Entrevista com The Legendary Tigerman para Sons Pe(r)didos e Achados1. Realizada por Paula Guerra.
Paulo Furtado nasceu em setembro de 1970, em Moçambique, no seio de uma família urbana, sendo o mais novo de cinco irmãos (três homens e duas mulheres). Considera que os pais tinham uma mentalidade aberta à experimentação e que, por isso, garantiram a todos os filhos a oportunidade de descobrirem os seus caminhos em novos mundos. Na discursividade de Paulo fica clara a sua origem numa família de classe média-alta, nomeadamente pelas suas referências aos lazeres e, mais concretamente, às férias de Verão, que tinham uma duração longa - cerca de dois meses - e eram passadas na Praia das Maçãs. Portanto, nascido em Moçambique há 50 anos e criado em Coimbra, Paulo Furtado deu-se a conhecer ao grande público com os extintos Tédio Boys, nos anos 90. Com o final da banda, fundou, no ano 2000, os Wraygunn, também em Coimbra, e, em 2002, estreou-se a solo enquanto The Legendary Tigerman. Nesta conversa, que integra o podcast Sons Pe(r)didos e Achados, coordenado por Paula Guerra e realizado pela Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto2, ficamos a conhecer um pouco mais da sua história de vida.
Preâmbulo
Paulo reconhece que a construção do seu gosto musical e dos seus consumos juvenis de música estão essencialmente ligados a uma noção de partilha de discos entre amigos e, mesmo, a uma escuta coletiva. Neste cenário em que despertou a sua ligação para a música e com a música, a audição de rádios pirata e de programas de autor funcionava como um veículo de descoberta musical. Com efeito, a sua descoberta musical é iniciada aos 15 anos, altura em que compra o primeiro disco com o seu próprio dinheiro, o Boom dos Sonics3. É importante salientar que, ainda hoje, se assume como vivendo um eterno momento de descoberta musical, no qual os sons da juventude não ficaram para trás. Paulo Furtado é, hoje, um artista reconhecido nacional e internacionalmente, é o artista e multi-instrumentista ligado a projetos como The Legendary Tigerman4, Wraygunn5, ou Tédio Boys6. É, também, compositor de bandas sonoras com várias obras publicadas - no já extenso currículo multidisciplinar -, e um apaixonado pela fotografia. Na verdade, é uma pessoa inteiramente dedicada às artes em todas as suas dimensões e cruzamentos, tendo já recebido alguns prémios. Produziu inúmeras canções para cinema, tendo-lhe sido atribuído o Prémio Sophia para melhor banda sonora original em 2013 com Estrada de Palha7 e em 2018 com Ornamento e Crime8. Mas Coimbra foi sempre pequena para Paulo. Paulo é um homem-mundo, e é marcante, no seu discurso, a América. Segundo Paulo, a América é sempre surpreendente. É uma espécie de metáfora de vida. É tão grande, e são tantos os países diferentes encaixados num, tantas coisas contraditórias, que subjaz sempre uma beleza. Subsistem muitos pormenores que não reparamos em Lisboa. Para qualquer americano, uma igreja do século XIII, a calçada portuguesa, os Jerónimos, são coisas inacreditáveis e fantásticas. Esta América alcança poesia no abandono. Num país que é muito recente, a História, ou alguma documentação da História, quase que é feita por estas coisas que têm 50 ou 60 anos. É a América de Jack Kerouac9, do deserto, de uma estrada que te leva de uma costa à outra em que podes guiar em frente durante 10 dias. Nós, os europeus, conseguimos encontrar uma poesia nisso. A América de Paulo Furtado consente sempre um olhar renovado: olhares que alcançam sempre qualquer coisa de diferente.
