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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.41 Lisboa dez. 2020

https://doi.org/10.15847/cct.21202 

ENSAIO

 

O cinema e a cidade a interatuar. Trajetórias cruzadas entre a exibição cinematográfica e a transformação dos modos de vida em São Paulo

Cinema and the city interacting. Crossing paths between the film exhibition and the transformation of the ways of life in São Paulo

 

Ana Carolina Louback LopesI

[I]Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal. e-mail: a.loubacklopes@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo busca explorar as relações entre a atividade de exibição cinematográfica e as dinâmicas de transformação dos modos de vida na cidade de São Paulo. A partir de uma abordagem historiográfica, são delineados diferentes contextos de interação entre o consumo de cinema e os hábitos urbanos na cidade, em um percurso cronológico que tem como destino, e propósito, o debate acerca da virtualização dos modos de vida nas metrópoles contemporâneas, contexto particularmente acentuado pela pandemia do Covid-19. Para tanto, o texto constrói-se em três momentos. No primeiro, explora a participação das salas de cinema na modelagem da São Paulo moderna, em um processo que desemboca na ascensão tanto da atividade exibidora, quanto das próprias condições de urbanidade. O segundo momento contempla um período de reconfiguração do circuito de exibição, que passa de definidor da cidade a ser então definido por ela, ambos pautados por uma tendência de privatização da vida urbana. O terceiro momento, ainda em curso, remete finalmente à consolidação do ambiente digital e às novas perspectivas que dele derivam, tanto para o cinema, quanto para a cidade. Em um cenário de inevitável impacto frente à virtualização dos hábitos de vida urbanos, emergem questões fundamentais aos estudos urbanos contemporâneos, dentre as quais destaca-se particularmente uma: as relações entre as atuais práticas de consumo cinematográfico e o esvaziamento do espaço público das grandes cidades.

Palavras-chave: salas de cinema, modos de vida urbanos, espaço público, hábitos culturais.


ABSTRACT

This article aims to explore the relationships between the film exhibition activity and the transformation of the urban ways of life in São Paulo. Under a historiographical approach, different contexts of interaction between movie consumption and urban habits are outlined, drawing a chronological path that has as its destination and purpose, the debate about the virtualization of ways of life in contemporary cities, which was particularly accentuated by the Covid-19 pandemic. Based on this context, the text is organized into three moments. The first one explores the role of the movie theaters in modeling the modern São Paulo city, in a process that leads to the rise of both the film exhibition activity and the urbanity conditions. The second moment contemplates the reconfiguration of the movie theaters circuit, which changes itself from a city definer to be defined by it, both guided by a tendency of urban life privatization. Finally, the third moment, still in progress, refers to the digital environment consolidation and the new perspectives that derives from it, for both cinema and the city. Considering the inevitable impacts in face of the virtualization of urban life, fundamental issues must intrigue the contemporary urban studies, among which one should be specially highlighted: the relationship between current cinematographic consumption and the emptying of public spaces in the big cities..

Keywords: movie theatres, urban ways of life, public space, cultural habits.


 

Diferente de outras linguagens artísticas, o cinema surge como uma expressão essencialmente vinculada à tecnologia. Como apontou Walter Benjamin, em seu “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, escrito em 1936, diferente do que ocorre na pintura ou mesmo na literatura, na obra cinematográfica a reprodução mecânica constitui “fundamento imediato na técnica de sua produção” (Benjamin, 1936; 1987: 172). Desse modo, não é surpreendente que, ao longo da história, a cadeia do cinema tenha sempre buscado alinhar-se, ou até mesmo antecipar-se, às inovações tecnológicas disponíveis, seja nas formas de produção, seja nas suas formas de difusão. Portanto, não à toa é que a trajetória da exibição cinematográfica em São Paulo demonstra um estreito diálogo com a atualização dos modos de vida na metrópole, em uma interação onde por vezes o cinema aparece como indutor, por outras, induzido, podendo chegar até mesmo a ser descartado, frente às transformações dos hábitos urbanos.

Na virada para o século XX, a vida moderna era “só um sonho” para a cidade de São Paulo e, em particular, para as elites paulistanas. Situada entre as fazendas de café do interior do país e o Porto de Santos, São Paulo não passava de um entreposto comercial. Apesar do crescimento econômico gerado pela produção cafeeira, das possibilidades de transações comerciais surgidas com a implantação da estrada de ferro e do acentuado incremento populacional verificado na última década do século XIX[2], o núcleo urbano era marcado por características essencialmente provincianas, resquício da recente vida no campo. As décadas que se seguiram assistiriam, no entanto, a uma profunda transformação: a cidade viria a vivenciar um processo de urbanização intenso, impulsionado por um forte desejo modernizador das elites locais e por estratégias urbanísticas arrojadas [3]. Neste cenário, equipamentos culturais, e principalmente as salas de cinema, assumiriam a importante missão de imprimir à cidade os traços simbólicos daquele tal “sonho” de modernidade. Modernidade esta que viria décadas depois a ditar suas próprias regras. Em um processo de privatização da vida urbana, o cinema iniciaria um percurso de abandono do espaço público, migrando das ruas da cidade para os shopping centers.

