1. Introdução
A materialidade e a imaterialidade do ambiente citadino resultam da maneira como o espaço assimila diferentes discursos - representações figurativas, simbólicas e imaginárias - seja por aceitação ou imposição (Monnet, 2013). Tal processo de produção do espaço está, ainda, sujeito às relações estabelecidas com os diferentes atores que o experimentam em seu cotidiano. Em sendo diferentes esses atores, podemos imaginar as infinitas interações estabelecidas com a cidade, visto que cada indivíduo a pratica, a percebe e a significa de um modo particular. Infelizmente, tal dimensão relacional é, por vezes, negligenciada na historiografia do urbanismo por se concentrar, como sugere Jacques (2014, p. 298), em uma “história das pedras” e insistir em basear-se na figura do indivíduo neutro universal. Como reação ao apaziguamento do capital simbólico plural de nossas cidades, o exercício de “inclusão” do feminino enquanto categoria de análise e, mais ainda, enquanto sujeito ativo em qualquer processo histórico, demonstra outras potencialidades para se contar a história de nossas cidades (Hayden, 1995).
Ainda, como resultado dessas leituras anamórficas, é comum associar a rua a espaço da masculinidade e a casa a espaço da feminilidade. Então, quando avaliamos a cidade do ponto de vista das mulheres, é fundamental o entendimento dessa negociação entre a casa e rua, ou seja, uma avaliação da diferenciação entre espaço público e espaço privado. Importante também porque a diferenciação entre público e privado nem sempre possuiu a mesma conformação com que se apresenta hoje, e passou, conforme refere Sennett (2014), por alternâncias entre retraimento e afrouxamento de seus limites. Além disso, possuíam valorações específicas de acordo com cada uma das diferentes formas de opressão feminina, ao mesmo tempo em que escancaravam, assim como potencializavam, a violência para aquelas mulheres que se encontravam, tal qual uma encruzilhada, sujeitas à convergência dessas diferentes formas de submissão.
O objetivo do presente artigo, então, é discutir a maneira como operavam as diferentes formas de opressão feminina para a significação dos espaços público e privado em Desterro/Florianópolis, no período entre 1850 e 1930. Partimos do pressuposto de que o entendimento da desenvoltura feminina frente à casa e à rua, experimentando diferentes graus e tipos de intolerância, resulta em um conteúdo representacional capaz de aproximar-se do cotidiano de diferentes mulheres que experimentaram, atuaram e produziram o espaço urbano à sua época.
Como pressupostos teóricos principais necessários à construção desse raciocínio, salientamos a interposição de quatro problemáticas. A primeira delas corresponde ao espaço, em sua habilidade de traduzir as dinâmicas sociais a ele contemporâneas, e na ideia de que sua produção é consequência da atuação cotidiana dos indivíduos (Massey, 2008), ainda que com expressivas desigualdades em sua capacidade de materializar seus próprios valores. A segunda problemática corresponde à história, visto que “não se pode [...] falar de espaço sem falar de tempo” (Damatta, 1987, p.37). A terceira problemática se refere ao gênero, necessário ao entendimento da maneira por meio da qual as construções do feminino, ou o que é relativo às mulheres, entremeiam as dinâmicas anteriores. No entanto, para decifrar esse feminino, é necessário, como aponta Butler (2016), a consciência de que há diferenças dentro da diferença, exigindo sua constante especificação e contextualização. Por esse motivo, a quarta problemática se refere ao conceito de interseccionalidade, o qual lança luz - por incorporar as dimensões de raça, classe, e mesmo sexualidade (Crenshaw, 2019) - às maneiras como diferentes estruturas e fluxos de opressão incidem sobre as mulheres, conformando graus diversos de vulnerabilidade entre elas.
2. A interseccionalidade do espaço urbano
De modo a exemplificar de que maneira diferentes experimentações femininas, assim como expectativas comportamentais, atribuíam significados aos espaços urbanos, sugerimos a análise da Figura 1. Na fotografia de Antonio Pirajá Martins da Silva, datada de 1925 e que compõe o Acervo Casa da Memória, podemos observar o transcorrer de duas cenas, as quais se passam no então recente aterro do Largo XIII de Maio, uma das primeiras obras de caráter higienista da cidade, situado em sua porção sul. Sobre a figura, o recorte ao centro da mesma nos mostra, em primeiro plano, uma mulher negra manuseando roupas ao sol; já em segundo plano, há senhoras pertencentes à elite que percorrem as ruas da cidade, possivelmente a passeio. Sob a atuação destas, o espaço adquire um significado de lazer, diferente daquela, distante poucos metros dali, para a qual o mesmo ganha a significação da obrigação de seu ofício.
