Introdução
A resiliência urbana conjuga três componentes, persistência, transição e transformação. Na primeira garante-se a permanência das funções estruturantes dos sistemas urbanos. Através da segunda introduzem-se mudanças incrementais e com a terceira, sempre que tal seja necessário, consideram-se e concretizam-se transições para formas de funcionamento mais robustas (Chelleri, 2012).
Se é certo que a cidade é, tal como Vale e Campanella (2005, p.3) referem, “the humankind’s most durable artifact” e que, não obstante os muitos exemplos de cidades “sacked, burned, bombed, flooded, starved, irradiated - they have, in almost every case, risen again like the myth of the Phoenix”, a história urbana está repleta de exemplos (Hiroshima, Chernobyl, Fukushima, Tokyo, Varsóvia, Dresden, Berlin, Beirute) em que as estruturas físicas e económicas foram sujeitas a grandes disrupções. Todavia, a sua continuidade, robustez e durabilidade alimentam-se na intensidade e na natureza das suas redes sociais e económicas (Chelleri, 2012). Redes centralizadas (estruturadas em torno de um único nó) são associadas a maior vulnerabilidade. As redes descentralizadas (estruturadas em torno de uma rede de nós) minimizam a vulnerabilidade e criam estruturas socioeconómicas resilientes.
A abordagem à resiliência das regiões, pressupõe que se substituam as análises assentes em relações lineares, orientadas para um único estado de equilíbrio, por modelos estruturados por múltiplos equilíbrios. Os avanços nas teorias de planeamento verificados desde o início do século XXI, encaram as cidades e as regiões como dispositivos sujeitos a múltiplos equilíbrios em constante rearranjo evolutivo. As suas fronteiras organizam-se em bacias de funcionamento difusas e com geografias muito variáveis (Chelleri, 2012). Por conseguinte, o planeamento dessas estruturas deve ter capacidade de produzir adaptações de acordo com as necessidades de mudança que se vão prefigurando.
Tratando-se de processos de natureza política, as transformações intencionais pró-sustentabilidade têm de provocar efeitos estruturais através dos quais, no longo prazo, todos beneficiam. Contudo, no imediato, não raras vezes, estas políticas provocam vencedores e perdedores. Todas as transformações têm um contexto territorial específico, reproduzem diferentes experiências históricas e sintonizam-se com economias particulares, concretas. Ou seja, são transformações impulsionadas ou condicionadas por contextos de aprendizagem coletiva, por recursos espaciais e em períodos temporais singulares.
Lawrence, et al. (in Bohland et al., 2019) abordam as múltiplas narrativas sobre a resiliência, juntando-as num agregado de conceitos que designam por “resilience machine”. Estes dispositivos permitem mobilizar conhecimento gerador do poder necessário ao planeamento de comunidades, cidades e regiões porque antecipa as fontes de tensão (alterações climáticas, catástrofes, crises financeiras/económicas/energéticas, instabilidade política, insegurança alimentar, terrorismo, pandemias) que amplificam a exposição a riscos e que potenciam as vulnerabilidades. De forma a contrariar o risco, a minimizar os impactos dos desastres e a aumentar a segurança e o bem-estar dos cidadãos, “cities must be more resilient and prepared to address shocks and stresses”(Hernantes et al., 2019, p. 95).
Ganham assim relevância os exercícios dedicados a sistematizar as características, os atributos, as dimensões e as condições da cidade e da comunidade resiliente, colocando enfase nas questões ambientais, sociais, económicas ou nas metodologias adequadas à gestão de crises. Encarado como um referencial teórico polissémico, importa esclarecer alguns dos conceitos que contribuem para que se possa encarar a resiliência como um propósito e como uma forma, que informa, o planeamento urbano (figura 1).
A evolução do referencial teórico, ajudou a distinguir o planeamento urbano pró-resiliência tipificando-o em três perspetivas i) “engineering resilience; ii) ecological resilience, e iii) adaptive resilience” (Sharifi & Yamagata, 2018, p. 5). Na primeira perspetiva valoriza-se a redução da vulnerabilidade através de intervenções que reforcem a resistência e a robustez das infraestruturas físicas (tabela 1). As cidades e as suas infraestruturas devem ser planeadas para serem à prova de falhas. Se essas falhas se revelarem, os sistemas urbanos devem estar preparados para retomar as condições que existiam pré-choque (reestabelecem o seu equilíbrio).
Abordagens à Resiliência | Possibilidades de equilíbrio | Formas de medir | Natureza das disrupções | Enfase |
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Resiliência/ engenharia | Uma | Velocidade de retorno ao equilíbrio pré-choque | Previsíveis Externas Repentinas Choques | Resistência e recuperação Eficiência e previsibilidade |
Resiliência/ ecossistemas | Múltiplas | Magnitude do choque que pode ser absorvido mantendo o funcionamento do sistema dentro de um certo arranjo de equilíbrios. Capacidade de auto-organização e de aprendizagem (absorção). | Previsíveis e imprevisíveis Externas Repentinas Choques | Persistência Adaptabilidade e flexibilidade Robustez, eficiência, diversidade |
Resiliência/ socio-ecológica | Nenhuma Mudança continua | Magnitude do choque e do stresse que é absorvido continuamente. Intensidade da dinâmica de auto-organização e de capacidade de aprendizagem. | Previsíveis e imprevisíveis Externas e internas Repentinas/choques e progressivas/ acumulação de vulnerabilidades | Persistência Adaptabilidade e flexibilidade Potencial humano para transformar a envolvente (agência) |
Fonte: Elaboração dos autores.
Pela perspetiva da resiliência ecológica, preconizam-se lógicas mais dinâmicas, por isso menos sensíveis aos princípios de resistência e de robustez. Propõem-se balizas de segurança para o planeamento dos sistemas urbanos capacitando-os para absorver choques, reter o nível de funcionalidade e minimizar perdas profundas, irremediáveis. Admite-se que os sistemas urbanos podem transitar para novos estádios de equilíbrio no decurso de processos de recuperação. Todavia, todos os que se ocupam do planeamento são confrontados com a necessidade de dotar os sistemas urbanos com atributos que lhes permitam conviver com o risco. Este desafio é enfrentado pelo planeamento que adota a perspetiva da resiliência evolutiva, considera a interação entre variáveis de progressão lenta com outras de expressão repentina, aproxima respostas de emergência com outras que permitem adaptações de longo prazo, habilitando os sistemas a manter as suas funcionalidades ao longo do tempo. Inspirado pelo conceito de resiliência adaptativa, este estudo, observa a resiliência urbana como:
“the ability of urban systems to continuously develop short-term coping and long-term adaptation strategies (…) to mitigate hazards, withstand and absorb shocks, rapidly bounce back to baseline functioning, and more effectively adapt to disruptive events by bouncing forward to better system configurations.”
Por conseguinte, apesar de se incluir elementos transversais, este estudo aborda sobretudo a perspetiva da resiliência evolutiva e a forma como os seus princípios conceptuais (ciclo adaptativo, adaptabilidade, vulnerabilidade, robustez, diversidade, transformabilidade) informam o propósito da sustentabilidade através de uma intervenção norteadora do planeamento urbano (figura 1).