Tomando tal contexto como ponto de partida, este artigo busca explorar as dinâmicas de interação entre o consumo de cinema e a transformação dos modos de vida urbanos, com vistas a apreender o processo histórico que trouxe a cidade contemporânea a um momento de profunda interiorização dos hábitos de vida, viabilizado pela ascensão do ambiente digital e particularmente acentuado, em 2020, pelo contexto pandêmico do Covid-19. Frente à perspectiva de virtualização da vida urbana, em que medida o ambiente doméstico disputará as funções do espaço coletivo? Será o consumo de cinema, outrora indutor da cidade cosmopolita, um dos vetores de esvaziamento do espaço público nas cidades contemporâneas?

 

O cinema como indutor da cidade moderna

Louis Wirth, um dos primeiros teóricos a dedicar-se a uma definição acerca dos modos de vida característicos da cidade moderna, associou os tempos modernos a uma concentração populacional em “gigantescos agregados, a partir do qual irradiar-se-ia a civilização” (Wirth, 1938; 1997: 46). A estes agregados chamaria cidades. As cidades, por sua vez, seriam determinadas por três critérios estruturantes – a dimensão, a densidade e a heterogeneidade –, os quais confeririam a elas conteúdos culturais específicos. Assim, a cultura urbana se proporia como modo de vida – "urbanism as a way of life"[4]–, sendo tão mais acentuada quanto maior, mais densa, mais heterogênea fosse a comunidade.

A partir de Wirth, a São Paulo do início do século XX ainda ensaiava constituir-se cidade: um núcleo populacional recente, calcado no sucesso econômico de uma atividade agrícola, que financiara ali o desenvolvimento de uma promissora indústria local. Se por um lado os traços da urbanização começavam a aparecer, os modos de vida na segunda metade do século XIX ainda eram muito apegados aos hábitos rurais e, sobretudo, ao recente passado escravagista, conjuntura esta que, ao manter a sociedade homogênea e com baixa expectativa de mobilidade, configurava-se como um importante empecilho ao estabelecimento da cultura urbana nos moldes de que fala Wirth. Seduzida pelos modos de vida dos grandes centros urbanos da Europa, a elite paulistana, ansiosa por uma cidade moderna, dedicava-se à importação de hábitos e ideais europeus, numa prática que Roberto Schwarz viria a nomear de “ideias fora do lugar” [5].

“Desse modo, os estratos sociais que mais benefícios tiravam de um sistema econômico baseado na escravidão e destinado exclusivamente à produção agrícola procuravam criar, para seu uso, artificialmente, ambientes com características urbanas e europeias, cuja operação exigia o afastamento dos escravos e onde tudo ou quase tudo era produto de importação.” (Schwarz, 2001: 73-74)

Assim, o que se percebe é um nítido descompasso entre a cidade real e a cidade pretendida. No espaço urbano paulistano, o encontro entre o social e o espacial “não [foi] nem fundado, nem interrompido, pelo aglomerado urbano” (Stefani, 2009: 91), sendo as formas urbanas significadas a partir do interesse dos envolvidos. Ou seja, a construção da cidade de São Paulo deu-se a partir de uma imagem de sociedade que se queria ter, e não da sociedade que se tinha. Neste processo, os equipamentos urbanos, principalmente os públicos e de uso coletivo, foram assumidos como peças estratégicas, construídos não exclusivamente por sua funcionalidade, mas também por sua simbologia, de modo a criar um cenário urbano propício ao “florescimento” da vida moderna (Santoro, 2004).

Segundo Paula Santoro (2004), embora a exibição de cinema em São Paulo tenha tido início ainda nos primeiros anos do século XX, de forma ambulante e com sessões eventuais em locais improvisados, foi só entre as décadas de 10 e 20 que surgiram as primeiras salas de uso fixo, embora ainda em edifícios adaptados. Este período, no entanto, teria se configurado como um momento de transição, entre o que a autora define como a “cidade provinciana” e a “cidade cosmopolita”. É somente a partir da década de 20 que a implantação de salas de cinema na cidade vem a ganhar, de fato, novos contornos, não só no que se refere à escala e à qualidade, como também à carga simbólica que imprimia ao espaço urbano.

A década de 20 marca, portanto, um período de estruturação do mercado exibidor em São Paulo, fundado na construção de suntuosas salas, com plateias que comumente ultrapassavam os 1.000 lugares, o que caracteriza a chamada “era dos cinemas dos engenheiros” (Souza, 2016). O suposto “retrato da modernidade” era reforçado pela transição do cinema mudo para o cinema falado [6] e pelo próprio formato das salas, projetadas “sob a ótica dos movie palaces norte-americanos, porém sem sua pomposidade arquitetônica” (Souza, 2016: 236). Foi também neste momento que se deu a entrada das distribuidoras norte-americanas no mercado cinematográfico brasileiro, numa experiência que se consolidou rapidamente, vindo a condicionar o consumo de cinema no país até os dias atuais. De modo geral, não se pode negar que tal contexto tenha contribuído para a construção de uma cultura urbana paulistana, como se pretendia, embora os traços da influência externa tenham sido profundamente demarcados.

Apesar da multiplicação expressiva do número de salas de cinema na cidade neste período, havia ainda um descompasso claro entre o desejo de urbanidade e a realidade cultural paulistana. Embora os cinemas trouxessem inovação tecnológica, conteúdo estrangeiro e a perspectiva de uma alternativa de entretenimento capaz de abrigar as grandes plateias que se espera de uma metrópole, a cultura da cidade mantinha bases provincianas. Em termos estéticos, as próprias salas, muitas delas instaladas em antigos teatros ou galpões remodelados, ainda preservavam desenhos arquitetônicos ultrapassados, numa miscelânea de estilos que em nada dialogava com o ideário vanguardista que a atividade cinéfila se propunha a oferecer.

