos espaços habitacionais e nos bairros mais vulneráveis. Essa bifurcação não é, felizmente, um caminho irremediável, na medida em que existe a possibilidade, no âmbito da NGPH, de se abrirem novos espaços para formas de decisão mais partilhadas num setor tão estratégico para a qualidade de vida dos cidadãos. A municipalização de algumas tarefas sobre a habitação, nas fases de diagnóstico e de planeamento das soluções, constitui uma oportunidade fundamental para alinhar as modalidades de debate e decisão sobre este tema com as experiências locais de diálogo social, aumentando, assim, a intensidade destas duas vertentes e o contágio positivo entre ambas.
Enquanto esta transformação não ganhar corpo, a área da habitação mantém-se como um espaço privilegiado, onde se concentra a atenção de muitos dos atores fortes do mercado e da política, assim como a emersão de formas de participação cívica oriundas de movimentos sociais que estão a reorganizar-se em torno das emergências habitacionais que marcam fortemente a vida do país, e nomeadamente das áreas metropolitanas de Porto e Lisboa. Contudo, apostar nos dispositivos participativos nas políticas de habitação é indispensável, ainda mais depois das modificações institucionais introduzidas nos anos 1990 (como a do artigo 2 da Constituição), que reforçam a centralidade que a democracia participativa deverá ter na ação diária de todos os organismos que compõem o Estado de Direito. Para poder satisfazer estes objetivos, é, sem dúvida, necessário que os todos os atores públicos nacionais e locais, bem como os agentes sociais, se empenhem, dentro dos respetivos campos de ação, para que os conteúdos do artigo n.º 65 da Constituição sejam traduzidos em ações concretas, entre as quais a implementação efetiva da NGPH. Isto significa não apenas assegurar o respeito pelo direito a uma habitação digna, mas também fomentar o apoio às “iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais” (art.º 65 - 2d) e incentivar a “participação dos interessados na elaboração dos instrumentos (…) de planeamento físico do território” (art.º 65.5), aquando da tradução destes enunciados constitucionais em ações públicas locais, assegurando que sejam implementados sem fortes assimetrias em diferentes partes do país.
Nesta perspetiva, a saudável convivência entre ações participativas “por irrupção” (formas auto-organizadas e reativas, a partir de baixo) e “por convite” (no contexto de programas institucionalizados e apoiados pelas autarquias e pelo Estado) deveria abrir espaço a uma interação programática entre as duas. Esta interação resulta indispensável para evitar a consolidação de uma “bifurcação” entre discurso e práticas, que enfraqueceria o respeito pelos imperativos constitucionais e também a manutenção do lugar central que Portugal tem vindo a conquistar na última década no mapa mundial das experimentações participativas.
Referências bibliográficas
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NOTES:
[3] Quénia, África do Sul e Moçambique são os países que mais têm vindo a integrar os dois instrumentos, a partir de uma tradição anglo-saxónica de “planeamento integrado”.
[4] Desde o 1970, o “twin approach” do Banco Mundial (Osmont, 1995) forçou muitos países a legislar sobre regularização fundiária dos assentamentos autoproduzidos: países como Brasil ou Peru emergiram por terem reconhecido a componente participativa desta produção habitacional como uma mais-valia. Em Portugal, a aplicação da Lei das AUGI em muitos assentamentos autoproduzidos representou uma componente não secundária da política habitacional e de ordenamento territorial de algumas câmaras municipais (Raposo e Valente, 2010).
[5] Ver https://www.pep-net.org/about-cbms.
[6] Ver www.resilience.org/stories/2017-03-29/community-land-trust-models-housing-coops-around-world/.
[7] Ver www.uclg-cisdp.org/es/printpdf/4206 e www.uclg-cisdp.org/sites/default/files/PP_Habitabilidad%20Calle_Bogot%C3%A1.pdf.
[8] Ver http://www.pbh.gov.br/comunicacao/pdfs/publicacoesop/revista__15anos_portugues.pdf.
[9] Ver https://socdemasia.com/news-items/38-latest/175-the-gender-responsive-and-participatory-budgeting-programme-in-penang.
[10] Ver www.torontohousing.ca/residents/getting-involved/participatory-budgeting.
[11] Ver http://www.revue-economie-et-humanisme.eu/bdf/docs/r382_24_poitiers.pdf.
[12] www.paris.fr/budgetparticipatif; https://www.budget-participatif.rivp.fr/budgets; https://budgetparticipatif.e logie-siemp.paris.
[13] Ver https://intransito.comune.palermo.it.
[14] Nesta mesma direção vale a pena citar o Programa Bairro Melhor de Canoas, em que os cidadãos podiam escolher as áreas para as quais devolver parte do Imposto sobre Propriedade Imobiliária (IPTU): https://www.youtube.com/watch?v=nmtHa2RiUYo&app=desktop.
[15] Ver www.facebook.com/RochesterPB.