Nota Preliminar
A cultura hip-hop pode ser encarada como uma forma de revalorização identitária, mas também como uma forma de circulação de ideias e de imagens que são, essencialmente, representações de múltiplas sensibilidades (Fradique, 2003). Partindo desta premissa, destacamos que o rap tem contribuído largamente para estes mesmos processos, em diversos níveis. Por um lado, evidenciamos a importância que os artistas conferem aos seus contextos habitacionais, às suas vivências, às contestações e às afirmações individuais e coletivas, mas também, aos imaginários simbólicos que são construídos através do uso da linguagem e da palavra, enquanto forma de reivindicação espacial, enaltecendo o sentido e o sentimento de comunidade.
Os estudos académicos e científicos feitos sobre o hip-hop estabelecem uma ponte entre esta cultura e os grupos juvenis urbanos e suburbanos (Sitoe & Guerra, 2019). Nesse sentido, o hip-hop assume-se como uma ferramenta que incita à reflexão e à ação. Basta ter em linha de conta o vasto impacto nos modos como os jovens - pertencentes a esta cultura - se veem a si mesmos, como se apresentam e como comunicam entre si e com o mundo (Librado, 2010). O rap tem-se assumido como um escape que possibilita a prolificação de posições de afirmação identitária por parte dos artistas, isto é, quem são e de onde vêm. Mais, a escolha do rap enquanto elemento identificativo possui uma larga influência sobre a comunidade e demais atores sociais, aspeto esse tanto mais evidente quando pensámos nos seus contextos vivenciais. O hip-hop procura reafirmar as identidades coletivas e individuais, enquanto promove, de forma silenciosa e latente, formas de resistência (Johansson & Lalander, 2012; Guerra, 2017).
Partindo destes pressupostos, entendemos o hip-hop como sendo uma parte integrante de um processo alargado de descolonização das vidas e dos espaços destes atores sociais (Wakeford & Rodriguez, 2018; Librado, 2010). Tal entendimento materializa-se na rutura com ideias preconcebidas sobre aquilo que pode ser encarado como um fragmento identitário externo e interno (Librado, 2010). O processo de descolonização prende-se com o facto de o hip-hop pretender quebrar as formas tradicionais de estes indivíduos - artistas e não artistas - se verem a si mesmos, mas também procura romper com os modos como são vistos por outros. Esta descolonização promove e enfatiza as apropriações, as identidades e os modos de vida das culturas juvenis, dentro de um panorama de partilha global e de mudança social alargada.
Nos subúrbios o sol nasce sempre mais cedo: O bairro como mundo da vida
Neste contexto de mudança social, os problemas estruturais são mascarados. A persistência de processos de marginalização e discriminação é ainda visível, uma vez que nem todos os segmentos da população acompanham esta mudança. De facto, parece-nos mais correto referir que a mudança que não consegue acompanhar todos os segmentos da população. Uma vez que, paradoxalmente, a mudança parece realçar ainda mais as margens das cidades, ou seja, aquelas que ocupam um lugar dentro da não-cidade (Augé, 2012, Guerra, 2017).
As margens da cidade e o tecido social subvalorizado - defendido nas teorias de Wacquant (2014) como um espelho daquilo que este sociólogo designa por marginalidade urbana avançada - estão frequentemente associados a duas dimensões básicas e estruturais: a habitação social - que marca e demarca o espaço vivido - e a exclusão social - da cidade, da escola, da cultura dominante, do consumo, do mercado de trabalho. Neste artigo, uma visão destas franjas - a par da habitação e da exclusão social - é proposta através das suas canções, nomeadamente de rap. Estes eixos analíticos sofrem com as diversas e constantes mudanças sociais, interligando e seguindo (ou não) as lógicas do mercado económico, enquanto se destacam como uma resposta alternativa aos interesses e às questões políticas. Além disso, apesar de serem temas que têm sido alvo de várias intervenções e conceções teóricas, ainda se assumem como espaços profundamente desiguais. Do nosso ponto de vista, a necessidade de encorajar novas abordagens, intervenções e formas de compreensão reflexiva e analítica ainda é vista como premente, tanto nos lugares invisíveis da cidade (Augé, 2012; Barbosa et al, 2020) como junto das populações que neles vivem, destacando-se, neste sentido, os artistas que dão uma cara os rostos invisíveis e marginalizados (Wacquant, 2014) das cidades e da sociedade.
O rap deve ser analisado de uma perspetiva educativa sobre os territórios (Guerra, 2020b). Como uma produção discursiva, textual e melódica sobre diversos fenómenos sociais, mas também deve ser entendida como uma forma de resistência (Johansson & Lalander, 2012), tomemos como exemplo o rap egípcio e tunisino (García & Pàmpols, 2020). Contudo, como nos diz Paula Guerra (2020b) a preocupação com a cidade não nos faz desviar o olhar dos problemas que afetam os indivíduos; de facto, devemos ter presente a complexidade destes problemas, no sentido em que é neste contexto que surge a virtualidade do rap, como um género musical ancorado numa trajetória individual, marcada por profundas exclusões, desigualdades e marginalidades. Partindo destas premissas, distanciamo-nos dos estudos que argumentam que, quanto mais afastados do centro da cidade, maiores são as desigualdades que colocam os indivíduos à margem, causando e/ou agravando as divisões no tecido urbano (Guerra, 2020b; Dadshpoor & Ghazaie, 2019; Rhodes & Schechter, 2014; Guerra, 2002; Murie & Musterd, 2004; Levitas, 1998). Tal distanciamento prende-se com as escolhas metodológicas que são frequentemente feitas. Diversas teorias sobre a segregação, desenvolvidas na América, na Ásia e na Europa, tendem a seguir a mesma linha de pensamento, quando são aplicadas aos contextos de habitação social. Parece existir uma necessidade constante de se estabelecerem ligações - com base no uso de metodologias quantitativas - entre a segregação e outros fatores, tais como as classes sociais ou etnia, sem se ter em consideração as experiências dos indivíduos que vivenciam tais processos, nem tão-pouco as formas de enfrentamento e de resistência, por eles ativadas.