A partir dos anos 20, novas configurações urbanas fizeram com que São Paulo passasse por uma profunda transformação espacial, fruto de grandes planos remodeladores, voltados a alavancar de vez a almejada modernidade. É deste período o convite a Prestes Maia para elaborar seu ambicioso Plano de Avenidas (1927-1930) [7], que veio a promover a substituição do padrão francês até então predominante na cidade, pelo modelo urbanístico adotado por centros urbanos norte-americanos, sob influência direta de Daniel Burnham, responsável pelo plano de expansão desenvolvido para a moderna Chicago. O plano de Prestes Maia consistia, sobretudo, numa incisiva intervenção viária, a qual permitiu, a partir da reformulação do sistema de transportes e da abertura de grandes eixos de circulação, a expansão horizontal da cidade. Com a implementação do Plano de Avenidas e as novas oportunidades de conexão, o parque exibidor da cidade passou por uma “relocalização”, expandindo-se rumo aos bairros numa escala surpreendente. Em termos socioculturais, este rearranjo espacial representou a popularização da experiência cinematográfica na cidade.

Com as intervenções urbanísticas ocorridas ao longo da década de 30 e o consequente espraiamento da cidade, o Centro de São Paulo passou a desempenhar um novo papel no contexto urbano, afirmando-se como principal polo cultural das elites da cidade. Assumia, assim, as características do que Manuel Castells viria a chamar de centro lúdico: “É o centro enquanto núcleo lúdico, concentração de lazeres e base espacial das ‘luzes da cidade’. Não se trata apenas do aspecto diretamente funcional dos espetáculos e centros de diversão, mas da sublimação do ambiente urbano, através de toda uma gama de escolhas possíveis e a valorização de uma disponibilidade de ‘consumo’, no sentido próprio do termo.” (Castells, 1972; 2009: 313)

Foi neste contexto que surgiu a Cinelândia Paulistana, numa analogia à bem-sucedida Cinelândia carioca, que já há alguns anos movimentava a vida cultural do Rio de Janeiro, então capital do país. Num momento em que o cinema tornava-se uma atividade cultural habitual [8], com salas espalhadas pelos diversos bairros da cidade [9], a Cinelândia Paulistana propunha o Centro de São Paulo como um “polo exibidor vip”, ou seja, que oferecesse uma experiência privilegiada, com salas lançadoras, temáticas, com alta qualidade tecnológica e, sobretudo, muito glamour, em edifícios especificamente projetados por expoentes arquitetos modernistas [10]. As décadas de 30 a 50 vivenciaram, sem dúvida, tempos áureos para o mercado exibidor paulistano.

 

A metrópole impõe as suas regras

O apogeu da atividade exibidora em São Paulo teve, no entanto, vida curta. A partir dos anos 60, o mercado exibidor paulistano passou a vivenciar um período de forte declínio, ao qual poucos dos cinemas em atividade sobreviveram [11]. Se por um lado, os novos tempos representaram para os exibidores uma derrota, para a cidade, no entanto, não há dúvida de que a perspectiva de consolidação de um modo de vida cosmopolita fora alcançada. E o cinema figurou como um ator fundamental neste processo. Fato é que o urbano passou de tal forma a caracterizar as formas de viver da população paulistana, que ao cinema restou naquele momento não mais ditar os modos de vida da cidade, mas sim adaptar-se a eles. Como afirma Adrián Gorelik, estudioso das cidades como arenas culturais, “ las ciudades y sus representaciones se producen mutuamente” (Gorelik & Peixoto, 2016: 367).

“Não seria exagero afirmar que o cinema nos colocou em contato com a técnica moderna do século XX, determinando nosso ingresso na esfera da indústria cultural, a partir daí influenciando os hábitos e padrões de comportamento da população, copiando penteados ou perfis de bigodes, maneiras de andar, beijar, de sorrir, antecipando como se fosse um trailer o que ocorreria décadas depois sob o poder acachapante da televisão.” (Simões, 1990: 11)

Diversos são os fatores que podem ter contribuído para o declínio da atividade exibidora, mas um dos principais foi, de fato, a chegada da televisão. Em 1950 surgira o primeiro canal de televisão brasileiro, a TV Tupi. A possibilidade de lazer privado ofertada pela nova tecnologia chegava em um momento oportuno, quando a falta de segurança, o trânsito e a própria dimensão que a cidade havia tomado, começavam a incomodar o público que buscava entretenimento. Se no período anterior, o fascínio estava na grandiosidade do espaço urbano, a partir dos anos 60 a cidade começa a se voltar para dentro de seus edifícios.

Nesse sentido, vale retomar a intrínseca relação do parque exibidor paulistano com as dinâmicas imobiliárias da cidade, assim como com seus deslocamentos. Ao carregar a simbologia de um modo de vida cosmopolita, tão almejado pelas elites paulistanas, as salas de cinema, associadas às tantas estratégias de modernização urbanística implementadas, foram peças fundamentais no processo de valorização imobiliária da área central de São Paulo, numa relação de interesse recíproco, precisamente definida pela noção de economia simbólica.