Ao longo das secções seguintes, aborda-se, na primeira parte, o referencial teórico da resiliência, equacionando logo de seguida, em que medida serve o propósito da sustentabilidade tida com desígnio civilizacional. Na segunda parte equaciona-se a relação entre resiliência e sustentabilidade e apresentam-se formas de planear resiliência nos sistemas urbanos.
Referencial teórico para a resiliência de sistemas urbanos
No contexto dos sistemas urbanos e tomando em linha de conta a gestão dos riscos que os afetam (ambientais, tecnológicos, financeiros, económicos, sociais) a resiliência traduz um novo referencial teórico para encarar o processo de urbanização, influenciando um modo de planear para reduzir vulnerabilidades e para robustecer os mecanismos que permitem desencadear respostas adaptativas e/ou transformativas (Jha, Miner e Stanton-Geddes, 2013). A forma de encontrar respostas à crescente ocorrência de fenómenos extremos (ambientais e tecnológicos) tem convocado os investigadores para a procura de novas estruturas conceptuais que colocam a tónica na resiliência para a sustentabilidade das comunidades face a múltiplas tensões e à emergência crescente de fenómenos imprevistos (Tobin, 1999). Esta busca iniciou-se no estudo de estruturas e materiais levado a cabo pela física, que foi ampliado pela biologia e pela ecologia até ser reinterpretado à luz da teoria da complexidade para se aproximar dos sistemas socioambientais e da forma como estes podem ser geridos e planeados (tabela 2).
Área científica de origem | Princípios | Enfoques | Natureza da perturbação | ||
Progressão lenta | Embate repentino | ||||
Resiliência de estruturas e materiais | Física | O sistema retorna ao ponto de partida reassumindo o estádio de equilíbrio (ou a configuração) pré-choque. Baseia-se na resistência ao choque, na estabilidade e no funcionamento por referência a uma fórmula de equilíbrio. O sistema resiste a alterações na sua “normalidade” e quando estas acontecem, este organiza-se em torno da capacidade de a repor. Medidas: tempo de retorno ao estádio de equilíbrio pré-choque. | Equilíbrio único | Mantêm as normas estabelecidas, entendidas como “naturais”. Ex: Pleno emprego, não obstante da fragilidade da base económica. | Retoma a “normalidade. Exemplo: o nível de emprego é reposto na trajetória que seguia antes da perturbação. |
Resiliência ecológica | Biologia Ecologia | A magnitude do choque ou distúrbio que o sistema consegue absorver, antes de se desestruturar e de catapultar para outro sistema de funcionamento. Baseia-se na análise sistémica e considera os feedbacks gerados no sistema assumido como um todo. Medidas: robustez, capacidade de absorção de perturbações. | Múltiplos equilíbrios | Melhora o desempenho. Exemplo: os níveis de emprego pós-choque superam os que existiam pré-choque. | Estabelece uma “nova normalidade” Exemplo: o crescimento do emprego posiciona-se em trajetórias diferentes aprendendo com a exposição das vulnerabilidades durante o choque. |
Resiliência adaptativa | Teoria da complexidade sistemas adaptativos | Capacidade (anticipativa ou reativa) de reorganização das formas e/ou das funções de um sistema de modo a minimizar o efeito de um choque desestabilizador. Medidas: Vulnerabilidade à surpresa; stress e choque; flexibilidade das respostas; nível de diversidade e de redundância. | Sistemas adaptativos complexos | Adaptação incremental (ou contínua). Exemplo: a aprendizagem gerada pelo choque permite reduzir a perda de emprego, a sua vulnerabilidade e volatilidade. | Adaptação incremental (ou contínua). Exemplo: a (re)distribuição dos recursos, poder, oportunidades de modo a suportar níveis de empregabilidade aceitáveis. |
Fonte: Elaboração dos autores.
A ideia é que a capacidade de manter os sistemas urbanos dentro dos limites de um regime de funcionamento convoca um conjunto de conceitos (adaptabilidade, transportabilidade, robustez, flexibilidade, redundância, modularidade) que, quando se articulam, estruturam um referencial teórico.
Considerando a amplitude da constelação e conceitos que gravitam em torno da resiliência, de seguida apresenta-se uma sistematização onde se coloca enfase nos que consideramos mais relevantes: adaptabilidade; ciclo adaptativo; panarquia, vulnerabilidade, robustez, diversidade, transformabilidade, regime, limiar, sustentabilidade. Esta seleção de conceitos privilegia o enfoque territorial (sob uma perspetiva evolutiva) e serve o propósito de auxiliar à construção de interpretações partilhadas capazes de informar a prática de planeamento urbano.
Adaptabilidade dos sistemas socioambientais
Um sistema socioambiental reproduz o padrão de interações entre ecossistemas e comunidades, desenhado por cadeias de geometria variável que ativam efeitos do tipo “bumerangue”. O conceito enfatiza a perspetiva de que o homem é apenas mais um elemento da natureza. A sua interação desencadeia múltiplas ações e reações (Folke et al., 2010). Por sua vez, adaptabilidade corresponde à capacidade que os atores, num sistema urbano, demonstram para gerir a resiliência, deslocando o sistema dentro de uma bacia de funcionamento, ou procedendo à transição para uma nova. A adaptabilidade pode implicar: i) afastar, ou aproximar um sistema de um determinado limiar; ii) tornar um limiar mais fácil, ou mais difícil de atingir; iii) promover interações multinível para evitar, ou gerar, resiliência a escalas mais abrangentes.
Nos sistemas socioambientais, a adaptabilidade captura a capacidade de aprendizagem, associa-a à experiência e ao conhecimento de modo a proceder a reorientações solicitadas por pressões externas e por processos de transformação internos, mantendo a trajetória de desenvolvimento, dentro de um determinado regime de funcionamento. Compreende a aptidão que os atores demonstram para incrementar a resiliência, gerir a mudança e não cristalizar estádios (Walker et al., 2004; Folke et al., 2010).
Ciclo adaptativo e Panarquia
O ciclo adaptativo (figura 2) descreve quatro fases por onde transitam os sistemas adaptativos complexos: exploração (r), conservação (k), libertação (Ω) e renovação (α). Um sistema adaptativo pode estar orientado para dois propósitos contraditórios: i) crescimento e estabilidade; e, ii) mudança (capacidade de assimilar e desencadear novidade) e variabilidade (proceder a renovação constante).
Do ponto de vista da economia dos sistemas urbanos, o ciclo adaptativo estrutura-se em duas partes de um mesmo laço: de um lado, posicionam-se as condições de emergência, desenvolvimento e estabilização de uma dada estrutura económica (trajetória de crescimento entre as fases de exploração e de conservação, apresentando elevada resiliência); do outro, encontram-se os fatores de cristalização e declínio, acumulando-se o capital (recursos, materiais, conhecimento), gerado na fase anterior. Neste estádio a resiliência diminui. O nó do laço desenha-se na abertura que esta fase de conservação proporciona para que se crie potencial novo, novos tipos de atividades (criatividade e reorganização).