A combinação entre eixos físicos e sociais, para a criação de um imaginário por parte dos indivíduos que vivenciam estes processos, conduz - por vezes - a que estes se vejam como sendo excluídos, segregados e marginalizados. Certos estudos (Guerra, 2002; Sousa, 2018) referem a existência de uma espécie de processo de interiorização destas características que leva a sistemas profundos e sistemáticos de autoexclusão através dos quais surgem dualidades e atitudes paradoxais. É neste contexto que introduzimos o papel do rap como forma de resistência (Guerra, 2020a, 2017; Johansson & Lalander, 2012) e de combate às dinâmicas sociais normativas. O nosso objetivo passa por demonstrar de que modo é que a cultura hip-hop, nomeadamente o rap, não é apenas um mercado, uma forma de desvio ou até mesmo um modo de desordem social, cultural e espacial, mas sim algo que pode ser entendido como sendo um ritual simbólico e como uma forma de resistência, mas sobretudo, como uma forma de dizer a sociedade (Becker, 1963; 1997).
Mas a resistência é feita onde? Em vários locais, porém, o nosso foco são os bairros sociais, enquanto elemento chave identificativo - teórica e empiricamente - das margens da cidade e da marginalidade urbana, nos moldes como Wacquant (2014) propõe. Então, partindo da ótica da compreensão do espaço a partir dos significados que lhe são atribuídos, os bairros sociais - dentro de uma conceção filosófica de espaço - podem ser definidos fenomenologicamente como algo que vai além da sua localização física. A definição de bairro, enquanto espaço, reside numa coleção de elementos que caracterizam o ambiente e que permitem que esse mesmo possa ser entendido como um lugar (Norberg-Schulz, 1974). Paralelamente, o sentido de lugar que é atribuído aos espaços, por parte dos indivíduos que dele se apropriam, implica características imateriais, uma vez que pretende entender o significado dos símbolos que estão presentes nas suas atividades diárias (Schütz, 2012). Esta terminologia fenomenológica e sociológica, associada a este entendimento dos significados, permite que se promova a conceção da existência de elementos artísticos e culturais que podem ser tidos como um meio de interseção entre os sujeitos e os espaços (Schütz & Luckmann, 2009). Para tal compreensão, apropriamo-nos do conceito de identidade de bairro (Costa, 2008, p. 108), dado que procurámos patentear a relação entre bairro social, música e apropriações, no sentido destes lugares (Norberg-Schulz, 1974) confluírem com processos sociais endógenos e exógenos. Pretendemos perceber a influência do lugar em tudo o resto, através da visão artística. Falámos assim de um sentido de unidade e de pertença, algo que era anteriormente desvalorizado. Vejamos que o facto de pertencer a uma comunidade se torna num elemento identitário fundamental, especialmente quanto pensámos nas experiências e nas aprendizagens enraizadas em contextos locais, como os bairros sociais, por exemplo. Estamos perante um elemento essencial de relacionamento humano, a necessidade de pertencer (Costa, 2008; Silva, 2018; Pais, 2005).
Também a compreensão e a descrição do bairro enquanto elemento identitário, como componente discursiva - simbolicamente construída e exteriorizada - é a principal temática que procurámos ver explanada no nosso processo de recolha de informação, uma vez que mencionámos que os lugares são construídos com base nas apropriações que são feitas pelos sujeitos (Norberg-Schulz, 1974; Harris & Little, 2019). Com isto enfatizámos um mundo de possibilidades, que permite a fuga aos problemas sociais e que promove, simultaneamente, a esperança num futuro melhor. No âmago do campo musical - e interligando-o com os contextos habitacionais - evidenciamos a relevância da cultura hip-hop, como uma espécie de little culture (McCracken, 1998) que se inscreve num fenómeno global e que procura caracterizar a heterogeneidade dos grupos sociais, bem como a diferenciação entre as suas perspetivas, discursos e representações, assumindo-se como um modelo de afirmação etária, geracional e social que transcende os processos de autoexclusão, para dar lugar à autoafirmação, ao empoderamento e à resistência (Guerra & Quintela, 2016). É com base nestes pressupostos que explicamos aquilo que fora referido, isto é, a virtualidade do rap.
São poetas de cantigas: a cultura hip-hop portuguesa em perspetiva
É sabido que a cultura hip-hop surgiu no início dos anos 1970 do século XX no South Bronx, na cidade de Nova Iorque e, nas décadas seguintes, acabou por se expandir um pouco por todos os continentes. Esta iniciativa que começou por ser circunscrita a uma prática local, uma little culture (McCracken, 1998), associada particularmente às comunidades hispânicas e afrodescendentes que residiam naquela zona habitacional desfavorecida. Atualmente a cultura hip-hop é vista como um fenómeno transnacional das culturas juvenis (Forman, 2002; Mitchell, 2001; Guerra & Quintela, 2016), isto é, assumiu destaque como um tipo de produção e de prática artística que possui o poder de ditar a forma como os indivíduos se vestem, como comunicam, e ainda influencia os estilos de vida (Chaney, 2001). Dentro desta cultura globalizada, quatro elementos podem ser destacados, nomeadamente o Dj, o graffiti, o breakdance e o rap. Estes elementos são a base dos movimentos de empoderamento e de resistência dos jovens, mas especialmente dos jovens que são vítimas de segregação, exclusão e estigmatização, prefigurando as suas identidades de bairro (Costa, 2008). Estas identidades podem ser transmitidas através da música, da dança e de outras formas de expressão artística (Allen, 2005; Librado, 2010). De todos os elementos, o rap foi aquele que adquiriu maior visibilidade e que se assumiu como uma forma de arte dominante, talvez em parte por combinar a musicalidade e o liricismo.