“A economia simbólica apresenta, portanto, dois sistemas de produção paralelos que são cruciais para o crescimento econômico de uma cidade: a produção do espaço, com sua sinergia de investimento de capital e significados culturais, e a produção de símbolos, o que molda tanto uma moeda de troca comercial, quanto uma linguagem de identidade social.” (Zukin, 1996: 45; tradução da autora)

Neste casamento de interesses, coube ao circuito exibidor paulistano aliar-se às dinâmicas imobiliárias da cidade, seja acompanhando os vetores de expansão, seja espelhando as formas de ocupação do espaço e as novas “modas” da vida urbana. Se na década de 50 o mercado exibidor ensaiou a consolidação de um circuito de cinemas de arte no Centro da cidade, voltado a atender a uma elite intelectual restrita, com o estabelecimento da Avenida Paulista como o novo eixo cultural e econômico da cidade, esse circuito veio a migrar para a nova centralidade. Da mesma forma – numa escala muito mais acentuada –, com a interiorização dos modos de vida da população paulistana, a solução encontrada tanto pelo mercado imobiliário quanto pelas salas de cinema ditas comerciais, foi o shopping center , tipologia urbana que passaria a se difundir pela cidade a partir dos anos 70 [12].

Importante notar que o contexto do Centro de São Paulo a partir dos anos 60 não é exatamente de abandono, mas sim de alteração de uso. Com a consolidação da região como um nó viário, o fluxo de pessoas a transitar pelo Centro multiplicou exponencialmente. Com isso, o local do glamour e da distinção passou a abrigar as multidões. O perfil residencial foi substituído por usos comerciais e de serviços. Assim, a ocupação da região passou a se concentrar prioritariamente no período diurno, o que tornou o cenário noturno inseguro e, portanto, pouco atrativo aos equipamentos culturais.

“Pessoas mais velhas se lembram com saudades da formalidade envolvida no uso do espaço público, as luvas e as gravatas, a distinção dos velhos cinemas, as ‘boas’ ruas do centro velho em que se podia passear entre gente elegante […]. Há muitos anos atrás, quando o centro era usado pelas classes altas, poder se juntar à multidão (através do uso de algumas roupas e acessórios, por exemplo) poderia ser uma questão de identificação com os socialmente superiores […]. Hoje, no entanto, as mesmas pessoas sentem a necessidade de promover a distância mais do que a identificação com os que usam o centro, pessoas mais pobres e marginalizadas – vendedores, crianças de rua, travestis e prostitutas.” (Caldeira, 2003: 324)

Nesse novo cenário, raros cinemas conseguiram se manter em funcionamento na região. Pomposos edifícios cederam lugar a estacionamentos, igrejas, bingos, lojas de departamento, ou foram simplesmente demolidos. Algumas salas, na tentativa de se adaptar à alcunha “marginal” que se atribuía a este novo Centro, passaram a exibir conteúdo pornográfico, o que, apesar do movimento dos trabalhadores em horário de almoço, garantiu uma sobrevida economicamente pouco digna àqueles espaços outrora tão badalados. Houve ainda as salas que viraram ruínas. No eixo na Avenida São João, coração da Cinelândia, num trajeto de apenas 100 metros, é possível deparar-se com o que restou do Art-Palácio e do Cine Ipiranga – projetados por Rino Levi –, do Cine Paissandu e do majestoso Cine Marrocos, que chegou a ser ocupado, de 2013 a 2016, por um movimento sem-teto [13].

“De um ponto de vista material, as zonas centrais e periféricas da cidade estão hoje em ligação íntima, promovida pelos transportes e os modernos meios tecnológicos de comunicação. De um ponto de vista das sociabilidades e das suas espacialidades, os domínios do público e do privado também se encontram em situação de contaminação e mútua influência. De um ponto de vista cultural, aquilo que é central num dado momento ou perspectiva pode tornar-se marginal no momento seguinte ou noutra perspectiva. Mais do que um jogo de dualidades, este é um jogo de recombinações de referências, estilos e práticas sociais que conduz à experiência da incoerência cultural como condição moderna da vida urbana (Simmel, 1949).” (Fortuna & Silva, 2001: 424)

A década de 60 marcou também o início do que alguns teóricos definiram como “Era da Cultura” (Arantes, 1998): um período em que predominou a funcionalidade da cultura, posta em sua “forma-publicidade”, a cargo da sedenta sociedade do espetáculo, na qual “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (Debord, 1967, 2003: 13). Neste período, a noção de cultura foi revista, passando, nos termos definidos por Otília Arantes, de um “suplemento para a alma” a uma “animação sem alma” (Arantes, 1998: 153). Nesta perspectiva, a cultura passou não só a dedicar-se a satisfazer um mercado cada vez mais exigente e com motivações das mais diversas, como também se converteu em um instrumento indispensável de governabilidade.

Se o período anterior foi o palco para o cinema, a Era da Cultura foi o momento de glória para os museus, centros culturais e grandes salas de espetáculo. É a partir desse momento que as estratégias de publicização e de marketing urbano se acentuam, demarcando o que Christine Boyer (1994) classifica como a transição da “cidade como panorama” (a cidade moderna, voltada aos fluxos e funções) para a “cidade do espetáculo”, para a qual os grandes equipamentos culturais são instrumentos estratégicos em um processo no qual a cultura e as artes são tomadas enquanto meras ferramentas, no entanto fundamentais em uma jornada de ressignificação simbólica – e consequente valorização urbana – dos territórios. A imagem das cidades passa, portanto, a assumir acentuada relevância e passa a nortear políticas urbanas, em particular aquelas voltadas à requalificação de áreas centrais degradadas.