Fonte: Art Work Esgar Acelerado https://www.up.pt/casacomum/sons-perdidos-e-achados/1-paulo-furtado-the-legendary-tigerman/
A questão é sempre a mesma. Já foi aquela que nos levou a uma conversa durante quatro horas em 2008; que nos levou, mais tarde, a reencontrarmo-nos em 2012, e transporta-nos, hoje, a este reencontro. Esse mundo, essa vastidão, essas Américas, continuam a pautar a tua obra. Cada vez mais é interdisciplinar, multidisciplinar, de cruzamento, de intertextualidade. Como é que tu, hoje, te defines? Defines-te como músico?
Eu, neste momento, mais do que músico, defino-me mais como artista. Acho que faço várias coisas com maior ou menor visibilidade... que não são todas arroladas com a música. Algumas são, por exemplo, relacionadas com o cinema ou com a fotografia... Algumas coisas, também, não tão públicas quanto a música. Mas, mesmo como músico, cada vez mais as bandas sonoras e a música para teatro e cinema tomam uma importância muito grande na minha vida profissional.
E essa coisa do fazer, que, também, sempre te caracterizou... Achas que podemos ligar isso um pouco à tua história, à tua biografia, àqueles tempos em que tinhas os Tédio Boys e que tinhas que fazer coisas para existir... Achas que isso continua ainda hoje?
Acho que, de alguma maneira, é a mesma energia, mas não tem diretamente a ver com os Tédio Boys. Tem a ver comigo mais que com os Tédio Boys. Muitas das coisas que me interessam agora não têm, de todo, a ver com os Tédio Boys. Por exemplo, eu estava a estudar Artes na Ar.Co e estudei fotografia e estudei pintura - coisas que me interessam neste momento e que, há 30 anos atrás, não me interessavam tanto. Mesmo a parte das bandas sonoras nunca foi propriamente uma coisa que passasse muito próximo do universo dos Tédio Boys: acho que tinham mais a ver com o que eu queria realmente fazer no futuro. E mesmo as coisas que eu fazia em Tédio Boys tinham a ver com o motor que eu tinha de fazer coisas e de organizar coisas, como continuei a fazer, qualquer que fosse o projeto. Não é tanto esta coisa dos Tédio; no fundo, esta ideia do fazer e de fazeres por ti - quando encontras uma porta fechada, tentares procurar outra - isso continua a fazer muito sentido para mim.
Agora, falando neste contexto pandémico... Como é que isto teve impacto na tua vida e nas tuas atividades? Não só musicais, mas em todas as outras atividades que tu tens.
Olha, acho que, como pessoa - como ser humano - isto afetou-me de maneira que eu nem tenho, neste momento, a noção exata. Acho que é um extremo, um processo muito violento que tem acontecido ao longo deste ano de isolamento. De falta de estímulos artísticos, sociais, emocionais, toda uma série de coisas que nos afetam profundamente a todos. Inesperadamente, do ponto de vista profissional, apesar de ter tido muitas coisas que foram adiadas ou que não aconteceram mais relacionadas com a música ao vivo, como uma tourné no Brasil e alguns espetáculos na América que foram adiados ou cancelados... Estranhamente, tive sempre muito trabalho, porque acabei por fazer música para três peças de teatro entre setembro e dezembro de 2020 e ainda tive mais uns projetos relacionados com música para cinema. E, entretanto, já comecei mais um projeto de teatro e mais um projeto de cinema este ano. Grandes, e nos quais já estou a trabalhar. Talvez por eu ter esta vertente, que nos últimos anos se tornou cada vez mais importante, de fazer música fora do contexto da música popular, com todo o espaço que isto deixa em aberto - podem ser instalações ou toda uma série de coisas que eu também tenho feito nos últimos tempos - levou a que eu, do ponto de vista profissional, contrariamente a quase todos os meus colegas músicos, não tivesse propriamente uma quebra. Não tive, efetivamente. Mas isto claro que é uma exceção. Tudo isto é parte de um caminho que já tenho vindo a percorrer há algum tempo. Por exemplo, eu, aquando do primeiro confinamento, no ano passado, ia mesmo começar a tirar o estúdio de casa, porque achava que estava a passar demasiado tempo em casa e que precisava de sair mais e precisava de cruzar-me com outras pessoas. Entrementes, veio o confinamento e, como tal, acabei por não tirar o estúdio de casa e acabei por, no último ano, à parte de criar, estudar. O que fiz mais sistematicamente foi estudar. Estudei intensivamente muitas coisas que tinham a ver com o que tenho feito nos últimos tempos: estudei som, misturas, harmonia. Estudei coisas que necessitava estudar há demasiado tempo e que nunca tinha tido propriamente espaço para isso. E, portanto, os primeiros quatro ou cinco meses do ano passado foram profundamente dedicados ao estudo. E eu acho que isso, depois, acabou por me ajudar a poder, mais para o final do ano, aplicar já muitas dessas coisas e a ser mais rápido. Aperfeiçoei, igualmente, o estúdio em casa e tornei-o bastante mais profissional; tornei-me quase autónomo. Logo, isso acabou por me apoiar depois, no final do ano, e neste ano também. Mas claro que tudo o que tem a ver com música ao vivo, com espetáculos ao vivo, foi profundamente afetado.