Existem dinâmicas de interatividade entre as partes específicas do ciclo adaptativo. Este dispositivo conceptual permite compreender a complexidade do funcionamento dos sistemas ecológicos e sociais na medida em que compreende interações entre escalas e entre os diferentes níveis do sistema. Admite contaminações bidimensionais resultantes da tensão entre persistência e mudança. Decorre da interação entre as escalas (espaciais e temporais) a montante e a jusante, entre as forças que concorrem para a estabilidade e as que provocam mudanças (Holling, 2001; Simmie & Martin, 2010).
A ideia de Panarquia amplifica os mecanismos dinâmicos entre as partes do ciclo adaptativo (figura 3). Permite compreender a complexidade do funcionamento dos sistemas socioambientais acrescentando interações entre escalas (mico, meso e macro) e a forma como influenciam a conectividade e o potencial dos sistemas. Sob determinadas condições, um sistema sujeito a modificações ínfimas em variáveis de progressão lenta, pode desencadear saltos de estado (passando de uma fase de libertação (Ω) para conservação (k) ou desta para um período de renovação (α). Por outro lado, por influência, as variáveis de progressão rápida (invenções, ideias criativas, preferências, mercados, fluxos de pessoas com dimensão regenerativa da estrutura demográfica) impelem (catapultam) um sistema urbano de um regime de funcionamento cíclico para outro. A noção de Panarquia desorganiza as mecânicas hierárquicas e cíclicas, sem as anular.
“Three selected levels of a panarchy are illustrated, to emphasize the two connections that are critical in creating and sustaining adaptive capability. One is the "revolt" connection, which can cause a critical change in one cycle to cascade up to a vulnerable stage in a larger and slower one. The other is the "remember" connection, which facilitates renewal by drawing on the potential that has been accumulated and stored in a larger, slower cycle.” Gunderson & Holling (2002, p. 75).
Resume-se assim o cerne do conceito de sustentabilidade. Em períodos curtos e acelerados ocorrem invenções, experimentações e testes. Em períodos mais alongados e lentos estabiliza-se e conserva-se capital (a memória acumulada) de experiências bem-sucedidas. A panarquia comporta ao mesmo tempo potencial criativo/renovador e de acumulação/conservação. As interações entre os ciclos (panarquia) combinam aprendizagem com continuidade. Isto esclarece o significado de desenvolvimento sustentável. A sustentabilidade é a capacidade de criar, testar e manter adaptatabilidade. O desenvolvimento é o processo de criar, testar e manter oportunidades. A expressão que combina os dois, desenvolvimento sustentável, não é um oximoro, representa uma parceria lógica.
Vulnerabilidade, robustez e diversidade
Robustez, tal como resiliência, pressupõe capacidade de manter o sistema em funcionamento num cenário de crise. Está, contudo, relacionada com um sistema rígido e com um tipo específico de crise. Implica que o sistema observado não extravase determinados limites territoriais e que se localize numa escala temporal determinada, abrigando-o de perturbações externas.
Ampliar ou manter a robustez numa secção do sistema ou numa escala particular pode implicar introduzir vulnerabilidades noutras. A robustez de um sistema urbano pode ser avaliada recorrendo ao nível de desagregação que comporta e ao comportamento que manifesta quando se lhe removem alguns pontos de suporte. Colapsa instantaneamente ou entra em falência gradual (Cifdaloz et al., 1969; Cifdaloz, Regmi, Anderies e Rodriguez, 2010; Martin-Breen & Anderies, 2011; Salat & Bourdic, 2012a; Normandin et al., 2019).
Vulnerabilidade é apresentada, amiúde, como antónimo de resiliência. Todavia requer a todo o tempo que se clarifique: vulnerável a quê? Define a exposição a riscos de uma base económica (por exemplo) a perturbações exógenas decorrente do seu grau de abertura (concentração nas exportações, dependência de importações em fatores estratégicos). Representa a suscetibilidade para sofrer estragos perante uma determinada perturbação/crise/rutura ( Briguglio et al., 2008; Martin-Breen & Anderies, 2011).
Na estrutura dos sistemas urbanos, a diversidade (económica, social, morfológica) corresponde à riqueza da combinação de objetos, atores, estruturas e associa-se ao potencial de criatividade e de afirmação de justiça espacial. Por tal, a diversidade pode ser tomada como uma meta de planeamento urbano. Amiúde, a subtração de diversidade nos sistemas urbanos (levada a cabo sobretudo ao longo do século XX) é associada à dispersão do povoamento, à segmentação da cidade por funções (afastamento de atividades industriais do centro, criação de novas cidades e novos polos monofuncionais numa região alargada) e à maior segregação sócio-espacial. Multifuncionalidade, diversidade ou heterogeneidade são noções que se reforçam. Batty et al., (2004), acompanhando a lógica “Christaliana” propõem uma medida de diversidade, ponderando o número de atividades numa determinada área tomando em linha de conta o total presente num sistema urbano. Diversidade requer existência de níveis mínimos de redundância, opondo-se à otimização, caraterística muito própria da lógica da eficiência.
Indissociável destas leituras, a diversidade surge como uma propriedade fundamental da resiliência e da sustentabilidade, assinalando a existência de múltiplas formas, ambientes, atividades e comunidades, garantindo maior capital para gerar oportunidades e circunscrevendo a dependência face a núcleos restritos vistos como motores de progresso. Diversidade reflete a variedade, ou a capacidade que uma comunidade detém para gerar recursos (redes de contactos, laços sociais, reciprocidade, coordenação e cooperação…), e conhecimento para construir sistemas urbanos (cidades ou regiões) resilientes. Manter condições para gerar mudanças incrementais contínuas é um pré-requisito para projetar a estrutura dos sistemas urbanos no longo prazo e assegurar a sua diversidade (Holling & Meffe, 1996; Fiksel, 2003; Fainstein, 2005; Batty et al., 2004; Gotham & Campanella, 2010; Gotham & Campanella, 2010; Perrings, 2006).
Transformabilidade, regime e limiar
Transformabilidade compreende a possibilidade de estruturar um novo sistema, introduzindo-lhe variáveis condutoras de trajetórias que deem lugar a novos modos de vida, que prefigurem novas paisagens e que, a prazo, rearranjem as fórmulas da estabilidade (sistema em equilíbrio, figura 4). Quando as configurações ecológicas, económicas ou sociais (incluindo as políticas) conferem insustentabilidade ao modelo de funcionamento existente, constituindo bloqueios (sistema sob pressão, figura 4), convoca-se transformabilidade. Abre-se espaço para mudanças de regime (Walker et al., 2004).
A transformalidade incremental pressupõe a introdução faseada de uma ou mais variáveis (novos estilos de vida, novos modelos urbanos), em escalas de proximidade por via de processos do tipo “bottom up”. Enquanto se mantém a resiliência do sistema na sua globalidade num nível elevado, vão-se introduzindo focos de mudanças alimentando a dinâmica de desenvolvimento incremental (Folke et al., 2010).