Não só para o espaço público, mas também no privado, podemos observar distinções. Como exemplo, para mulheres brancas que tinham escravos a seu serviço, sua residência tinha a conotação de lar, o que não acontecia para a mulher escravizada, que tinha sua presença ali imposta. Por esse motivo, esse espaço tinha para ela o caráter de cativeiro. Nesse sentido, a existência de um conteúdo representacional instituía “espaços próprios” a diferentes mulheres, assim como pressupunha comportamentos específicos relativamente à cidade, baseando-se em gênero, raça, classe, faixa etária e sexualidade.
3. Estratégias de investigação
Complementar à iconografia, a consulta aos jornais veiculados na imprensa local1 se mostrou coerente com o objetivo estabelecido para o presente artigo pelo fato de que, conforme refere Pedro (1992), os periódicos em Desterro/Florianópolis foram fundamentais na normatização do comportamento feminino, além de funcionarem como dispositivos dessa vigia e punição.
O recorte temporal proposto compreende o período de 1850 a 1930. A data de início se justifica porque, conforme Morga (2017), até esse momento não havia em Desterro, ao menos de maneira explícita, territorialidades específicas para mulheres pobres e mulheres de elite, devido a uma diluição das desigualdades sociais. Tal dinâmica teria sido substituída, na metade do Século XIX, pelo surgimento de áreas apropriadas a cada camada da população, dando início à segregação socioespacial. Nesse processo, a população local passou a experimentar uma maior complexidade nas relações (Coradini, 1995). Adquirir tais “hábitos citadinos” contribuiu com uma maior diferenciação entre as mulheres e, consequentemente, entre as suas territorialidades. Sobre o limite de 1930, apoiamo-nos na noção de que, com a inauguração da Ponte Hercílio Luz, em 1926, Florianópolis perde sua escala local, bem como a característica de cidade provinciana (Corrêa, 2005), e experimentou mudanças abruptas no cotidiano da cidade.
Consultámos 20959 edições de jornais2 de circulação e alcance locais, os quais compunham 146 periódicos diferentes, que abarcavam temas como política, comércio, literatura, religião e sátiras, distribuídas de forma relativamente homogênea3 quanto à temporalidade proposta. Nos jornais4, dentre as seções observadas, as de maior potencial à temática do trabalho foram aquelas intituladas “crítica”, “parte noticiosa”, “diz-se por ahi”, “dizia-se baixinho”, “fatos e boatos”, “telegrammas” e “Parte Crítica”, todos de autoria majoritariamente masculina. A consulta ocorreu tanto pela busca por palavras-chave quanto pela leitura dos jornais, verificando as seções de maior potencial. Dessa busca extraímos passagens que acusavam a associação de uma figura feminina a uma localidade específica, às quais denominamos ocorrências.5 Percebemos que tais passagens representavam um processo de reflexo e reforço da interação entre mulheres e o ambiente urbano e, possivelmente, não revelavam atuações autênticas e espontâneas, mas tentativas de influenciar e normatizar comportamentos que, revelados, elucidam o conteúdo representacional a elas relativo. Em seguida, de modo a compreender suas repercussões frente ao espaço, essas ocorrências foram transpostas para o mapa da evolução urbana de Desterro/Florianópolis. Sua confecção baseou-se em antigas representações da cidade, a partir das quais compilámos a evolução do (i) arruamento6 e das (ii) edificações.7
4. Significações urbanas femininas
Nos jornais, as mulheres figuravam, em sua maioria, nos romances de folhetim, conteúdo esse que pouco contribuiu para revelar suas espacialidades. Ao contrário, textos breves, talvez secundários às publicações, denotaram com maior assertividade tal anseio. É nesse sentido que telegramas amorosos, anúncios e ocorrências policiais culminaram em três categorias que elucidaram dinâmicas urbanas femininas, específicas a esposas, criadas e amantes. Apesar de esses serem entendidos como “papéis a serem representados” (Sennett, 2014, p. 64), sugerimos o entendimento de que não estão assentadas, necessariamente, em divisões rígidas, uma vez que uma mesma mulher poderia transitar entre eles.