Isso tem muito a ver com a forma como construíste a tua carreira. Essa coisa do fazer, por um lado, de não fechar e de diversificar domínios, linguagens artísticas... Que era uma coisa que tu já falavas em 2008 quando te entrevistei em Coimbra, o cruzamento das linguagens, que a música podia ser intertextual. Mas tinhas sempre a questão da fotografia e do cinema, já que falavas nisso…
Exatamente. A partir de 2008, veio o Femina e as curtas metragens do Femina10...
Foste cabeça de cartaz no Festival de Coura, em 2008...
Sim.
E eu lembro-me que uma foi emoção de seres cabeça de cartaz. Pela primeira vez, um português era cabeça de cartaz e isso foi um volte-face na tua vida?
Sim. E foi quando eu também assumi muito claramente que queria misturar mais coisas além da música. O próprio projeto do Femina, olhando para trás agora, tem filmes, tem músicas, tem uma série de coisas que até têm uma vida própria e que ainda têm uma presença que vai, de alguma forma, estando no mundo. A partir daí, fui cada vez mais aprofundando essas coisas. No meu caso, acho que foi um bocadinho de sorte, também. Obviamente que não foi uma coisa programada, não estava à espera de que houvesse uma pandemia que, de repente, fosse impedir-me de ter espetáculos ao vivo, mas, de facto, nos últimos anos, está-me a dar tanto prazer - ou mais, às vezes - fazer bandas sonoras como fazer discos ou tocar ao vivo. E, portanto, acho que é um caminho natural que foi acontecendo. Quando se investe mais numa coisa, quando eu invisto mais numa coisa que gosto.... Sei lá, é como se eu dissesse que, nos últimos dez anos, por exemplo, tenho feito muita fotografia, mas ainda não quis mostrar nada. Mas no dia em que eu quiser fazer mais coisas com essa fotografia e fazer alguma coisa, se calhar sai um livro, ou organizo uma exposição. E, se calhar, isso vai desencadear outras coisas. E eu acho que, nos últimos anos, cada vez que eu ponho mais energia numa coisa, essa coisa, de alguma forma, desenvolve-se um bocadinho mais.
Eu lembro-me que a primeira vez que te vi ao vivo foi no Plano B11, naquela sala de baixo, e eu lembro-me que estava lá alguém a vender as tuas coisas e já vendiam um livro. Foi a primeira vez que vi venderem não só t-shirts, mas também um livro já em torno de um disco. E esse artista total que tu és, acho que igualmente te foi dando, por um lado, um caminho nesta ausência de políticas para a música popular em Portugal, e também uma configuração do tal do-it-yourself - do que foste sempre fazendo ao longo da vida, lutando com o que tinhas e, quando vias uma porta fechada, abrir a porta por ti próprio. Tens noção de que isso é uma exceção? Para as outras pessoas, para os outros profissionais do setor cultural e criativo... Outra coisa também: na altura, disseste-me que não eras profissional, ainda eras amador. Hoje já és profissional?