Confiantes na transformação urbana que equipamentos de renome poderiam propiciar, ascendentes centros urbanos pelo mundo entraram em disputa para hospedar iniciativas grandiosas, como, por exemplo, o Museu Guggenheim [14]. Na esteira desse glamour, as salas de cinema concentraram esforços em inovações tecnológicas, buscando qualificar circuitos de exclusividade, como salas 3D, IMAX, transmissões ao vivo, embora nenhuma das opções viesse a bastar para colocar também o cinema na pauta dos grandes investimentos públicos [15].

Com a readequação do parque exibidor às novas demandas da vida urbana, novas relações entre cinema e cidade começaram a ser tecidas. Ao remodelarem-se as formas de apropriação territorial e simbólica do espaço urbano, as salas de cinema passaram a sugerir novas territorialidades na cidade: de um lado, as salas multiplex em shopping centers; de outro, as salas de arte em edifícios independentes, popularmente nomeadas como “cinemas de rua” (Stefani, 2009: 211). Esta dualidade de tipologias expressa-se de múltiplas maneiras, seja nos tipos de público, de conteúdo ou de hábitos de vida: público de conveniência versus público habitual, cultura de massa versus cinema de nicho, filmes comerciais americanos versus filmes de arte europeus, asiáticos e latino-americanos, busca por segurança versus desejo de liberdade.

Embora nos cinco anos anteriores o parque exibidor brasileiro tenha crescido a uma taxa anual média de 4,3%, em 2018, 88,9% das salas de cinemas do país localizavam-se em shopping centers, enquanto apenas 11,1% eram salas de rua (ANCINE, 2019: 8; 12). Dos 69 complexos de salas situados na cidade de São Paulo (os quais abrigam um total de 349 salas), apenas 10 são cinemas de rua [16]. A luta cotidiana destas salas pela sobrevivência fica evidente frente aos constantes anúncios de fechamento, como o emblemático caso do Cine Belas Artes, que, graças a uma farta mobilização comunitária, pode manter-se em funcionamento mediante patrocínios. O gradual desaparecimento dessas salas, ao mesmo tempo que corresponde a novas orientações do mercado de consumo cultural, reflete uma dinâmica socioespacial de rejeição ao espaço público e concomitante privatização da vida urbana. Assim, os cinemas de rua passam a figurar como uma prática de resistência não só ao domínio do mercado audiovisual pelas grandes distribuidoras americanas, mas também à privatização do espaço urbano por um mercado imobiliário cada vez mais agressivo.

“A desertificação das ruas nas cidades contemporâneas é um dos sintomas mais graves da decadência da civilização urbana. A morte dos cinemas de rua é um dos resultados mais graves desse processo. Embora nos últimos anos o número de salas tenha se elevado significativamente em São Paulo, em decorrência do aumento das salas multiplex nos shoppings, é notável o encerramento das atividades dos cinemas que se abrem diretamente para as calçadas ou localizados nas galerias tradicionais.” (Bonduki, 2003)

Se a relação entre dinâmica urbana e perfil cultural marca o processo de decadência das salas de rua, é também a partir dela que se esboçam alguns ensejos de retomada. Amparados por recentes políticas públicas e iniciativas privadas pontuais de estímulo ao uso do espaço público em São Paulo, cinemas de rua têm conseguido, embora ainda de modo bastante tímido, investir em algumas tentativas de requalificação de uso. Em 2019, empreendedores culturais paulistanos anunciaram a retomada de três antigas salas de cinema do Centro [17] – Cine Ipiranga, Bijou e Rex –, com propostas direcionadas a públicos de nicho, que vão do cinema de arte a um espaço voltado à contemporânea cultura gamer [18]. Tais intervenções complementam outras iniciativas de retomada da vida noturna na região, como a abertura de novos bares, restaurantes e até mesmo lançamentos imobiliários residenciais voltados ao mercado jovem [19].

 

O cinema e a cidade sob a Era Digital

Apesar de tanto a ampliação do parque exibidor quanto a intensificação do uso do espaço público terem constituído, em anos recentes, temas prioritários para políticas públicas setoriais, uma tendência global parece estar a conduzir os modos de vida urbanos em uma direção oposta a tais objetivos: a consolidação do ambiente digital. Embora o mercado exibidor tenha crescido no Brasil nos últimos anos, amparado sobretudo por políticas públicas de incentivo à abertura e digitalização de salas, a chegada dos serviços audiovisuais sob demanda e do streaming, ainda não regulamentado no país, formatam um ambiente de árdua competição [20]. Da mesma forma, embora ações de estímulo ao uso do espaço público em São Paulo tenham sido promovidas, particularmente pela gestão municipal de Fernando Haddad (2013 – 2016) [21], a oferta cada vez mais ampla de serviços digitais desponta como um impulso irreversível à virtualização dos modos de vida urbanos.

Já em 1996, Castells, em seu Sociedade em Rede, apontava que “a ‘centralidade da casa’ [era] uma tendência importante da nova sociedade” (Castells, 1996; 2008: 487). Se a privatização dos hábitos urbanos já era uma realidade evidente na segunda metade do século XX, tendo por seu principal símbolo o shopping center, com o surgimento da internet, muitas das funções exclusivas ao espaço coletivo passaram a ser oferecidas dentro do ambiente doméstico, em uma dinâmica que Castells classifica como a transição do “espaço de lugares” – a cidade – para o “espaço de fluxos” – a rede. Neste contexto virtual, a própria noção de espaço público é revista, assumindo uma forma não-espacial, no entanto, palco de forte interação social.