Por sua vez, a ideia de regime corresponde a um conjunto de estados possíveis que não fazem perigar a estabilidade (funcionamento gerador de prosperidade) de um sistema urbano, de uma paisagem, de uma região (Walker e Meyers, 2004). Limiar (“threshold”) é o ponto de rotura (“linha de festo”) entre dois regimes (sistema em crise, figura 4) de funcionamento (duas bacias de atração) de um sistema. É a fronteira que separa dois modelos de funcionamento distintos (Walker e Meyers, 2004) que, uma vez ultrapassada, o sistema passa a obedecer a um novo regime de funcionamento (sistema em mudança de regime, figura 4) sendo este mais ou menos desejável, mais ou menos justo, mais ou menos sustentável.
Resiliência, normativo para a sustentabilidade
Preservar qualquer coisa ou qualquer função, assinala uma estrutura que se deseja proteger para que possa perdurar e ser útil no futuro. Em algumas configurações, o caminho para a sustentabilidade pode não envolver ganhos de resiliência porque preconiza posicionamentos de aversão ao risco, atuações centradas na recuperação aquando de uma crise ou porque dirige o foco para a capitalização de eficiência. Aceitando que disrupções de certo tipo e de certa magnitude não podem ser evitadas, então, a sustentabilidade enquanto projeção de determinados quadros no longo prazo, requer incrementos constantes de resiliência (adaptação com ganhos constantes), (Martin-Breen & Anderies, 2011).
Questões como “que tipos de fontes de energia serão o motor das cidades no futuro?”, ou “será possível sustentar o crescimento, evitando disrupções socioeconómicas e disfuncionalidades ambientais?” interpõem-se, na discussão em torno da sustentabilidade e da resiliência (Fiksel, 2006). Tendo em conta o ponto de vista deste autor, equacionar a sustentabilidade global suscita o aprofundamento da abordagem sistémica nos processos de desenvolvimento. Desligando as estratégias de desenvolvimento deste quadro de análise sistémica, aumentam-se riscos de exposição e inflamam-se consequências indesejadas.
A sustentabilidade inseminou o discurso e as políticas desde as que se direcionam ao desenvolvimento urbano até às estratégias de gestão empresarial. A crescente prevalência do fenómeno da urbanização faz com que a discussão da resiliência no quadro dos sistemas urbanos ganhe cada vez maior importância (Fiksel, 2006).
Sistemas urbanos resilientes congregam dimensões naturais e componentes socioeconómicas em configurações que lhes permitam sobreviver, adaptar-se e progredir, mesmo em situações de incerteza e de disrupção, cuja natureza e extensão sejam desconhecidas (Fiksel, 2006). O mesmo será dizer que a sustentabilidade das estruturas que suportam a vida (incluindo a humana), num sistema global em rápidas e sucessivas mutações, depende da resiliência que estas conseguirem internalizar. Fiksel (2006) encerra a confrontação entre a perspetiva de aprofundamento da abrangência sistémica ao desenvolvimento sustentável fazendo a defesa de que, num quadro onde as mudanças ambientais se aceleram, o desígnio da sustentabilidade (referencial para as políticas de desenvolvimento, há mais de duas décadas) requer que se considere a resiliência em várias componentes, desde logo no equacionamento dos modelos de desenvolvimento das comunidades e nas estruturas produtivas que as suportam.
“In the face of ever-increasing global complexity and volatility, it is essential to move beyond a simplistic “steady state” model of sustainability. Instead, we need to develop adaptive policies and strategies that enable societal and industrial institutions to cope with unexpected challenges, balancing their need to flourish and grow with long-term concerns about human and ecological well-being” Fiksel (2006, p. 20)
O paradoxo que o conceito de sustentabilidade não conseguiu resolver consubstancia-se no facto de, ao avançar nos esforços para alcançar equilíbrios, sempre que o faz tendo em conta apenas uma das pontas do “tridente” (sociedade, economia, ambiente), isso irá resultar em insustentabilidade nas restantes. Se isto é válido na perspetiva setorial, não é menos do ponto de vista territorial. No relatório de Brundtland, alerta-se, por exemplo, para o facto de os esforços para incrementar a sustentabilidade dos países desenvolvidos (por via do crescimento económico), poderiam aumentar a insustentabilidade económica, social e ambiental dos países em desenvolvimento (Brundtland et al., 1987).
Por este prisma, sustentabilidade ambiental pode querer dizer, para alguns, insustentabilidade económica. Sustentabilidade social pode ser interpretada, por algumas entidades, como impeditivo do desenvolvimento de infraestruturas físicas. Ou seja, invariavelmente, do ponto de vista territorial e/ou do ponto de vista setorial, a sustentabilidade como desígnio implica uma postura de competitividade. Em teoria, todas as frentes devem participar num jogo de “soma-zero”. Quando tal não sucede, dever-se-ia proceder a compensações do tipo Protocolo de Quioto (Gross, 2008). Contudo, o que nos é sugerido pelo lastro do desenvolvimento das últimas décadas (UN-HABITAT, 2012b, United Nations Secretary-General’s High-level Panel on Global Sustainability, 2012) é desconforme com esta mecânica de balança.
Até certo ponto, a estrutura de pensamento que sustenta a sustentabilidade alinha-se com o objetivo de equilibrar o sistema global, capitalizando equilíbrios em cadeia nos subsistemas que o constituem. Gross, (2008, p. 6) categoriza esta linha de ação como “the maintenance of a predictable world…with as little fluctuation as possible.” Uma sistemática perda de flexibilidade na estrutura dos sistemas pode ser o resultado mais plausível deste processo. Sob certas condições, estruturas estáticas, equilibradas, estáveis, podem sofrer mudanças dramáticas, desagregando-se e perdendo integridade. Estarão, por isso mesmo, mais perto do colapso do que da durabilidade virtuosa. Por não exigir a capacidade de prever o futuro, ficando-se pelo objetivo de criar qualidades que permitam absorver o inesperado, o paradigma da resiliência pode assumir-se como um rumo, porventura, capaz de sustentar a sustentabilidade.
Conjugando as duas linhas até aqui apresentadas: i) resiliência como normativo para se atingir a sustentabilidade (Pinho et al., 2008); e ii) resiliência como meta que exige dinamismo para ser atingida (ao contrário da sustentabilidade que parece assentar numa certa rigidez), pode dizer-se que a sustentabilidade como desígnio civilizacional sai reforçada com o paradigma da resiliência. Construir resiliência num mundo urbanizado e nos sistemas que o sustentam, exige que se planeie perante um futuro incerto e que se capacitem as comunidades para acompanhar o movimento da onda, em vez de serem arrastadas para o turbilhão que se forma no seu interior (Gross, 2008).