Não, eu continuo a manter esse espírito amador. Amador no sentido mais profundo da palavra, que é aquele que faz o que ama, apenas pelo ato de fazer e não pela paga. Não são bem essas palavras, mas é isto que define o amador.
O music lover?
Obviamente, tenho um grande amor por aquilo que faço e, no dia em que eu não tiver amor pelo que faço, então irei fazer outra coisa que, provavelmente, não terá nada a ver com Arte. Acho que fazer Arte pela paga ou pelo lado profissional da coisa... Muitas vezes, a palavra profissional em relação às Artes é uma coisa que tem muitos perigos. Acho que, por um lado, é bom ser profissional, no sentido de ser sério em relação ao trabalho que se faz, mas acho que a Arte em si tem que ter muito erro, muita ingenuidade, muitas coisas que têm muito pouco a ver com a palavra profissional. Tem mais a ver com a experiência, com o estar aberto ao erro, com o estar aberto a novos caminhos que nunca foram experimentados. E isso é uma coisa que eu acho que é muito importante manter viva, quer se tenha 20, 30 ou 40 anos de carreira. Para se fazer coisas que ainda sejam relevantes, é preciso manter o espírito aberto, reinventarmo-nos, tentar sempre outros caminhos.
Fala-se muito que só tu e os Moonspell é que conseguiram a internacionalização. Essa é a grande questão da música portuguesa: a dificuldade que tem na internacionalização. Achas que essa abertura ao exterior - quer seja a França, ao Brasil, onde tens andado sempre nessa corrida pelo mundo - é uma busca de um cosmopolitismo que sempre procuraste e que não encontras em ti? O Femina ele transmite tudo isso. Foste buscar várias mulheres, todas elas muito diferentes, com visões do mundo completamente diferentes... São outros, e nós, quando somos confrontados com esses outros e estamos recetivos a vê-los, ampliamos o nosso horizonte.
Sim. Eu acho que o facto de ir procurar sempre um caminho no mundo tem a ver com o desafiar-me e com encontrar novos mundos. Tem muito a ver com isso. Eu adoro tocar em Portugal! Adoro viver em Portugal, adoro essas coisas todas. Mas sempre acreditei que não queria repetir-me infindavelmente a tocar nos mesmos sítios, para as mesmas pessoas, porque Portugal é muito pequenino. E, similarmente, o que eu faço às vezes é mais popular, outras vezes não é tão popular... e eu acho que isso é uma coisa perfeitamente normal na carreira de qualquer artista minimamente sério. Há momentos em que se chega a mais pessoas, momentos em que se chega a menos. E, como tal, tive sempre uma perspetiva de procurar outras coisas e, até, de encontrar outras pessoas e outras referências mais internacionais. Eu acho que aquilo que me faz é tudo o que eu conheço e oiço de Arte e música portuguesa, mas também de Arte e música do mundo inteiro. E, como tal, eu tenho que me situar como artista no mundo e não em Portugal. Porque, no fundo, é isso que eu procuro. Agora, cada vez mais há mais artistas portugueses a conseguirem fazê-lo. Throes + The Shine12 estão a conseguir fazê-lo, os Buraka Som Sistema13 conseguiram fazê-lo com sucesso durante um período e, agora, todos fazem com diferentes graus de sucesso e de interesse. Conjuntamente, acho que tem a ver mais com o que se procura e como se procura. Mas existe, neste momento, muitos projetos portugueses que poderão ter uma carreira internacional. Agora, isso é uma questão antiga, da qual eu falo, talvez, há 20 anos, e que eu acho que nunca se levou muito a sério, a existência de um gabinete de exportação, nem que fosse da cultura portuguesa - já não digo da música portuguesa - à imagem do gabinete de exportação francês, por exemplo, que já várias vezes - de um modo às vezes um bocadinho embaraçante por eu ser português, mas como tenho publishers franceses - já várias vezes fui apoiado pelo gabinete de exportação francês, com resultados incríveis para mim e para o próprio gabinete... E temos outros exemplos no mundo: o gabinete de exportação da música canadiana, se formos a ver o que fez nos últimos 20 anos pela música canadiana, acho que percebemos a relevância importantíssima que tem. E se pensarmos que, em Inglaterra, a música popular ainda continua a ser a primeira fonte de rendimento, pensamos que, se calhar, estamos a ser um bocadinho ingénuos de várias maneiras em relação ao que devia estar a acontecer. Se a isto adicionarmos que temos um género musical que só existe em Portugal, o fado, e que também não fazemos absolutamente nada de relevante por ele, acho que ainda mais perdidos ficamos nesta ideia de que estamos em autogestão e que, realmente, não há ninguém a pensar nem na cultura portuguesa nem em como a exportar ou nem em como ganhar dinheiro, mostrar essa cultura ao mundo, nem que seja por uma vontade de mostrar aquilo que fazemos ao resto do mundo. Algo que acho que é uma ânsia de muitas pessoas e de muitos portugueses... Infelizmente, cada um tem que traçar esse caminho da maneira que consegue.