“A vida na cidade se tornará cada vez mais não-espacial e virtual. “(…) Também pode ser útil considerar o caráter não espacial do ‘espaço público’. Os estudiosos há muito consideram o ‘domínio público’ um fenômeno do século XIX: o amálgama de formas de comunicação que permitem ao público dialogar sem estar cara a cara. Hoje, o domínio público passou a incluir formas não geográficas de interação, como meios de comunicação de massa modernos, aparelhos de fax, páginas virtuais e email. O cyberspace se tornou a encarnação pós-moderna da ‘praça pública’”. (Herzog, 2006: 223, 224; tradução da autora)

Se por um lado a virtualização dos modos de vida remete ao risco de esvaziamento do espaço coletivo das cidades, por outro, surge como uma opção às mais diversas restrições de acesso à vida urbana. Como aponta Lawrence Herzog, na falta de um equipamento cultural para se reunir em seu bairro, moradores urbanos passam a buscar “refúgio no mundo artificial do entretenimento eletrônico” (Herzog, 2006: 224). Com a economia de tempo ocasionada pela ausência de deslocamento, com custos reduzidos e alheio às mazelas dos grandes centros urbanos (como trânsito e violência), o entretenimento digital encontrou na cidade contemporânea um ambiente fértil, onde passou a ganhar terreno conforme o acesso à internet expandia-se pelo espaço urbano.

Embora o estado de São Paulo concentre 32,8% das salas de cinema do país, o município apresenta um alto Índice de Habitantes por Cinema (IHC): são 43 mil habitantes/ sala, o que o coloca na 14ª posição no ranking entre as capitais brasileiras. Além da oferta reduzida, cabe ressaltar que o parque exibidor paulistano está fortemente concentrado nos bairros mais centrais da cidade, sendo escassas as opções nas periferias, regiões que abrigam grandes contingentes populacionais (Lopes, 2017). De acordo com a pesquisa por amostragem “Hábitos Culturais dos Paulistas: Cultura em SP”, publicada em 2014, 29,7% da população das classes D+E declarava nunca ter ido ao cinema até o momento (Leiva, 2014).

Em 2020, com o contexto moldado pela pandemia do Covid-19, a privatização e a virtualização da vida urbana consolidaram-se como caminhos irreversíveis. Da mesma forma que a casa passou a reabrigar fisicamente uma ampla gama de funções sociais – trabalho, escola, entretenimento, entre outras –, o espaço virtual afirmou-se como o lugar onde as conexões se estabelecem. Segundo uma pesquisa realizada em junho de 2020 pela Nielsen Brasil em parceria com a Toluna, com foco em hábitos e tendências do consumo digital, 42,8% dos brasileiros entrevistados declararam assistir conteúdos por streaming todos os dias, enquanto 43,9% disseram fazê-lo ao menos uma vez por semana. Apenas 2,5% das pessoas declararam nunca assistir conteúdos por esse meio. O levantamento apontou ainda o vídeo por streaming como meio preferido entre os entrevistados, que transitam entre diversas plataformas: 73,5% afirmaram usar plataformas como Netflix, Globoplay e Amazon Prime, enquanto 63,8% disseram utilizar sites de vídeos como YouTube e Vimeo, 61,5%, TV aberta e 54,9%, TV a cabo (Teletime, 2020).

Com salas fechadas por quase sete meses [22], o parque exibidor em São Paulo lida com contundentes riscos a sua sobrevivência, tendência esta verificada globalmente [23]. Embora ainda restem dúvidas quanto à viabilidade econômica de lançamentos de grandes produções cinematográficas no streaming, a pandemia veio a antecipar, de forma inevitável, tal verificação. Ou seja, o contexto pandêmico, apesar de seu impacto particularmente enfático no âmbito dos equipamentos culturais, veio a acentuar, mais do que determinar, um trajeto gradativo de declínio da atividade exibidora, verificado, grosso modo, desde o advento da televisão.

“Em uma visão de longo prazo, pode-se perceber as mudanças abruptas ocasionadas pelos fechamentos oriundos do coronavírus como mais um passo na longa erosão da hegemonia do cinema, que começou com a venda dos catálogos de filmes de Hollywood para redes de televisão, continuou com o advento da TV a cabo e serviços de pay-per-view, intensificou-se com o surgimento de videocassetes, DVDs e Blu-rays, e floresce agora por meio de todas essas tecnologias acrescidas pelos serviços de streaming de alta resolução e monitores de tela plana.” (Sterritt, 2020: 505; tradução da autora)

Se por um lado o vínculo tecnológico da linguagem cinematográfica torna-a mais suscetível às inovações do mercado de tecnologia, o fato de o cinema ser produzido com vistas à reprodução mecânica em massa, converte-o em um produto essencialmente vocacionado para a difusão digital. Diferente de expressões artísticas como a música, o teatro ou a dança, nas quais se verifica, no contexto da pandemia, um grande esforço dos criadores para adaptação de suas obras – e da própria linguagem – ao formato digital, ao cinema confere-se tecnicamente a possibilidade de antecipar a carreira do filme, a dita “cauda longa”, recorrendo ao lançamento no streaming sem que haja necessidade de adequação do produto fílmico.