“No que se refere ao RAP, este nasce da conjugação das palavras rhythm and poetry, que procura realçar a dependência existente entre o nível do ritmo e o da poesia (palavra).” (Guerra, 2019b, p. 204). Tal como nos refere Guerra (2019b), o rap possui como principal objetivo a denúncia de problemas sociais relativos às minorias, tratando-se de uma oralidade rítmica, que é cantada sobre um acompanhamento musical (Rose, 1995). Numa primeira fase, o rap estava associado a manifestações espontâneas que tinham como palco as ruas. Falámos das sessões de improviso (free-styling), que assumiam a lógica de contar histórias e de construção de narrativas de forma ritmada. Já neste sentido, os locais e os lugares desempenhavam um papel fundamental para esta cultura, uma vez que eram feitas disputas de domínio sob determinado território. Assim, “No fundo, o RAP refere-se explicitamente aos contextos geográficos onde se insere e às condições socioeconómicas das suas populações, ou seja, refere-se a lugares concretos e identificáveis.” (Guerra, 2019b, p.205).
À medida que o movimento crescia e adquiria um número mais elevado de seguidores e de entusiastas, o mesmo foi sofrendo metamorfoses até se cimentar dentro de uma perspetiva da autenticidade cultural. Nesse sentido, o hip-hop passa a incluir diversos elementos, tais como a moda, uma linguagem específica, o conhecimento das ruas e algumas atitudes, como por exemplo as relações paradigmáticas com a polícia e com os sentimentos de insegurança que são vividos (Allen, 2005).
Apesar de ainda não serem abundantes os estudos sobre a cultura hip-hop em Portugal, Campos e Simões (2014) evidenciam nas suas pesquisas a importância simbólica que este movimento possui em Portugal, especialmente junto de jovens oriundos de contextos urbanos e sociais desfavorecidos. Com o fim da década de 70 e o início dos anos 80 (Simões, 2017), Portugal tornou-se num país imigratório, fenómeno esse que também influenciou a cultura hip-hop, criando uma associação entre o género rap e “raça”. As populações afro-lusófonas que vieram para o país após o término da Guerra Colonial, concentraram-se em favelas - em bairros sociais como os conhecemos hoje - e promoveram a sua integração e os seus convívios através do rap crioulo africano (Campos & Simões, 2014). Patenteámos assim, no caso português, aquilo que Rose (1994) identificou na cultura hip-hop. Este tipo de cultura é um meio através do qual os jovens afro descendentes (e não só) contrariavam a opressão, a marginalização e a discriminação (Librado, 2010).
Podemos afirmar que os estudos de caso, feitos um pouco por todo o mundo, retratam o hip-hop dentro de características locais, não se apresentando como uma réplica do modelo americano (Librado, 2010). Verificámos então que o hip-hop no contexto português se articula com expressões culturais específicas, especialmente quando pensámos nos contextos que surgem nos videoclipes, na sonoridade, nos símbolos e nas experiências que são retratadas, enfatizando o poder da linguagem (Basu & Lamelle, 2006), criando sons únicos. O próprio consumo e o conhecimento que é dado aos artistas varia de acordo com os contextos em que estas práticas se realizam. Assim, é à luz destes contextos e destas especificidades que o hip-hop e o rap devem ser interpretados e analisados, não seguindo cegamente os moldes tradicionais de representação desta cultura, como sendo profícua em violência.
A caneta é a fuga para a verdade: um apontamento metodológico
Guerra (2020b) nos seus trabalhos remete para a importância dos contributos de Calvino (1996), no que diz respeito à análise da sociedade como uma alcachofra. Esta metáfora refere-se ao facto de as sociedades serem compostas por múltiplas camadas de análise, em que cada dimensão dá origem a novas descobertas. A visão destes dois autores é assumida neste artigo como sendo o nosso princípio heurístico. Pretendemos encarar estas produções artísticas, como sendo singulares do ponto de vista do seu valor social e artístico, mas também pelo facto de as músicas serem um campo de sentidos que é construído individual e coletivamente. Numa perspetiva de alcachofra, selecionámos um conjunto de treze canções do género rap que - ao longo de seis anos - nos oferecem uma visão das diferentes camadas e dimensões que compuseram e compõem a sociedade portuguesa. Atendendo ao nosso referencial analítico, encontramo-nos perante um estudo de caso que procura investigar as manifestações artísticas que retratam os quotidianos e os modos de vida dos bairros sociais. No fundo, estamos perante discursos que revelam formas subliminares de denúncia, de afirmação, mas também de intervenção/ação, especialmente quando pensámos em temáticas como a pobreza, o estigma e a discriminação. Estas músicas e estes artistas passam a ser vistos como um objeto contemplativo, mas também como um produto da realidade social, na medida em que os seus discursos e escolhas artísticas configuram representações acerca da realidade social (Silva et. al, 2018).
Em termos metodológicos, optámos pela análise de conteúdo, seguindo uma lógica categorial que foi criada a posteriori, sendo tal um elemento fundamental para obtermos informações e pistas sobre as condições de criação artística e de receção dos meios que nos propomos analisar (Guerra, 2020b). Trata-se de um processo através do qual procurámos transmitir a existência de uma relação que enfatiza a compreensão dos modelos tradicionais de organização geográfica periferia-centro-periferia, visto que o hip-hop “percorre bairro a bairro, numa espécie de expedição que reserva o centro para ocasiões especiais” (Fradique, 1999, p. 124).