Como primeira dessas manifestações, percebemos que passagens como “a menina da Praia de Fora” ou a “Menina da Fernando Machado”8 faziam referência, pelo contexto no qual estavam inseridas, a telegramas amorosos. Neles os autores, desejando chamar a atenção das moças, tinham na indicação dos endereços uma forma assertiva de garantir o alcance da mensagem, sem que para isso fosse necessário expor as envolvidas. Ainda, percebemos que era nas janelas que se criava oportunidade para tais trocas amorosas, como revelado por certa moça que queria “içar o namorado pela janella”.9 O cuidado na linguagem e a narrativa por vezes ingênua sugerem que tais dinâmicas faziam referência, em sua maioria, a moças de elite. Isso porque aqueles direcionados a mulheres negras ou empobrecidas apareceram em número significativamente inferior e traziam de maneira explícita a cor da pele das envolvidas, como a “mulatinha na Rua T” e a “fulô da Rua José Veiga”.10 As 384 ocorrências relativas a essas trocas amorosas foram enquadradas na categoria de esposas, posto que eram convenientes, segundo Morga (2017), à manutenção das redes de poder, pela conveniência dos enlaces matrimoniais.
Já as mulheres negras escravizadas figuravam nos jornais sobretudo quando associadas a condições negativas impostas às suas vivências - crimes, prisões ou tentativas de fuga - as quais pouco revelaram sobre suas territorialidades. No entanto, os anúncios de compra, venda e aluguel dessas mulheres surgiram como potencial por associá-las a localidades específicas, uma vez que traziam o endereço no qual se daria a negociação. Ainda que esses locais fossem apenas pontos de intermediação, e que o real local de atuação dessas mulheres fosse em outras porções do território, procedemos com a coleta dessas informações, que resultou na sistematização de 328 desses anúncios11 que, então, compuseram a categoria das criadas.
A última das categorias propostas buscava, de alguma maneira, aproximar-se da sexualidade feminina. Para tanto, organizamos as ocorrências que faziam referência às prostitutas, formando a categoria de amantes. Apesar da consciência de que nem todas as mulheres amantes eram prostitutas, usamos a expressão de amantes de modo a insinuar o caráter sexual e de desejo envolto nessa categoria, vislumbrando, com isso o alcance da análise interseccional. É preciso explicitar que não se trata de manifestações legítimas, expressas por seus desejos e vontades. Ao contrário, o ofício descrito aqui está alinhado, conforme refere Weeks (2001), com as necessidades masculinas de prazer. Apesar disso, explicitar a prostituição nos jornais - vista como anormal - regulava a sexualidade feminina como um todo, posto que, ao expor as que transgrediam as regras, ficavam claras as consequências daquelas que decidissem fugir dos padrões comportamentais.
Ainda que se tratasse de uma dinâmica relativa a “relacionamentos amorosos”, as ocorrências das amantes distinguiam-se dos namoros das meninas da elite pois a linguagem empregada evidenciava tal oposição, como em “namorar a certa mulher na Rua da Carioca”.12 Apesar de os resultados relativos a essa categoria serem, em números, inferiores às categorias anteriores, sugerimos o entendimento de que tal dinâmica não era menos representativa, visto que, quando apareciam, os discursos associados às prostitutas eram, em sua maioria, bastante enfáticos.13 Em função de a prostituição ser, por meio de generalizações preconceituosas, habitualmente vinculada aos cortiços14 e com o intuito de complementar as análises relativas às amantes, incluímos também nessa categoria aquelas citações que faziam referência a esses espaços.
4.1. Territorialidades de esposas, criadas e amantes
A dispersão das ocorrências de esposas, criadas e amantes no Mapa de Ocorrências, conforme exposto na Figura 2, sugeriu alcances diversos, para cada uma das categorias, relativamente à malha urbanizada da época. Como exemplo, uma primeira avaliação sugere que as ocorrências de esposas e criadas tiveram um maior alcance em relação à malha urbana, sobretudo esposas, para as quais foram observadas ocorrências tanto em áreas mais distantes do centro consolidado, indicadas em “i”, quanto na própria área central, indicada em “ii”. Já para amantes, é possível perceber, mesmo de maneira tímida, que essas concentraram-se, sobremaneira, na área central, principalmente na região a leste da Praça XV de Novembro, indicada em “1”.
4.2. O corpo urbano tocando o corpo feminino
A primeira proposição de análise parte da categoria esposas, para as quais sugerimos a observação da distribuição destas no território, sobretudo em relação às áreas de baixa densidade urbana, indicadas em “i” na Figura 2. Nessas áreas, o caráter das edificações buscava refletir um padrão cultural e comportamental “aburguesado”, nos quais as residências eram um refúgio de silêncio e “segurança” para as mulheres, protegidas dos olhares e da excessiva exposição das ruas (Pedro, 1992). Como ilustrado nas imagens da Figura 3, tais anseios se materializavam nos recuos frontais e laterais das edificações, respectivamente em “1” e “3”, bem como na elevação dessas em relação ao solo, como sugerida em “2”. Conforme o esquema de esposas da Figura 3, os resultados mostram que essas áreas não apresentaram um número tão significativo de ocorrências de namoros quanto as áreas centrais da cidade, sugerindo o sucesso das estratégias de isolamento enquanto obstáculos às trocas amorosas.