Planear resiliência implica conceber um ponto de vista dicotómico, colocando a análise dos processos de transição no seu âmago. Implica que se avaliem os mecanismos de mudança de paradigma para uma nova visão de desenvolvimento sustentável
“(…) where resilience implies normalizing environmentally sustainable practices. This is more closely aligned with the original drive towards sustainability seen in the Bruntland Report (WCED, 1987), and thus we return to seeking a more profound understanding of how sustainability will work in practice in the complexity of our cities.” Collier et al. (2013)
Resiliência e sustentabilidade surgem lado a lado na literatura da gestão de riscos e na identificação de vulnerabilidades (desde logo, ambientais, mas também sociais e económicas). Está em jogo a capacidade que as comunidades apresentam para lidar com situações críticas. Na mobilização de respostas misturam-se pressupostos de ordem social, económica, política e biofísica. Três perspetivas teóricas podem ser usadas para compreender a relação entre resiliência e sustentabilidade: uma orientada para a mitigação, outra para a recuperação e uma terceira para averiguar fatores estruturais e cognitivos (Tobin, 1999).
Todavia, importa considerar que em muitos casos, as comunidades não pretendem retomar o ciclo anterior, tão pouco projetá-lo para o futuro. Não desejam completar o ciclo mecanicamente: crise, impactos, recuperação; crise, impactos, recuperação; crise, (…). Concorrem para aqui as questões da distribuição de recursos, das iniquidades sociais, da heterogeneidade da comunidade, da coordenação das intervenções, transpondo-se em graus de influência diferenciados para o processo de recuperação. É preciso reconhecer que as crises (ambientais, sociais, económicas), não afetam de maneira semelhante todos os grupos nem, dentro do mesmo grupo, todos os indivíduos. É usual constatar que os grupos mais marginalizados são mais vulneráveis sendo estes também os que mais dificuldades apresentam para desencadear processos de recuperação do tipo retomar a… ou, do tipo redirecionar a trajetória de desenvolvimento para… (Tobin, 1999).
O objetivo da sustentabilidade num processo de desenvolvimento está relacionado com a criação e manutenção de prosperidade nos sistemas social, económico e ecológico. Está em causa a possibilidade de se manterem opções em aberto para direcionar o desenvolvimento de um território. As comunidades dependem dos serviços ambientais (água doce, oxigénio, produção de alimentos, energia, etc.), que podem assumir circunstâncias indesejáveis, expondo-as a uma pluralidade de vulnerabilidades. Neste contexto, vulnerabilidade tem que ver com a propensão que um sistema socioambiental apresenta para sofrer danos por via da exposição a crises. Envolve exposição a esses episódios, a sensibilidade que daí resulta e a resiliência que decorre de medidas capazes de reduzir os impactos em crises futuras.
“Planear para a resiliência não implica somente sustentar capacidades ou opções de desenvolvimento (no presente ou para o futuro) é também uma questão de segurança ambiental, social e económica” (Germany Advisory Council on Global Change, 2000; Adger et al., 2001, citados em Folke et al., 2002, p. 14). Acrescenta-se aqui uma noção abrangente de segurança, mediante a qual se pugna pela manutenção de opções em aberto para delinear rumos de desenvolvimento, quer no presente, quer no futuro.
A ligação entre resiliência, diversidade e sustentabilidade ganha peso nos estudos que se dedicam aos processos de desenvolvimento. O seu equacionamento conduz-nos para o campo dos sistemas adaptativos complexos. Neste espaço ensaiam-se roturas de perspetiva com vista a teorizar a relação entre sistemas ambientais e sociais de modo dinâmico, enjeitando a dicotomia equilíbrio/desequilíbrio. Uma das condições evocadas que abrem a porta para a não linearidade é a aceção de que, pelo menos em parte, os sistemas têm capacidades de auto-organização. Esta capacidade resulta em múltiplas combinações de possibilidades de resposta que um sistema socioambiental pode desenvolver, de modo a contornar, reagir, ou ultrapassar períodos de crise (Folke et al., 2002).
A urbanização associada a várias componentes da globalização provoca afastamentos entre as comunidades e os ecossistemas que as suportam (através de desligamentos entre as áreas de produção de serviços e bens ambientais, e económicos e de conhecimento), dos territórios onde são consumidos. Assiste-se a um mecanismo de alienação que estilhaça a noção de dependência face a fontes de recursos e funções fornecidas pelos ecossistemas e por outros sistemas produtivos que se localizam fora das fronteiras do espaço de vida quotidiano de cada pessoa (Folke et al., 2002). Tais dependências passam para um plano imaginário, em narrativas quase ficcionadas que se vão congeminando, consoante se colam mais, ou menos, fragmentos da linha mediática diária.
Folke et al., (2002), apontam três aspetos importantes quando se perspetiva a resiliência no contexto do desenvolvimento sustentável: i) enfatizam-se as políticas que consideram as interconexões entre a biosfera e o nível de desenvolvimento das sociedades; ii) destacam a necessidade de ampliar a flexibilidade e a criação de plataformas colaborativas para a gestão dos sistemas sociais e ecológicos com instituições que estão recetivas a integrar aprendizagens e a criar capacidade adaptativa. Estas estruturas devem ser capazes de gerar diversidade de opções de planeamento e gestão, passíveis de responder à perfusão da incerteza e a surpresas de vária ordem; iii) devem ser desenvolvidos indicadores que permitam detetar mudanças graduais e sinais precoces de perdas de resiliência, posicionando-os no panorama geral onde se observem os limiares de funcionamento dos sistemas.
Ganhos de resiliência consolidam a probabilidade de sustentar um percurso de desenvolvimento sustentável num quadro de estruturas ambientais e sociais em mudança, dominadas pela imprevisibilidade, quanto às opções de futuro. Sistemas socioambientais e socioeconómicos mais resilientes serão os que se capacitam para absorver choques e a gerir a incerteza e o inesperado, sem terem de introduzir grandes roturas na sua estrutura de funcionamento. Para além do mais, “conservam e amplificam a diversidade (de espécies, de oportunidades de desenvolvimento, de espaços de inovação e de opções de asseverar prosperidade económica) necessária para renovar, reorganizar e adaptar os territórios face a circunstâncias inesperadas que convocam transformações” (Folke et al., 2002).
Fiksel (2003), aborda a relação entre sustentabilidade e resiliência no funcionamento das estruturas empresariais, chamando a atenção para o ciclo de vida dos sistemas. Diz-nos que tradicionalmente, os sistemas regulados pelos princípios provenientes da engenharia, procuram antecipar e resistir às disrupções, não evitando a condição de vulnerabilidade face a fatores imprevistos. Para o autor, a alternativa consiste em desenhar sistemas que internalizam resiliência, capitalizando propriedades que considera fundamentais: diversidade, eficiência, adaptabilidade e coesão, uma vez que o trabalho desenvolvido no campo da sustentabilidade se deslocou maioritariamente para o incremento da eficiência ecológica.