A relação entre os artistas e o espaço urbano é o nosso foco, sendo tal fator essencial para a delimitação do nosso corpo analítico. Quanto aos processos de categorização sociológica, estes integram uma análise de categorização social, na qual é necessário relacionar as estruturas analíticas, neste caso as produções musicais, com as estruturas sociais e culturais. Foi premente captar as relações entre o artista e o espaço urbano e, para tal, assentámos o nosso corpus na análise de um conjunto de 15 canções. A escolha destas músicas e destes artistas teve duas ordens de razão subjacentes: por um lado, a notoriedade das canções dentro do cenário musical do rap em Portugal, partindo da visualização dos videoclipes, mas também pelo número de likes e de partilhas nas plataformas digitais, como o YouTube; por outro lado, evidenciámos as temáticas que são abordadas, nomeadamente as lutas, a cidade, o bairro e o desejo de mudança. Torna-se premente compreender o rap enquanto movimento urbano, no sentido em que este se assume como o líder da luta contra a não-cidade e contra os lugares e sujeitos invisibilizados, conferindo-lhes o papel de protagonistas dentro destas narrativas, que são por eles construídas (Frith, 1996). Em suma, trata-se de perceber até que ponto o contexto urbano e periférico possui impactos nos processos vivenciais e, claro está, como é que os mesmos se encontram espelhados nos retratos musicais apresentados.
Sou eu quem escreve as minhas barras: o bairro, a música e as artes de cidadania
Thornton (1995) foi a primeira a desenvolver o conceito de capital subcultural em relação aos estilos musicais. Esta evidencia que a detenção de determinado capital subcultural era um modo de distinção entre indivíduos. Aqueles que eram detentores desse capital - que era relativo às club cultures (Thornton, 1995) - assumiam um status distinto e distintivo dos restantes indivíduos, fazendo com que fosse feita uma diferenciação entre o que era considerado mainstream e underground. Nas suas pesquisas, o mainstream era visto como aquilo a que os jovens se queriam opor, enfatizando dimensões como a autenticidade das produções artísticas e musicais. Por oposição, Jensen (2006) afirma que as subculturas são utilizadas para fazer referência a características, a estilos, a conhecimentos e práticas que são recompensadas com admiração, com status e com prestígio, dentro dessa subcultura (Guerra, 2020a). Na nossa abordagem, os contributos de Jensen (2006) são um dos pilares para a explicação dos nossos estudos de caso, especialmente no que se refere à compreensão das diferenças nos conteúdos e nos modos como os artistas retratam a problemática do bairro social. Deste modo, destacámos que as subculturas devem ser compreendidas e explicadas partindo de uma abordagem que enfatize a compreensão destas disparidades, e que permita a interpretação das posições sociais que são ocupadas pelos participantes nessa subcultura.
Ainda Jensen (2006) alude que o capital subcultural é (re)produzido pelas lutas entre grupos ou entre indivíduos, mais especificamente sobre o que deve ou não deve ser considerado como sendo de bom gosto, atrativo e desejável. Os movimentos e as tendências noutros campos e noutras subculturas afetam estes processos, pois os participantes dessa subcultura, trazem com frequência elementos de outras subculturas e da cultura popular, algo que também acontece nos nossos estudos de caso, com a inserção de elementos musicais como o trap (como é o caso do $tag One1, por exemplo) ou do rap crioulo (Campos & Simões, 2014; Campos et al, 2021) na maioria das produções de Mota Jr.2. Outro aspeto que vemos patente nos nossos objetos de estudo, é que o capital subcultural ganha forma e expressão dentro de uma lógica DIY (Bennett & Guerra, 2018), isto porque a maioria dos artistas escolhidos não possui contrato com uma editora como a Universal (com exceção do Kappa Jota3).
Dentro da nossa categoria analítica referente aos bairros sociais como um todo, denotámos uma série de elementos que considerámos significativos para a nossa análise. Por um lado, temos referências ao bairro enquanto elemento estruturador das identidades de bairro (Costa, 2008). Encontrámos espelhadas as problemáticas do preconceito e ainda, alguns discursos sobre os modos de vida do bairro (Sousa, 2018). Vejamos alguns exemplos caracterizadores e que refletem a questão do status e do reconhecimento (Jensen, 2006; Thornton, 1995):
“Sim vim do bairro e ser bairrista é o meu rótulo” (Piruka4, Impossíveis, 2019). “Isto é Madorna 75 brother (…) / O teu pai olha de lado, eu tenho o bairro na aparência” (Dillaz5, Mo Boy, 2016). “E foi dessa forma que eu fui criado no bairro” (Mota Jr., Não digas que não, 2019) “Desmistifico quem pensa que em bairros só há marginais, todos iguais/ Por mais que inoves, a tua sina é ser da mesma escória” (Mundo Segundo6 ft Sam the Kid7, Também faz parte, 2016). “Que ainda há tropas no bairro em casas com ratos e baratas” (Kappa Jota, Tribo, 2018).