Sozinho?
Sozinho.
Essa questão leva-nos a uma pergunta que eu tinha para ti, que é: não há política para a pop music em Portugal. Os países do Sul europeu em geral, como Espanha, não têm uma política de popular music como têm outros países e isso tem consequências claras. Para além de termos vivido a mais longa ditadura da Europa, que teve consequências do ponto de vista socio-histórico e comportamental muito grandes - aquela coisa patriarcal, o olhar para o chão, a ausência de participação no espaço público, etc... Todas essas questões, esses handicaps, acabam por se repercutir nessa autogestão que, por vezes, é também uma negação. É negação caótica.
Eu acho que sim... No que toca à música popular, por exemplo, se pensarmos na Inglaterra e nos Estados Unidos, nunca houve propriamente a necessidade de uma intervenção estatal, porque há todo um mercado anglófono que se espalhou pelo mundo, e essa promoção ou é feita pelas casas que ensinam inglês pelo mundo, por toda esta cultura de ensinar a língua que existe, mesmo em França também. Depois, os países que são um bocadinho mais periféricos, mas que perceberam “ok, nós temos um espaço e podemos ocupar um espaço no mundo,” como França e Canadá... e mesmo, e mesmo a Alemanha, de alguma maneira. De repente, há uma aposta e há um investimento sério dos Estados na cultura, com resultados muito positivos. E, portanto, eu acho que nós deveríamos estudar mais o caso dos países periféricos e tentar encontrar caminhos que, no fundo, já nos foram indicados de muitas maneiras e que estão claramente identificados os que funcionam, os que não funcionam, os que funcionam melhor...
E achas que isso tem a ver com algo mais profundo, que é o facto de ainda existir muita desvalorização, mesmo social, do pop rock em geral em Portugal? Mas as pessoas passaram os últimos 40 anos a ouvi-lo…
Honestamente, não tem a ver com isso. Também há uma desvalorização do fado. Mesmo que se leve o fado nos périplos em que se levam as empresas, a visitar países e a tentar fazer uma promoção, uma expansão económica de Portugal, isso nunca é feito claramente com uma lógica que integra a Arte portuguesa. Nós temos artistas incríveis... O Rui Chafes14, o Julião Sarmento15, a Wasted Rita16, gerações mais jovens que traçam caminhos, que estão em coleções no mundo inteiro, por todo o lado, e continua a não haver um investimento, não há, sequer, um reconhecimento, uma identificação de quem são os artistas portugueses tão importantes e relevantes no mundo. Eu tenho a certeza de que, se nós formos perguntar isso a alguém do Ministério da Cultura neste momento, ninguém é capaz de nos dar essa resposta. E isso é francamente preocupante. Em todos os aspetos da Arte, da música e da cultura portuguesa. Não creio que se possa limitar isto ao pop rock ou à música popular. Se calhar, o pop rock ainda é um bocadinho mais discriminado, porque é visto como um primo afastado da Arte maior. Se calhar, em muitos casos, é, mas, noutros, pode não ser, não é? Se pensarmos em Velvet Underground, nas ligações de Andy Warhol…
Depois de Elvis, nada foi igual, nunca mais, do ponto de vista cultural e identitário. Mas o que é certo é que, por vezes, continua-se, quer seja nos meios políticos, quer seja nos meios académicos, ou em determinados meios artísticos, a olhar para o campo do pop rock como se fosse aquele ilegítimo, que tem que se aguentar porque tem que ser. Ainda sobrevive muito esse espírito que é também muito típico de uma certa periferia. Uma periferia que não é só periferia de lugar, mas é uma periferia de sentimento. A tal negação que há bocado falávamos também tem a ver com esse sentimento de periferia.