Por terem sido, em muitos países, dos primeiros espaços coletivos a fechar e dos últimos a abrir, as salas de cinema precisarão, no contexto de retomada pós-pandêmico, provarem-se não só como uma atividade atrativa, como também segura [23] . Enquanto lidam com o desafio de representarem neste momento o pior lugar para se estar, curiosamente uma solução a que recorreram diversos exibidores foi o uso do espaço público. Na contramão dos anos anteriores, a pandemia forçou alguns cinemas a se deslocarem dos shopping centers para a cidade, seja com sessões ao ar livre ou resgatando o formato nostálgico do drive-in, numa espécie de movimento de retorno. Embora tais experiências sejam marginais e não representem economicamente uma alternativa de reconfiguração da atividade exibidora frente aos atuais desafios, é simbólico notar o contraponto entre os duetos cinema e cidade versus streaming e casa.

 

Considerações finais

Como aponta Benjamin, “no interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência” (Benjamin, 1936; 1987: 169). De símbolo da cidade cosmopolita a reflexo dos novos hábitos de consumo cultural da era da tecnologia, a trajetória das salas de cinema de São Paulo narra o processo de transformação dos modos de vida urbanos. Enquanto salas em ruínas espalhadas pelo Centro simbolizam a ascensão e o declínio da vida moderna e os multiplexes aparecem como retrato da pós-modernidade, o streaming , por sua vez, demarca a consolidação da Era Digital, sob a qual ergue-se um universo de possibilidades que amparam um processo de virtualização da vida urbana. Ao passo que o ambiente digital responde a demandas cada vez mais individualizadas de seus usuários, assiste-se a um gradativo esvaziamento das esferas coletivas nas grandes cidades. Diante deste cenário, serão os novos hábitos de consumo cinematográfico responsáveis pelo declínio do espaço público ou apenas um reflexo dele? De que forma a virtualização dos hábitos urbanos pode impactar as condições de urbanidade nas cidades contemporâneas?

A sala de cinema, mais do que um recinto tecnicamente preparado para exibir uma obra fílmica com qualidade particular, tem como atributo o encontro. O modo como um espectador percepciona a obra cinematográfica em um ambiente coletivo, não será o mesmo com que o fará de forma solitária. As trocas entre os espectadores, seja no antes, no decorrer ou após a exibição, somam ao filme elementos capazes de multiplicar as percepções da obra a cada nova reprodução. A esta atualização do objeto, Benjamin atribui o que classifica como valor de exposição. Portanto, e recorrendo a um paralelo com o conceito de rua (Delgado e Malet, 2007), é o fato de a sala de cinema configurar-se como um território de exposição, tanto no sentido do exibir-se quanto do arriscar-se, que a diferencia da exibição por streaming. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que o que contrapõe o binômio “cinema-cidade” ao “streaming-casa” é, portanto, a prática da cidadania.

Se no início do século XX o cinema serviu ao papel de convidar a população a vivenciar o espaço público e, com isso, aderir aos modos de vida citadinos, seu movimento de retorno à casa coloca em revisão nosso próprio entendimento de cidade. Em um momento em que práticas urbanas deslocam-se do espaço público para o ambiente digital, mais do que uma alteração das formas de consumo, o que pode estar em jogo é a prática da cidadania e, numa perspectiva mais alargada, a opção pela democracia como modo de vida. Em uma entrevista recente, o diretor de fotografia Luca Bigazzi, colocava a desaparição dos cinemas como uma “arma de controle social” (Koch, 2019). Tomando tal afirmação enquanto uma provocação, fica a pergunta: seriam as novas formas de consumo cinematográfico uma ameaça ao espírito democrático que emana do espaço público?

 

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NOTAS

[2]A população de São Paulo quase quadruplicou no período de virada do século XIX para o século XX, passando de 64.934 habitantes em 1890 para 239.820 habitantes em 1900 (PMSP; IBGE, 2010).

[3]De 1899 a 1910, a administração de Antônio Prado implementou uma série de remodelações urbanísticas na cidade de São Paulo, tais como alargamento de vias e passeios, criação de praças e jardins, reforma e construção de edifícios, numa declarada tentativa de delinear uma nova identidade à área central da cidade. Entre 1911 e 1914, a gestão de Raimundo Duprat daria continuidade a este anseio, com a implementação do Plano Bouvard, concebido pelo urbanista francês Joseph-Antoine Bouvard, cuja execução seria paralisada com a eclosão da 1ª Guerra Mundial. Sobre as intervenções urbanísticas no período, ver Reis Filho (1994).

[4]A expressão se refere ao texto de mesmo nome (Wirth, 1938; 1997).

[5]A noção de “ideais fora do lugar”, sugerida por Schwarz (1977; 2000), refere-se a uma construção ideológica que resulta da disparidade entre uma sociedade escravagista e socialmente ultrapassada e o ideário do liberalismo europeu.

[6]O cinema falado, além do fascínio gerado pela inovação tecnológica, permitiu uma nova representação da cidade moderna e dos modos de vida urbanos. Como aponta Landry (2006), estando a urbanização intrinsecamente vinculada à proliferação de som, a cidade moderna é também definida, portanto, por sua paisagem sonora, assim como pelos hábitos sonoros de seus habitantes.

[7]Sobre o Plano de Avenidas de Prestes Maia, ver Toledo (1996).

[8]Segundo Simões (1990), em 1940, quando a população paulistana era de 1.317.396 habitantes, a oferta de assentos nos cinemas da capital se aproximava dos 100 mil, ocupados por 19.526.224 espectadores, o que conferia uma frequência per capita de 15 sessões ao ano. Nos cinco anos seguintes, as taxas de crescimentos de público superariam as taxas de crescimento demográfico.