Desta feita, consoante a visibilidade de cada artista, eram assumidas, frequentemente, posições mais agressivas e/ou defensivas face ao bairro, procurando passar a mensagem de que o seu rap era bom por ser feito no bairro, estando aqui patentes as questões da autenticidade (Jensen, 2006; Thornton, 1995), mas também algumas críticas subjacentes ao facto de os demais indivíduos falarem sobre os bairros, sem saberem como estes são experienciados. De seguida, um dos artistas - o último excerto abaixo apresentado -, ainda faz referência ao graffiti e ao facto de ser um elemento identitário, relevante da cultura hip-hop e que também se relaciona com processos identitários de afirmação individual e coletiva. Aliás, o graffiti pode ainda ser encarado como uma forma de artivismo profícua na sociedade contemporânea (Campos & Sequeira, 2019),
“Ela diz que é a boss / Não sabe o que é vir do ghetto hustle como nós” (Mynda’Guevara8, Na nossa língua, 2020). “Porque nos subúrbios o sol levanta-se sempre mais cedo” (Estraca9, Subúrbios, 2016). “Então não me venhas com campanhas nem com manhas para me dizeres que és o rei do Bairro” (Ferry10 ft Sam the Kid, Rei do Bairro, 2018). “E olha bem para o interior/ Aqui ninguém sabe o que é um tag” (Keso11, Escritor de interiores, 2016).
Desde os anos 2000 que nos deparámos com um aumento da intensificação dos processos de comercialização, daí terem começado a emergir no mundo do hip-hop nomes que ainda hoje se afiguram no panorama nacional como casos de sucesso comercial, tais como o Sam the Kid ou o Mundo Segundo. Os artistas que passaram a estar inseridos nas grandes editoras deixam de produzir para um público restrito, daí ser necessário fazerem alterações no estilo musical e nos conteúdos das letras (Simões, Nunes & Campos, 2015). Simões, Nunes e Campos (2015) mencionam a existência de representações que são associadas a uma cultura do hip-hop genuína. Estas representações associam-se ao facto de esta prática ser subversiva e detentora de uma dimensão política, a mesma é destituída de intenções e de objetivos comerciais, defende uma identidade estética própria e possui uma dimensão normativa, na verdade podem ser efetivadas como um meio de exercer uma cidadania ativa e participativa.
Ora estas questões suscitam algumas dúvidas pois se pensarmos na cultura hip-hop, mais concretamente no rap, quer seja nacional ou internacionalmente, podemos aferir que já não existe uma cultura hip-hop genuína. As dimensões contradizem-se umas às outras pois, apesar de ainda existirem artistas que produzem conteúdos com uma dimensão política, como García e Pàmpols (2020) afirmam, os objetivos comerciais encontram-se sempre presentes, até porque, inevitavelmente, se uma música for divulgada em plataformas como o YouTube, acresce a hipótese de esta se tornar viral12, tal como já aconteceu com muitos artistas, e com alguns dos nossos estudos de caso. A presença de identidades estéticas próprias também é contestável, basta ver a difusão do estilo trap em praticamente todos os géneros musicais da música popular, mas também outros sub-géneros como o trap rap, o gangsta rap ou ainda o narco-rap13. Além disso, a profissionalização da música é sempre desejada e valorizada (Oliveira, 2019; Simões et al., 2015), e por vezes sobrepõe-se à identidade coletiva, à pertença a uma comunidade que é regulada de acordo com a autenticidade dos produtos e das práticas culturais. Está então espelhada uma dualidade entre o acesso ao mercado e a autenticidade. Então, tendo como base estes paradoxos entre sucesso e a autenticidade simbólica, considerámos interessante perceber de que modo é que referências às vivências dos artistas estavam presentes nas suas letras. Qual é a relevância da família ou dos grupos de pares.
Estes processos vivenciais que foram identificados nas músicas, de certo modo também refletem aquilo que Norberg-Schulz (1974) e que Harris e Little (2019) argumentam sobre o facto de serem estas as apropriações e as identidades que se conjugam nos espaços físicos, que lhes proporcionam a noção de lugar. Aqui neste ponto também verificámos diferenças entre os artistas, pois aqueles com maior projeção mediática exteriorizavam as suas relações familiares e como conseguiram superar essas dinâmicas, e além disso os modos como relatam as vicissitudes económicas ou sociais, refletem sentimentos de aceitação. Estamos assim perante lirismos distintos e antagónicos. Observemos:
“Vivi um inferno com um pai agarrado/ E uma mãe numa cura com mais uma cria (…) Desde puto que vi os meus pais / Em caminhos que não deviam” (Piruka, Impossíveis, 2019). “Não minto, sou sortudo, eu tenho um bicho na traqueia/ Mo boy, eu fiz de tudo, eu tive crise mas matei-a/ Já mentalizado que o meu rap dá cadeia/ Sossegado e abelhudo, eu fabrico na colmeia” (Dillaz, Mo boy, 2016). “Mano eu sou filho da Mena / Criado no meio dos problemas” (Mota Jr., Não digas que não, 2019). “Um futuro que não sorri numa bela face trancada como um livro que não li, com informação que faltava/ Mas não deixei de ser eu, fui do breu ao apogeu” (Mundo Segundo ft Sam the Kid, Também faz parte, 2016). “Mami, eu fingo que não sei/ Que eu não vi toda a merda que vi e que eu não sinto este vazio imenso/ Que não voy a morir por dentro e que eu já segui em frente, não” (X-Tense14, Bolero, 2019).
Esta questão da aceitação, deve-se sobretudo ao facto de estes terem atingido projeção mediática. Aceitam essas vivências e encaram-nas como sendo fundamentais para que estes conseguissem alcançar a profissionalização artística (Simões, Nunes & Campos, 2015). Paralelamente também nos debruçámos sobre discursos de resistência (Johansson & Lalander, 2012), no sentido de esta ser entendida como um conjunto de transformações progressivas e radicais nas estruturas sociais e culturais dos indivíduos, podendo ser encarada como um sinal de mudança social. No caso dos artistas com menor projeção, verificámos que os discursos diferem em alguns pontos. Por um lado, temos discursos que ainda falam das lutas constantes no bairro, relacionadas com a famílias, mas também sobre a esperança de atingirem o estrelato, como por exemplo:
“Matuto no dia em que a puta da vida me dê aquilo que eu mereço/ Sou puto mas queria que a luta devida desse o devido apreço” ($tag One, Bela Vista, 2018). “Não trocava um pai rico por aquele que me fez gente/ Apesar de ele ser pobre e ex-toxicodependente / Filho de uma mãe solteira que luta para que não falte nada” (Alcool Club, Os meus direitos, 2014). “Onde a tua mãe aos 14 anos engravidou/ Onde o teu pai semeou e não ficou/Onde a pobreza penetrou e se instalou” (Estraca, Subúrbios, 2016). “Raios partam esta aldeia/ Tou a chegar à Invicta para pertencer à alcateia” (Keso, Escritor de interiores, 2016).