Apesar disso, vale lembrar que tal proteção se dirigia às mulheres da elite, e poderia não necessariamente alcançar outras mulheres. Uma passagem recolhida nos jornais lança luz sobre tal possibilidade, sugerindo seu caráter interseccional de classe. A seção intitulada “Criadinhas” acusava a frequência com que rapazes frequentavam esses locais até “altas horas da noite conversando com criadas”.15 Ou seja, as mulheres que ali cumpriam serviços domésticos não estariam “beneficiadas” pela forma das edificações, a qual se mostrou incapaz de operar segundo diferenças de classe. E ainda que essas dinâmicas amorosas apoiadas no espaço urbano, e veiculadas na imprensa, invadiam classes imediatamente inferiores, tal qual uma emulação.
Tal argumento pode ser problematizado, também, quando observamos os resultados das áreas centrais, as quais, ainda que mais adensadas, concentraram a maior parte das ocorrências relativas a namoros. Segundo Müller (2002), algumas famílias da elite, resistindo ao anseio de fuga para áreas menos adensadas em busca de isolamento, preferiam residir nas áreas centrais, sob o pretexto de embelezá-la. Neste sentido, imaginamos - como primeira justificativa aos resultados observados nas áreas centrais - que essa parcela em si não justificaria a totalidade dos resultados percebidos nas áreas centrais, a qual estaria apoiada, também, em dinâmicas amorosas relativas a classes inferiores.
Como segunda justificativa para a representatividade das ocorrências nas áreas mais adensadas, sugerimos que, potencialmente, a própria forma urbana funcionava como agente facilitador das trocas amorosas, como sugerido nas imagens constantes da Figura 4. A contiguidade das edificações e a proximidade destas em relação à rua, demonstradas em “4”, acrescidas da interface entre interior e exterior agenciadas pelas janelas, apresentada em “5”, culminavam em situações como “em uma meia-porta conversavam um almofadinha e uma melindrosa,16 a qual revela o préstimo espacial de que tiravam proveito os namorados. Mesmo as residências nos andares superiores, apresentadas em “6”, que também objetivavam o isolamento feminino, não foram capazes de barrar os avanços amorosos, como indica a referência a um rapaz que anda “com o pescoço dolorido de tanto olhar para um sobrado”.17
No entanto, é necessário problematizamos que, apesar de percebermos um destaque das dinâmicas amorosas - e consequentemente da categoria esposas e as suas principais representantes, as mulheres brancas de elite - não é possível afirmar que estas tivessem uma maior representatividade quanto à dinâmica urbana da época. Isso porque a mobilidade urbana relativa a esposas, como sugere Araújo (2017), estava baseada em origens e destinos bastante pontuais, os quais limitavam sua circulação. Tal característica contrastava com a difusa mobilidade das criadas, as quais, conforme Sbravati (2008), tinham seu cotidiano associado às territorialidades dos cursos d´água, das fontes e o mercado público, caracterizando uma circulação de fluxos múltiplos e dispersos. Por esse motivo, sugerimos que o destaque de esposas seja apenas discursivo, restando às categorias de criadas, o desinteresse, apesar de sua maior efervescência no cotidiano, das narrativas dos jornais locais.
Ainda sobre mobilidade, sugerimos que as amantes possuíam deslocamentos que se assemelhavam a uma deambulação, pois tinham o costume de “passearem pela nossa urbs”18 com o objetivo de atraírem seus clientes e fortalecendo suas redes de influência. Indicações como essas, acrescidas da condição de que essas mulheres mudavam constantemente de endereço para fugirem de perseguições policiais (Pereira, 1996), sugerem que sua área de influência, além de extrapolar as demarcações pontuais do Mapa de Ocorrências, atribui-lhes uma performance urbana particular, se comparadas às esposas e criadas. Nesse sentido, o destaque discursivo dado à experimentação urbana de mulheres de elite fazia com que, enquanto os jornais preocupavam-se com a condição das calçadas adequadas às suas necessidades, interventores públicos reivindicavam que fossem criados locais específicos para a lavagem de roupas em locais ainda mais distantes das áreas centrais, por exemplo, prejudicando ainda mais aquelas que efetivamente experimentavam a cidade.