Por um lado, o sentimento de periferia, por outro, também, esta ideia que nós temos - provavelmente por causa de o 25 de Abril ter sido uma coisa tão recente - do lá fora, e de o lá fora ser uma coisa que está muito longe, que é muito difícil alcançar. E que lá fora é que é bom, e que lá fora é que se vive, e que lá fora é que estão os artistas. Acho que, muitas vezes, não é assim, e que não olhamos o suficiente para dentro e não compreendemos, também, de uma maneira clara o que é a Arte portuguesa, o que são as características dos portugueses, o que é que se pode fazer para tornar a Arte e a cultura portuguesa mais reconhecida no mundo.
E, também, começar pelo reconhecimento interno?
Isso já vai existindo! Eu acho que isso mudou muito nos últimos 20 anos. Eu acho que tem havido muito maior reconhecimento do público e uma grande aproximação das pessoas, até mesmo no teatro. Agora, isso pode não ser o suficiente, exatamente porque somos um mercado pequeno, para que essas pessoas possam ser não profissionais, mas ser amadoras a full-time, se assim se pode dizer. É difícil, porque somos um país pequeno, com todas as limitações que isso impõe.
A questão do digital. Tu sempre valorizaste muito a questão do objeto, quer seja o livro quer seja o disco... O que é que o digital traz? Como é que impactou a tua vida, a tua carreira, o teu fazer música, e como é que isso se cruza com o analógico? Muitas vezes, ouvimos dizer que o digital será a salvação. E eu gostava de ouvir-te sobre isso.
Eu acho que vai ser tudo, acho que vai ser a salvação, vai ser a perdição, vai ser muitas coisas. Eu não sou contra o digital. Acho que há coisas muito boas. Acho que, para começar, é imparável. Muito em breve, nunca mais vai haver um CD no mundo. Provavelmente daqui a dois ou três anos já nem sequer os carros têm leitor de CDs, acho que é um formato que vai ser totalmente abandonado. Acho que o vinil vai sempre existir no mercado nicho de alguma maneira.... Obviamente, eu sou um artista que veio do físico, e há muitos artistas que vêm do físico para quem é muito difícil a transição para o digital. Para mim, não tem sido fácil. Acho que perdi muitas coisas com esta transição, mas também ganhei muitas outras. Mas não consigo perceber se estou melhor, se estou pior. Não é assim tão relevante nem tão contraditório eu ser uma pessoa de objetos num mundo que é cada vez mais digital. Eu acho que, no mundo digital, continua a ser super relevante ver uma escultura do Rui Chafes na rua ou ver um espetáculo ao vivo. Não é um streaming que vai fazer as vezes de um espetáculo ao vivo, por exemplo. Por exemplo: se, por um lado, os pagamentos que o Spotify e todas essas coisas fazem aos artistas são, de alguma forma, ridículos, por outro lado, há um crescimento exponencial de séries e de produção com muita qualidade, muito melhor do que a produção que tínhamos de televisão, quer seja da HBO, ou mesmo da Netflix - com todos os problemas que também tem a Netflix... Mas acho que há muito mais caminhos e muito mais ramificações por onde a música pode ir e por onde quem queira fazer Arte também pode, eventualmente, ir. Acho que são tempos muito entusiasmantes, na realidade. De momento, é muito mais fácil, para algum artista jovem, de repente poder ter a sua música em qualquer lado do mundo. Claro que também é muito mais difícil, para esse artista jovem, ser ouvido e reconhecido, porque já ninguém tem dois