Como já destacámos, desde o final dos anos 70 que a cultura hip-hop evoluiu de um rap intimista e localizado nas ruas, tornando-se num género musical altamente comercializado por todo o mundo (Librado, 2010; Simões & Campos, 2014; Ray, 2016). Esse fenómeno fez com que muitos artistas ficassem conhecidos por representarem determinadas zonas e determinados bairros, como é o caso por exemplo dos artistas Piruka e Dillaz, com o bairro da Madorna, em Lisboa, ou o Sam the Kid, com o caso de Chelas, em Lisboa, e ainda o $tag One com o Bairro das Cabanas, no Porto. Os seus conteúdos e as letras possuem características autobiográficas, no sentido em que demonstram as suas jornadas e as suas experiências enquanto jovens residentes de um contexto social e habitacional desfavorecido. Com a globalização do hip-hop, e atendendo ao papel que as plataformas digitais possuem no lançamento das carreiras destes artistas, encontramo-nos perante diferentes personas que realçam as identidades locais, mas que também se deixam influenciar e absorvem elementos artísticos globais (Ray, 2016). As suas produções artísticas assumem-se como projeções do self latente nos discursos urbanos, transmitidos num palco nacional, regional e local (Rose, 1995).
As localidades e as identidades que são assumidas na cultura hip-hop, não são estanques em si mesmas. Assumimos que os discursos, a performance, a persona artística e o self são materializações de localidades urbanas e suburbanas que sugerem plataformas de alcance para as vozes marginalizadas e tradicionalmente excluídas dos discursos públicos. Além disso, apresentam-se como uma fonte de autenticidade para essas mesmas identidades (Ray, 2016; Rose, 1995). Estabelecendo uma ponte com os excertos que foram apresentados anteriormente, verifica-se aquilo que Ray (2016) enfatiza nas suas pesquisas sobre a autenticidade dos discursos, o chamado “keeping it real”, que dentro do rap resulta num essencialismo estratégico (Bucholtz, 2003), através do qual os rappers se tornam em ícones, e a partir daí revelam as suas experiências urbanas. O facto de retratarem aquilo que foram os seus quotidianos em determinada altura, é o que lhes confere este sentido de autenticidade e que os legitima dentro da cultura hip-hop. Assim, também nestas dimensões das vivências e noutras que ainda iremos analisar, tais como a linguagem ou os consumos, verificámos as relações e as referências às localizações geográficas, bem como a ideologias que, no entender nos artistas, dão origem a retratos dessa mesma localidade.
Ainda relacionado com este último ponto, acautelámos uma categoria inerente aos consumos que indicassem modos de apresentação de si, categoria essa que designámos por corporeidade. Nesse sentido, importa destacar que pretendemos perceber de que modo é que o contexto influencia esta dimensão. Este conceito de corporeidade, contempla em si mesmo inúmeras expressões estéticas e dimensões simbólicas, sendo que o corpo e a forma como são apropriados e instrumentalizados, contribuem para que este seja entendido como um operador social. Atendendo à elevada comercialização que o rap e a cultura hip-hop têm vindo a ser alvo na última década (Librado, 2010; Simões & Campos, 2014; Ray, 2016), e tendo em conta a importância que os processos de autenticidade (Ray, 2016) possuem nesta mesma cultura, conseguimos identificar aquilo que Bourdieu (1998) defendia, sobre os indivíduos serem alvo de processos de interiorização da exterioridade - no sentido da absorção das tendência comerciais da indústria musical global e anglo-saxónica, em concreto - mas também identificámos processos de exteriorização da interioridade, entrando aqui em jogo os seus discursos sobre o seu vestuário, as suas tatuagens, os acessórios e outros símbolos de ostentação. É através do corpo e da utilização do mesmo enquanto performance, que o artista se fixa socialmente e paralelamente, também é através do corpo e da sua imagem que os mesmos reproduzem de forma arbitrária a ordem do mundo (Guerra, 2020b), bem como as imagens culturais e sociais dos seus locais de origem (Pais, 2006).