Latitude da aplicação do referencial teórico da resiliência
O referencial da resiliência tem sido aplicado com diferentes enfoques. É vasta a latitude da aplicação de conceitos, transposta para as dimensões de análise e depois convertidos em indicadores (tabela 3). As frentes de trabalho empírico orientam-se para estudos de planeamento com incidência socioeconómica, ambiental, da saúde, na escala dos sistemas urbanos e regionais.
As dimensões de análise mais transversais são a confrontação de condições pré e pós-crise nas disparidades, na conectividade, na diversidade, na resistência, na recuperação, na transformação, nas questões relacionadas com a avaliação dos riscos e das vulnerabilidades assim como as que consideram as condições de governança. Avaliam-se as condições do mercado de trabalho, a adaptabilidade da mão-de-obra, as condições de prevenção, de contingência e de não retorno ao status quo amplificador de vulnerabilidades, o ecossistema normativo a robustez das trajetórias de desenvolvimento, pré e pós-crise.
Dimensões de análise | Dimensões de avaliação e indicadores-tipo (referências) | ||
---|---|---|---|
Perfil de resiliência prevalecente (âmbito) | Económica/social | Disparidades regionais pré e pós-crise; conectividade entre indústrias pré e pós-crise. | População; PIB; emprego; desemprego (Giannakis & Bruggeman, 2017); (Clark & Bailey, 2018); (Faggian et al., 2018). |
Resistência; recuperação; reorientação; renovação; estrutura empresarial e industrial; mercado de trabalho; sistema de governança; acesso a fontes de financiamento. | Emprego; nível de concentração (dependência) do emprego); coeficientes de localização; diversidade vs especialização; adaptabilidade do perfil de competências da mão-de-obra; diversidade de oportunidades de emprego; diversidade de fontes de financiamento (Martin, 2012); (Martin et al., 2016); (Sensier et al., 2016). | ||
Risco; resistência; reorientação; recuperação. | Trajetória de desenvolvimento pré-crise; vulnerabilidade e exposição à crise; profundidade da reação à crise; extensão e natureza do ajustamento à crise; trajetória de desenvolvimento regional pós-crise (Giacometti & Teräs, 2019). | ||
Ambiental | Perceção do risco face a crises; robustez dos sistemas de governança para gerir os riscos; investimento na redução do risco e no reforço da resiliência; estratégias preventivas e resposta do tipo “Build Back Better” nas fases de recuperação, reabilitação e reconstrução pós-crise (United Nations, 2015). | ||
Planeamento do uso do solo para reforçar a resiliência das comunidades, evitando e minimizando os efeitos das crises. | Número de vítimas; sofrimento físico e psicológico; danos em património; perdas de produtividade; danos em infraestruturas; contração das atividades económicas; degradação ambiental; perda de espécies e habitats; perturbação do funcionamento das comunidades; degradação da qualidade de vida (Disaster & Handbook, 2020). | ||
Saúde | Planeamento urbano para comunidades resilientes e saudáveis; prevenção e recuperação de crises pandémicas. | Densidade urbana; sistemas de corredores de espaços verdes; qualidade do ar e circulação do ar; coesão e desenvolvimento das comunidades; transportes; distribuição de água, saneamento e salubridade; energia; rede de serviços de saúde (UN-Habitat, 2020). | |
Comunidade /ecológico | Manter a diversidade e a redundância; gerir a conectividade; gerir as variáveis de progressão lenta e os efeitos de feedback; fomentar a adoção do racional dos sistemas adaptativos complexos; encorajar aprendizagem coletiva; alargar a participação; promover sistemas de governança policêntrica (Stockholm Resilience Center, 2014). | ||
Governança; conhecimento e educação; avaliação e gestão do risco; redução das vulnerabilidades; prevenção e resposta a crises e a catástrofes. | Sistemas normativos e de regulação; capacitação institucional; capacidade de coordenação; capacidade ciêntifica, de inovação e técnica; “accountability”, participação e parcerias; saúde e condições de vida; proteção social; planeamento preventivo e de contingência; avaliação do risco e das vulnerabilidades; recursos e infraestruturas de emergência; diversidade de fontes de financiamento; capacidade de resposta e de recuperação (Twigg et al., 2013). | ||
Urbana | Multifuncionalidade; redundância e modularidade; diversidade; conectividade; planeamento adaptativo; | Diversidade da estrutura produtiva; diversidade do mercado de emprego; vitalidade da estrutura produtiva; distribuição da riqueza; urbanização e forma urbana (Gonçalves, 2018b); (Gonçalves, 2018a). | |
Produtividade; desenvolvimento de infraestruturas; qualidade de vida; equidade e inclusão social; sustentabilidade ambiental. | Índice de produtividade; índice de fiabilidade das infraestruturas; índice de qualidade de vida; índice de equidade; índice de sustentabilidade ambiental (Nexus City Index) (Schlör et al., 2018). | ||
Liderança e estratégia, saúde e qualidade de vida; economia e sociedade; infraestruturas e ambiente. | Liderança e gestão efetiva; empoderamento dos stakeholders; integração do ciclo de planeamento; redução das vulnerabilidades; diversidade de fontes de rendimento/emprego; capilaridade da proteção social; identidade coletiva, confiança e solidariedade intra-comunidade; inteligibilidade dos sistemas normativo e de segurança; exposição a riscos; provisão e redundância de serviços críticos; fiabilidade dos sistemas de transportes e comunicações; robustez da economia (The Rockefeller Foundation, 2016). |
Fonte: Elaboração dos autores.
As diferentes frentes de aplicação estão patentes nos manuais publicados por instituições internacionais ou em resultados de investigação científica (tabela 4), incorporam a natureza do referencial teórico identificando fatores que conduzem as comunidades, os sistemas urbanos e as regiões a crises desencadeadas por disrupções de governança, económica, social, ambiental, de saúde. Para além disso, formulam modelos de planeamento preventivo, de contingência e de resposta pró-resistência (evitar a crise), pró-recuperação (retomar ao que era antes da crise) e/ou pró-resiliência (Build Back Better).
Planeamento pró-resiliência dos sistemas urbanos
Resiliência compreende a capacidade que um sistema demonstra para absorver distúrbios e reorganizar-se enquanto desencadeia mudanças que lhe permitem manter a integridade das suas funções, da sua estrutura, das competências de mobilizar mecanismos de resposta e de manutenção de identidade.