minutos para parar e para ouvir. Mas eu acho que isto tem a ver mais com o que é que nós queremos fazer como humanos e como sociedade. Não temos que ser escravos do digital, não temos que ser escravos das redes sociais, nem temos que ser escravos de nada disto. Claro que isto é feito de um modo super aditivo e há pessoas que pensaram em todas as aplicações de um modo bastante aditivo. Mas sempre existiu adição, e tipos de adição, o Homem sempre se deixou, de muitas formas, inebriar por elas. Este é um caminho, por um lado, individual e pessoal, e, por outro lado, comunitário. E, se calhar, este confinamento pode, até, trazer-nos muitas alterações neste aspeto, porque já percebemos todos que o mundo digital não vai ser uma coisa igual, ou que substitua, de alguma forma, a vida real. Já percebemos todos que não temos as mesmas coisas, não temos os mesmos estímulos, não temos a mesma relação com o mundo digitalmente do que temos na vida real. E isso pode trazer alguma reflexão e alguma necessidade de realidade ao mesmo tempo que, durante este ano, a tecnologia também evoluiu de maneiras imprevisíveis e muito rapidamente, exatamente para fazer jus a esta necessidade de vida digital que as pessoas, de repente, foram obrigadas a ter. Mas eu acho que se podem tirar coisas boas daqui. Acho que temos que tirar coisas boas daqui, porque se não tirarmos coisas boas deste último ano, então, é tudo só mesmo, definitivamente, bastante triste.
Quais os teus planos mais próximos? Curto, médio prazo no máximo. O que pretendes fazer?
A curto prazo, estou a acabar o próximo disco, que já tinha começado há algum tempo e agora estou a começar a misturar e masterizar, a gravar algumas coisas adicionais... E estou, paralelamente, a trabalhar na pré-produção de dois projetos grandes de teatro e cinema que, infelizmente, não posso ainda revelar, ainda não é público, mas são coisas muito entusiasmantes e que me deixam muito feliz, porque é o tipo de coisa que há muito tempo que quero fazer.
Isso são boas notícias. Pelo menos para quem gosta do teu trabalho, que é o meu caso, é uma boa notícia. Esta última semana, o vencedor do Festival da Canção foi uma música em língua inglesa, e houve muito falatório à volta disso. Queria perguntar-te se alguma vez já sentiste discriminação por cantares em inglês? Se o público já te recebeu mal por essa razão, se já sentiste essa pressão?
Nunca nada de muito grave, acho eu. Eu acho que essa pressão existe, não é? É normal. Se calhar era mais presente há mais tempo, quando não havia tanta coisa interessante em português. Acho que desde que veio toda esta nova onda de músicos portugueses, nos últimos 15 anos, que fazem as coisas em português e de uma maneira incrível, como eu acho que nunca foi feita, isso deixou de ser uma questão. De vez em quando aparece uma coisa qualquer, mas acho que é de um enorme provincianismo, honestamente. As pessoas podem exprimir-se de qualquer maneira. Especialmente na música. É como se a palavra fosse mais importante do que a harmonia, ou do que a música, ou do que o ritmo, ou do que a textura de uma música. Às vezes, uma paisagem sonora pode ser tão relevante quanto o poema mais bonito em português, em francês, ou em inglês. Eu compreendia mais quando havia poucas coisas feitas em português e pudesse haver algum perigo de, de repente, não haver Arte que chegasse em português.
Obrigada por tudo.
Obrigado, é sempre um prazer.