Para estas práticas de performance e, de certo modo, de autoafirmação visual e estética perante um público, identificámos algumas divergências. Dentro dos artistas que analisámos e as letras que escolhemos, identificámos que são os artistas com maior projeção mediática que enfatizam estes aspetos, contrariamente aos restantes, quase como se estes possuíssem uma necessidade de afirmação identitária, visual e estética, como se disso dependesse a manutenção do seu status e sucesso. Então, por um lado, temos patente um ato de performance que vai além das fronteiras físicas do self, no sentido em que expressa outros elementos identitários (Pais & Blass, 2004), e por outro lado, temos a autoafirmação, pois estes artistas ascenderam numa lógica de meritocracia e DIY e, visto que atingiram o sucesso, sentem necessidade de se autoafirmarem e, de certo modo, se desvincularem dos contextos e dos modos de vivência desigualitários e desfavorecidos que experienciaram nos bairros. Estamos assim perante os três eixos iniciais: bairro, música e exclusão. Atentemos aos seguintes excertos,
“Virei o menino prodígio da Tuga/ com cara no mundo da bijuteria/ Vi-me a gastar 20 mil num fio que não precisava/ Hoje tenho um palácio, dois ou três carros/ E não era o que ambicionava” (Piruka, Impossíveis, 2019) “Tu ‘tás com grana no VISA / Tu vens dar para janota” (Dillaz, Mo boy, 2016). “Mano eu lutei para obter / Versace na minha cintura, tipo cintos de Pull&Bear” (Mota Jr., Não digas que não, 2019). “Para ter grif’s eram fatias e gramas/ Presente da cabeça aos pisos com Reebok e Bana” (Kappa Jota, Tribo, Universal, 2018). “Quero é um phat punami/ Aprumado com um fato da Armani/Sou um Fashion Trapper abusado e um dia vou ‘tar grifado com peças do Kanye” ($tag One, Bela Vista, 2018). “Quero cash no bolso, no banco e em casa/ Estou na vida atrás do cake” (Mynda’Guevara, Nossa língua, 2020). “Dancei um Cha Cha Cha para não pensar tanto em dinheiro/ Mas estava-me a aleijar dançar com o meu pé no chinelo” (X-Tense, Bolero, 2019).
Uma das impressões mais óbvias que são feitas em relação ao rap - e, atualmente, altamente comercializada e aceitável - é a dos consumos desviantes, paralelamente aos encontros com as forças policiais. Existem inúmeras músicas e artistas que retratam estas questões, tratando-se de uma forma de manutenção e de incentivo da imagem do rapper gangster que ainda se encontra associada a discursos violentos, que contribuem para a perpetuação de sentimentos de insegurança face ao bairro e face aos seus residentes (Nielson, 2011). Esta problemática do artista gangster prende-se com a noção de masculinidade, não só a que se encontra espelhada nas sociedades, como também estas expressões artísticas que carregam vários significados, incluindo o de uma masculinidade poderosa e forte e que, essencialmente, é um comportamento que é adotado por estes jovens e artistas para estabelecerem juízos face às suas condições de vida (Jensen, 2006). Ora,
“Mas eu juro que esta coca e esta viola/ Vão dar notas até já só pensares em guito para elásticos” (X-tense, Bolero, 2019). “Corro à frente da polícia atrás dos meus direitos” (Alcool Club15, Os meus direitos, 2014). “Bófias vêm p’ros subúrbios com arrogância e prepotência” (Estraca, Subúrbios, 2016). “Muito mais corte do que cocaína” (Ferry ft Sam the Kid, Rei do Bairro, 2018). “Niggas dopados, deitados na cozinha” (Allen Halloween16, Crescer, 2018). “Todos querem viver o King dream/ Puto a fechar sacos do quarto pó parque” (Kappa Jota, Tribo, 2018). “Na sacola bué de droga/ E foi dessa forma que eu fui criado dentro dum bairro/ Mano não tentes tirar-me a pinta, ou me tirar o casaco (…) Fala de guita, tou lá/ Fala de drogas, assaltos e pistolas, mano só lá” (Mota Jr., Não digas que não, 2019). “Sempre a torcer o cartão, fumo mesmo à moda antiga” (Dillaz, Mo boy, 2016).
Estas formas de masculinidade podem ser expressas de diversas formas, quer seja pelas performances, pelo tipo de consumos desviantes que são perpetuados e até mesmo na forma como evidenciam os seus processos vivenciais (ver excertos anteriores). Neste sentido, e aplicando esta questão da masculinidade aos nossos estudos de casos - colocando de parte por momentos a única artista feminina que analisámos - verificámos que esta dimensão se prende com três eixos: os consumos, a violência e a superação.
“Meus chicos uns casaram, foram dentro ou tão na jarda/ Alguns antes de ouvir falar em Teorema de Pitágoras” (X-tense, Bolero, 2019). “Há sempre trabalho nas esquinas do ghetto/Vendem doses duras a pobres coitados à deriva/E que se armam em heróis/ E pensam que podem foder com a Heroína?” (Estraca, Subúrbios, 2016). “Não sustentas o teu filho mas dinheiro faz-te homem/ Tu tens faca, tu dás tiro, contigo dreads não podem, meu bro” (Ferry ft Sam the Kid, Rei do Bairro, 2018). “Que eu vim da merda, a minha vida é guerra” (Kappa Jota, Tribo, 2018).
O capital subcultural masculino é produzido em interação com um ambiente frequentemente percebido como hostil, daí ser estabelecida uma relação entre violência, bairros sociais e jovens do sexo masculino, uma vez que esses lugares são entendidos como sendo hostis, inseguros e, por sua vez, a maioria das produções musicais e artísticas que são produzidas por jovens nesses contextos também adquire esse rótulo. Entrámos assim num ciclo vicioso de absorção das hétero-representações, em que os indivíduos e os atores sociais assumem estas retóricas de autoexclusão (Sousa, 2018), e que se materializam em comportamentos e atitudes em relação aos espaços habitados. Além disso, a este nível temos presentes três pontos primordiais sobre estas práticas artísticas, apresentados por Jensen (2006): i) frequentemente estas dimensões são um fruto da cultura dos pais; ii) podem surgir no seguimento de ícones de masculinidade que se relacionam com a posição social e o status dos artistas/indivíduos; e iii) muitas vezes estes ícones de masculinidade são adotados a partir de subgéneros do rap e do hip-hop. Assim, estes jovens adotam com regularidade as noções de honra e de masculinidade dos seus pares, dos seus ídolos e dos seus pais, enquanto readaptam e reorganizam essas noções, tornando-as significativas nas suas situações atuais, fazendo com que estes se encaixem numa subcultura que é genuína (Ray, 2016).