Planeamento | |||
Racionalista | Colaborativo | pró-resiliência | |
Racional | Racionalidade instrumental | Racionalidade comunicativa | Racionalidade integradora; convergência entre racionalidade instrumental e comunicativa |
Atores | indivíduos e técnicos | Indivíduos inseridos em grupos de interesses implicados | Grupos interdisciplinares com conhecimento técnico; grupos sociais encarados como agentes que internalizam (e aprendem) a gerir a mudança |
Relações entre atores e centros de poder | Decisões sobre metas que todos devem atingir | Geração de consensos | Compromissos |
Escala de tempo | médio/longo prazo | Curto prazo | Longo prazo; abordagem sistémica; ações imediatas |
Foco | Resolução de problemas | Acordos e decisões coletivas | Ultrapassar os constrangimentos impostos pela racionalidade instrumental |
Objetivo | Definir as ações mais eficientes para atingir as metas | Gerar consensos e posicionamentos partilhados | Definir prioridades para uma situação de não-retorno; prevenir distúrbios de manifestação gradual ou de grande magnitude |
Resultado | Decisões suportadas por conhecimento técnico | Decisões coletivas baseadas na construção de valores comuns | Soluções flexíveis ajustadas à heterogeneidade espacial e às mutações funcionais e temporais |
Contexto/substância | Decisões compreensíveis | O contexto é um resultado do processo | Rotinas que facilitem a intervenção em áreas nucleares e prioritárias |
Sistema de valores | Valores individuais | Construção de valores comuns | Valores universais de bem-comum |
Critérios para avaliar resultados | Eficiência | Extensão a base de consenso | Consolidação/erosão dos atributos que conferem resiliência |
Fonte: Elaboração dos autores.
Do ponto de vista dos sistemas urbanos, resiliência categoriza a competência das regiões, sistemas urbanos e cidades, para antecipar, preparar-se para, responder a, e recuperar de tensões e de crises. É a aptidão que os sistemas urbanos manifestam para evitar bloqueios (mantendo-os abaixo do nível ótimo de desenvolvimento, tendo em conta as suas capacidades/recursos), sustentar uma dada trajetória ou transitar para outra que se afigure mais profícua.
Planeamento pró-resiliência visa equipar um sistema urbano com características que lhe permita lidar com mudanças graduais e repentinas (tabela 3). Implica: i) adotar uma perspetiva dinâmica desligada da mecânica linear de retorno a posições de equilíbrio/estabilidade do racional, retomar a normalidade; ii) considerar a heterogeneidade económica, social e ecológica não se fixando apenas nas formas, mas também nos processos (funcionamento) dos sistemas urbanos; assentar em análises sistémicas que permitam identificar os focos de vulnerabilidade, os mais aptos para admitir adaptabilidade e os que requerem transformabilidade. Viabilizado uma perspetiva sistémica, definem-se meios deixando-se os fins em aberto. Convoca flexibilidade para adaptações incrementais que beneficiem de distúrbios esperados e inesperados. Conjuga a perspetiva de longo prazo com ação imediata (Eraydin, 2013).
Planear resiliência para a sustentabilidade dos sistemas socioecológicos exige primeiramente que se clarifique a relação homem/natureza e de seguida, que se identifique “what to sustain and why” (Folke et al., 2002). O desafio coloca-se no plano de “sustentar capacidade (mediante gestão ativa), de assegurar prosperidade continuada no desenvolvimento socioeconómico, aqui referida como resiliência evolutiva” (Folke et al., 2002). A resiliência evolutiva é instrumental. É a adoção deste paradigma na gestão dos recursos (e dos territórios) que viabiliza a sustentabilidade, vista na interpenetração de escalas (de tempo e de espaço - figura 3). É um referencial que viabiliza tanto a conceptualização como o desenvolvimento de instrumentos para gerir a transição dos sistemas urbanos para a sustentabilidade, amarrando as suas trajetórias de desenvolvimento a perspetivas de longo prazo que dão primazia à aprendizagem contínua (inovação) adaptação incremental e transformabilidade (Olazabal & Pascual, 2011).
Para se estudar a capacidade de resiliência dos territórios, não podem ser desconsideradas as componentes que garantem adaptabilidade continuada, porque é por elas que gradualmente se catalisa aqualidade de vida das comunidades. Rejeita-se, assim, a conceção da resiliência territorial alicerçada nas capacidades de manter, ou retomar, situações de equilíbrio evocativas de uma leitura estática ou, quando muito, reativa.
Na definição de cidade resiliente mesclam-se as dimensões física e humana. A parte estrutural, quando sujeita a situações disruptivas, tem de estar preparada para sobreviver e funcionar sob stresse. Deste modo, a cidade resiliente corresponde a uma rede sustentável de sistemas físicos e de comunidades humanas. Os sistemas físicos conjugam elementos construídos, com outros de cariz biofísico. Incluem-se aqui os corredores das estradas e ruas, os edifícios, infraestruturas, comunicações, redes de distribuição de energia, mas também a rede de drenagem, os solos, a topografia, a geologia e outros sistemas naturais. Ou seja, “os sistemas físicos funcionam como corpo da cidade, os seus ossos, artérias, músculos” (Godschalk, 2003). Associando à componente física a dimensão humana da cidade, o autor refere-se às comunidades humanas como sendo “as componentes sociais e institucionais da cidade”. Incluem estruturas formais e informais, associações estáveis e outras ad hoc que impactam as áreas urbanas: escolas, bairros, agências, organizações, empresas, grupos de interesses e outros que tais. Em suma, “as comunidades funcionam como o cérebro da cidade, direcionando as suas atividades, respondendo às suas necessidades e aprendendo com as suas experiências” (Godschalk, 2003). Resulta daqui a necessidade de integração entre o suporte físico da cidade e a sua componente humana, para decantar o que poderá conferir resiliência à sua trajetória evolutiva.
Várias incursões aproximam o plano da identificação de vulnerabilidades com as competências da resiliência. Cidade resiliente pode ser vista como sendo a que “é capaz de gerar, nos seus sistemas, recursos suficientes para se autossustentar, apresenta competência para lidar com episódios que constituem ameaças, que podem infligir danos, que podem conduzir à sua destruição”. Ballard-Rosa (2010, p. 175) refletindo em torno do conceito, evoca o que chama de “abordagem histórica, de banda larga, de Mumford” conferindo-lhe validade quando diz que a cidade é um objeto de arquitetura, social, natural e cultural. Contudo, compreende que o trabalho de Henri Lefebvre complementa a definição de Mumford, de acordo com o qual a cidade é simultaneamente: “uma arena onde ocorrem práticas espaciais, um espaço de representações e um espaço de representação”. Ballard-Rosa (2010, p. 176) apresenta a sua definição de cidade resiliente valorizando a “interface entre o ambiente natural e construído (materialidades), entre o fluxo de pessoas e mercadorias (mobilidades), mas também entre representações espaciais conflituantes (memórias) e as centralizações de poder (divisão/segregação)”.
Podemos associar à definição de cidade resiliente as quatro dimensões apresentadas acima1 (eventualmente como sustentáculos do conceito), à noção de metabolismo urbano. Neste plano, Folke (1997) citado em Resilience Aliance (2007, p. 11), diz-nos que as populações urbanas dependem da produtividade dos ecossistemas, onde as suas cidades estão integradas. Estes ecossistemas, para além das transferências de energia, disponibilizam “bens materiais e serviços não-materiais, ambos alicerces do bem-estar e da qualidade de vida urbana”. A noção de sistema socioambiental convoca uma conceção de resiliência, através da qual se reforça a necessidade de integração sistémica entre a componente social e a estrutura ecológica, posicionando-as, a ambas, no mesmo patamar.