[9]Dentre as dez salas de maior frequência em 1945, seis delas estavam na Cinelândia. Outras três no Brás e uma na Praça da Sé, o dito “Centro antigo” (Simões, 1990).

[10]Sobre a arquitetura das salas de cinema deste período, vale mencionar a presença de Rino Levi, importante representante da escola moderna de arquitetura paulistana, responsável por emblemáticas salas de cinema deste período. Seu projeto para o Ufa-Palace – mais tarde nomeado Art-Palácio -, construído em 1936, elevou o referencial de qualidade para os edifícios que o seguiram. Com 3.139 lugares, distribuídos em plateia térrea e mezanino, esta sala inaugurava padrões de visibilidade, acústica e conforto impecáveis, além de um traçado arquitetônico ousado, condizente com o novo contexto urbano que se pretendia delinear.

[11]Nos anos 60 a Cinelândia tinha 30 cinemas em funcionamento. Em 1985, restavam 14 (Santoro, 2004).

[12]O primeiro shopping center de São Paulo, o Iguatemi, foi inaugurado em 1966, representando a primeira experiência deste tipo de estabelecimento na América Latina.

[13]A ocupação do Cine Marrocos foi retratada pelo documentário “Cine Marrocos” (2018), de Ricardo Calil, que explora a dualidade entre a glamour e a pobreza simbolizada pelo edifício. Para mais informações sobre o filme, ver Tela (2015).

[14]A proposta do Museu Guggenheim para São Paulo, apresentada em 2001 e que envolvia um investimento de US$ 150 milhões, foi recusada pelo então Secretário de Planejamento do município, o arquiteto Jorge Wilheim, que defendia que a região precisava era “de gente”, “de vizinhos para os 60 mil moradores que teimam contra a diáspora” (Folha de São Paulo, 2001). O projeto do Museu Guggenheim-Rio, apresentado em 2003, de autoria do arquiteto Jean Nouvel, ocasionou uma ampla discussão em torno da pertinência de tamanho investimento no contexto da capital carioca, optando-se, ao final, pelo abandono da proposta (Nobre, 2003).

[15]Segundo dados da Agência Nacional de Cinema - ANCINE, somente em 2009, mediante uma política pública de incentivos à ampliação do parque exibidor no país, é que o Brasil veio a retomar o número de salas existentes no início da década de 1970 (ANCINE, 2019).

[16]Dado fornecido pela Empresa de Cinema e Audiovisual de São Paulo – Spcine, em publicação no Facebook em 30 de outubro de 2019, relativa à entrega de Placas de Memória Paulistana aos cinemas de rua da cidade.

[17]A cultura geek em São Paulo é um nicho farto e em forte ascensão. Atualmente a Comic Con Experience São Paulo é a maior do mundo, tendo reunido em 2019 (6ª edição), 280.000 pessoas. O evento é promovido pela Omelete, atualmente uma das marcas mais relevantes do Brasil em cultura pop, e uma das responsáveis pela retomada do Cine Ipiranga. Sobre a CCXP-SP, ver Oliveira (2019).

[18]Segundo a Abrainc - Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, mesmo com o contexto pandêmico, os investimentos imobiliários no Centro de São Paulo seguem em ascensão. No segundo trimestre de 2020, dados apontam a concessão de 10 alvarás para construção de prédios residenciais na região, 150% a mais do que no mesmo período do ano anterior. Em 12 meses, foram ao todo 37 alvarás para a região central (Zanatta, 2020).

[19]Já em 2018, o Nostradamus Report (Koljonen, 2018), relatório voltado às tendências do mercado audiovisual global, elaborado pelo Festival de Gotemburgo (Suécia) e apresentado anualmente no Festival de Cannes, apontava para a avalanche que se configurava com a chegada do streaming. Em capítulo intitulado “ All Swept Into the Stream”, previu a superação da televisão pelos serviços de streaming (SVOD), assim como o surgimento de modelos transacionais mais arrojados. Em capítulo seguinte, enfatizou o desafio a ser encarado pelo mercado exibidor nos anos seguintes, enfatizando a priorização dos investimentos em exclusividade e experiência.

[20]A referida gestão assumiu como um dos focos prioritários de atuação a ocupação do espaço público, implementando ações diversas neste sentido, dentre as quais a mais emblemática foi o programa Ruas Abertas, que previa, aos finais de semana, o fechamento temporário aos carros de vias da cidade. O programa teve início com a simbólica “abertura”, em 2015, da Avenida Paulista, um dos principais eixos viários da cidade. Ver Izeli (2018).

[21]Em virtude da pandemia do Covid-19, as salas de cinema de São Paulo ficaram fechadas de 20 de março a 10 de outubro de 2020.

[22]Desde o início de 2020, as ações da CineWorld acumulam perdas de 87,3%, enquanto as da rede americana Cinemark caíram 74,6% e as da AMC, a maior cadeia de cinemas do Estados Unidos, depreciaram-se 50,4% (Guilherme, 2020).

[23]Embora uma pesquisa publicada em 19/10/2020 tenha comprovado, por rastreamento de contágio e acompanhamento de relatórios públicos, que as salas de cinema não se configuraram como vetores de contágio - como as igrejas, por exemplo -, o que se verifica são taxas de ocupação das salas extremamente baixas nos primeiros meses de reabertura (Sychowski, 2020).

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