Nesta promoção e afirmação identitária, estes artistas acabavam por promover aquilo que contestam, isto é, nesta promoção e valorização do bairro enquanto berço e enquanto fator identitário distintivo individual e coletivamente, estes artistas promovem a exclusão de outros, especialmente quando falam apenas da sua crew ou de pequenas amostras de indivíduos que vivem nesses contextos (Nielson, 2011). Tal aspeto encontra-se presente em praticamente todas as músicas analisadas.
Gilroy (2004) nos seus estudos preocupa-se com o facto de as fragmentações identitárias terem dado origem a mudanças discursivas. Além disso, o mesmo opõe-se fortemente à tendência de tratar a cultura como uma unidade homogénea, especialmente no que se refere à análise das culturas nacionais. O autor celebra formas híbridas e contraditórias de resistência que evoluem a partir de formas de cultura popular, do culto do corpo e das transformações estéticas da vida quotidiana (Bhaba, 1994; 2010). Também nós adotámos esta perspetiva, sobre o facto de a cultura não ser uma unidade ou uma forma homogénea, mas sim um processo de mudança e de desenvolvimento de outras paisagens culturais, de poder e de resistência. Introduzimos assim as diferenças entre rap do “gueto” e o rap do “bairro”. Mais, utilizando os contributos de Gilroy (2004) e de Nielson (2011), fazemos referência à possibilidade de haver ainda uma fragmentação identitária que incida sobre o “rap do bairro com projeção mediática” e o “rap do bairro sem projeção mediática” que, além disso, também possui variações de acordo com a localização geográfica, por exemplo, o facto de os artistas serem do Norte, Centro ou Sul do país, e como em última instância isso dita os seus discursos, as produções que são feitas e as desigualdades que são potencializadas.
Remetendo para os contributos de Johansson e Lalander (2012), os mesmos afirmam que existem dualidades e uma espécie de complementaridade entre estas culturas juvenis e os sistemas capitalistas neoliberais, no sentido em que os jovens rappers que utilizam um Rolex, por exemplo, estão a cumprir com os objetivos das sociedades capitalistas face aos consumos. Contudo, enquanto cumprem com estes objetivos capitalistas, os mesmos retratam as suas realidades em contextos marginalizados e autorrepresentam-se através de letras contestatárias sobre a violência, o racismo, a estigmatização e a exclusão. Assim, temos sempre presente a dinâmica do capitalismo e do estrelato, e a dinâmica do bairro e dos fenómenos de exclusão que, tal como o consumismo e os atos de resistência (Johansson & Lalander, 2012), estão sempre interligados. A resistência deixa de assumir uma forma concreta, associada às lutas no espaço físico e aos movimentos sociais contestatários, passando a ser ambivalente e fluída (Rancière, 2010).
Breves considerações para um encore final
Neste artigo procurámos discutir e analisar a resistência, não partindo de restrições e de visões estruturais tradicionais, procurando enfatizar outros modos de resistir e de viver. No fundo, formas complexas de imagens sociais de lutas diárias. Através dos sujeitos, da resistência e da prática artística, emergem compreensões fragmentadas e orientadas para os processos de enfrentamento sociais e quotidiano, que se multiplicam em fenómenos como a desterritorialização (Johansson & Lalander, 2012). A resistência é multifacetada e um processo contínuo, algo tanto mais enfatizado pela cultura hip-hop.
Um dos desafios mais importantes é compreender teórica e empiricamente as relações de proximidade entre atos de resistência e o consumo. Tornou-se assim pertinente, neste sentido, perceber quais são os processos atuais da comercialização das culturas juvenis e, concomitantemente, como é que os mesmos impactam as vidas dos jovens artistas e residentes de bairros sociais, por exemplo. Afirmámos ainda que o rap pode ser encarado, aos olhos de Bourgois (2003) e de Sandberg e Peterson (2009), como uma prática que faz com que os jovens marginalizados se tornem membros integrantes de uma cultura, isto é, confere-lhe um sentido e um sentimento de pertença. Criam nesta prática artística um fórum de dignidade e de respeito. O rap é assim uma teia complexa de crenças, de símbolos, de modos de interação e de valores (Bourgois, 2003).
Deste modo, este artigo veio contribuir para que pudéssemos compreender a cultura hip-hop e o rap através de uma dimensão que considerámos de extrema relevância, que se prende com a interpretação dos processos de criação e de construção artística e com os modos como os conceitos e os conteúdos são apresentados. Devemos considerar ainda os valores subjetivos que são inerentes a estes discursos tendo em conta as intersubjetividades, os sentimentos e as representações (Guerra, 2017) que resultam de processos sociais significativos, e que se inauguram como construções sociais. A construção do bairro enquanto lugar (Norberg-Schulz, 1974) prende-se então com dois eixos fundamentais: i) a questão das vivências que que se articulam com os comportamentos e atitudes de resistência (Guerra & Quintela, 2016) face ao bairro e a fenómenos como o crime, a violência e a exclusão, entre outros; ii) temos ainda a problemática da afirmação individual e coletiva (Costa, 2008; Guerra, 2002), bem como as noções e as representações de masculinidade (Jensen, 2006) sendo que estas se relacionam com o ponto anterior, entrando aqui em análise a importância das produções Do It Yourself (Bennett & Guerra, 2018) não só na prossecução de formas de resistência, mas também enquanto modo de articulação com o capitalismo e com o espaço urbano (Johansson & Lalander, 2012; Rancière, 2010), e como um meio promotor da autenticidade (Ray, 2016). Os artistas discutem assim, em simultâneo, aspetos do seu mundo social e reforçam as relações sociais, especialmente no que diz respeito à criação de uma representação e de um conhecimento alargado sobre as mesmas.