Quanto às reconfigurações que a definição de resiliência foi sofrendo, estas são indissociáveis do gradual aumento de propostas de aplicação prática, por parte de disciplinas externas à física dos materiais ou à engenharia, onde a sua aplicação, assente no seu significado mais direto, cedo afirmou relevância, nomeadamente, na observação do comportamento de estruturas construídas (resistência e flexibilidade).
A resiliência urbana não se circunscreve na função de resposta a perturbações, corporizada, por exemplo, na capacidade de recuperar do impacto de fenómenos extremos. Quando se aplica o referencial da resiliência aos sistemas socioambientais regionais, considerando que os contextos de incerteza e de surpresa são uma constante, percebe-se que quanto mais flexíveis e capazes de proceder a ajustamentos constantes, mais habilitados estão a capitalizar as oportunidades que o futuro possa trazer. Ou seja, as “competências” no sentido da resiliência, de entre as quais se notam a flexibilidade para conviver com o inesperado e a adaptação, são elementos chave para o futuro das cidades. A ideia de que as cidades estão sujeitas a pressões constantes que, acumuladas, podem provocar ruturas, é um ponto central na abordagem ao estudo da resiliência dos espaços urbanos.
A investigação dedicada à análise das respostas dos sistemas urbanos, quando resilientes, aos efeitos das crises provocadas por desastres naturais (ou de qualquer outra proveniência), sugere que estes comportam as seguintes características:
Apresentam redundâncias. Manifestadas em propriedades funcionais sobrepostas garantindo que, quando uma parte do sistema falha, tal não implica colapso integral;
Comportam diversidade. Traduzida em diferenciação de funcionalidades de modo a proteger o sistema face a vários tipos de ameaças. Tal não implica que se reneguem vocações;
Internalizam eficiência. Verificada no rácio positivo de energia fornecida e consumida. Tal não implica que se descure a necessidade de duplicação;
Funcionam com autonomia. Manifestando capacidade de dispensar ou mesmo repelir mecanismos de controlo externo. Tal não implica que se proceda ao seu isolamento;
São resistentes. Têm poder suficiente para resistir a pressões externas. Tal não significa que se cristalizem posições, funções, valências, trajetórias;
Apresentam interdependências. As componentes do sistema estão todas conectadas, suportando-se mutuamente. Tal não implica que se deixe de relevar aqueles que são os nós mais relevantes;
Desencadeiam adaptabilidade. Capitalizam em flexibilidade para mudar a capacidade de aprender com a experiência. Tal não implica que se desvalorizem os substratos de permanências, de estabilidade;
São colaborativos. Criam oportunidades e incentivam a participação dos vários atores. Tal não implica que se suprima a rapidez e flexibilidade (timing) na decisão.
A reunião das interações entre todas estas propriedades associáveis às estruturas urbanas pode ser perspetivada na capacidade de suprimir, preservar ou ampliar a sua complexidade, tornando-se, assim, mais resilientes.
Reflexões finais
Resiliência urbana resulta do efeito conjugado de: i) resistência (nível de sensibilidade ou consistência da reação de um sistema urbano numa situação de crise); ii) recuperação (velocidade ou extensão da recuperação que um sistema urbano consegue desencadear); iii) reorientação (amplitude da reorientação e de adaptação que um sistema urbano mobiliza em resposta ou em antecipação a uma crise; iv) renovação (consistência da nova trajetória de desenvolvimento desencadeada).
No fulcro desta reflexão colocou-se a possibilidade de discutir e de fixar entendimentos cruzados entre sustentabilidade e de resiliência. Este esforço tem de passar pelo reequacionamento das condições (ou da falta delas) para perseguir a sustentabilidade, não como mecanismo de equilíbrios setoriais, mas como desígnio civilizacional. É neste âmbito que se revisita o conceito de sustentabilidade.
Chama-se à coação o racional de equilíbrio que perpassa pelas décadas de adoção da sustentabilidade como chapéu para as políticas de desenvolvimento, realçando-se a desligação entre os esforços de aplicação e os componentes do cerne do conceito de sustentabilidade. Dos sete objetivos formulados originalmente (e a partir daí desenvolvidos), resulta o esquema sobejamente conhecido da interconexão das três esferas: economia, sociedade, ambiente. Raramente se lhe atribui predicados, como os que constam do referencial matricial (relatório de Brundtland), onde se acrescenta desenvolvimento à economia, equidade à sociedade e sustentabilidade ao ambiente.
Planear resiliência implica um ponto de vista dicotómico, colocando a análise dos processos de transição no seu âmago. Implica, também, que se avaliem os mecanismos de mudança de paradigma para uma nova visão de desenvolvimento sustentável onde a resiliência é vista como normativo, reaproximando o conceito da sua raiz primeira e alicerçando entendimentos mais profundos sobre os modos de injetar sustentabilidade na crescente complexidade que os sistemas urbanos internalizam. É neste lastro que medra o paradigma da resiliência e que mais aproveita considerar a sua vertente evolutiva.
Uma região, tal como uma cidade ou uma comunidade resiliente desenvolve um modelo de planeamento assente em mudanças graduais e continuadas, por onde se ampliam oportunidades para todos os grupos etários e sociais, estabelece-se e consolida-se uma rede de conectividades, internaliza-se (na sua matriz socioeconómica) condições de aprendizagem que permitem evitar ou inovar a partir dos erros e de quadros de tensão. Para além disto, posiciona-se de modo a integrar sistemas territoriais que potenciem interações em múltiplas escalas. No centro das atuações, está a necessidade de facilitar uma cultura de planeamento pró-resiliência envolvendo a esfera do estado, das organizações e dos indivíduos.
Uma comunidade resiliente mantém, reganha, ou estabelece resultados favoráveis ao longo do tempo (não obstante os episódios de crises), bem assim, desencadeia ininterruptamente mudanças profícuas nos quadros de vidas quotidianos. Resiliência não corresponde a uma meta fixa, antes pelo contrário, categoriza uma propriedade dinâmica, uma competência (que se manifesta, se constrói ou se destrói). Reproduz ritmos de mudanças incrementais. É mais do que persistência reiterada e adaptabilidade diligente. Compreende transformabilidade (Folke et al., 2010; Martin-Breen & Anderies, 2011; Simmie & Martin, 2010; Martin, 2012; ESPON, 2012).
Traduz o nível de alterações que um sistema urbano tem capacidade de absorver antes de se reorganizar em torno de um novo núcleo de estruturas e processos. Compreende a flexibilidade para capitalizar oportunidades geradas por incertezas e por episódios inesperados. Corresponde à dinâmica que viabiliza incrementos constantes na trajetória de desenvolvimento, em diferentes cenários. Não se circunscreve à capacidade de reação, de antecipação e de recuperação (ângulo afeto à lógica de equilíbrio) face a crises, reproduz a latitude da persistência no sistema urbano, o ritmo de transição (capacidade de introduzir continuamente mudanças incrementais) e o grau de transformabilidade (extensão da reconfiguração no sistema) (Resilience Aliance, 2007; Chelleri, 2012; Simmie & Martin, 2010).