A carência de discursos relativos às mulheres pobres, vistas apenas como “vultos escuros envoltos em panos negros” (Morga, 2017, p. 22), contrasta com a atenção dada às mulheres de elite, como revela o exposto anteriormente acerca de suas trocas amorosas. Nesse sentido, sugerimos ainda que isso não dependia apenas das questões de classe, mas também de raça. Uma passagem, publicada no Jornal O Conciliador em 1897, por exemplo, sugere que a chegada de imigrantes alemãs causava enternecimento na população local, a qual saía às janelas e amontoava-se nas ruas para vê-las transitar. O jornal - ao apontar a supremacia dessas mulheres, que não necessariamente pertenciam à elite, como motivadora de tal comportamento - acusava que suas qualidades, sobretudo a pudicícia, faltavam às mulheres locais. Apesar da afirmação, conforme Elkin (2017, p. 220), de que “dentro do cenário urbano a mulher é o espetáculo”, se compararmos as diferentes atenções entre a presença de imigrantes europeias em relação às mulheres negras empobrecidas, fica evidente a intenção de valorização das primeiras.
Ainda acerca dessa “pudicícia”, o anseio em se preservar a “pureza feminina” frente ao “medo da cidade corruptora” (Perrot, 1998, p. 87) gerava, nas palavras de Sennett (2014, p. 431), um “retraimento feminino em relação ao mundo exterior”. Apesar disso, a intenção de proteção das mulheres de elite contrasta com a exposição forçada das mulheres negras frente ao espaço público, uma vez que, ao passo que as meninas brancas eram, muitas vezes, privadas da experimentação do espaço público, meninas negras eram lançadas às ruas. Como exemplo de tal assimetria, um anúncio encontrado doava “uma crioulinha de 6 anos para servir em casa e levar meninas à escola”,19 sugerindo que a condição de cativa da “crioulinha” incute em uma menina de 6 anos a habilidade de andar sozinha à rua, diferente das meninas brancas livres. Percebemos habilidades semelhantes em mais dois anúncios que ofereciam “uma crioulinha de 10 a 12 annos de idade [...] só para compras”20 e outra “de 10 a 15 anos, que tenha conhecimento para compras diárias”,21 das quais se exigia uma desenvoltura frente ao espaço presumivelmente maior, visto que áreas comerciais poderiam ser entendidas como majoritariamente masculinas.
Outra alternativa articulada para reverter a exposição excessiva das mulheres da elite frente à esfera pública era a sua vinculação às famílias. Nesse sentido, em Desterro, além dessa estratégia, ocorria também a associação dessas, nos jornais, a um endereço, também garantindo-lhes proteção ou vigia,22 ou seja, tendo o espaço como uma virtude. Em contrapartida, para as criadas tal vinculação significava sua condição de mercadoria. Já para as amantes, o discurso articulado se mostrou ainda mais assertivo, visto que indicavam, usualmente,23 seus primeiros nomes ou apelidos como a “Chica Mirolha à Rua Pedro Soares”.24 No entanto, em oposição a expressar proteção ou indicação de posse, desta vez a narrativa objetivava assegurar a perseguição dessas mulheres frente ao espaço da cidade, sugerindo-as enquanto uma adversidade consequente das aglomerações urbanas, mais do que, necessariamente, um problema relativo às diferenças de gênero ou às desigualdades sociais. É por esse motivo que, conforme refere Pereira (1996), frequentemente essas mulheres forneciam endereços diversos cada vez que eram abordadas pela polícia.
4.3. O corpo feminino tocando o corpo urbano
No entanto, não apenas os indivíduos eram valorizados de forma diversa quando relacionados com o espaço, mas também o espaço se conformava segundo a experimentação de diferentes indivíduos. Como exemplos, as ruas Conselheiro Mafra e João Pinto (respectivamente em “e” e “f” da Figura 3), pela perceptível sobreposição de ocorrências para criadas e esposas, surgiram como espaços onde se acumulavam diferentes formas de opressão. Como exemplo, notamos que as janelas dos andares superiores, ao mesmo tempo que representavam a segurança das moças brancas ou a oportunidade dessas em materializar suas dinâmicas amorosas, poderia representar para mulheres negras escravizadas a possibilidade do fim de seu sofrimento, como a “tentativa de suicídio de uma escrava [...] lançando-se de uma janella do segundo andar”.25 Ou seja, esses mesmos espaços de proteção para umas representavam o cativeiro de outras, como “uma casa [...] onde quase diariamente se aplicam castigos bárbaros em uma crioula escrava de menor idade. Os gritos da victima compungem toda a vizinhança”.26
Ainda sobre as janelas, em contraste com o caráter lúdico associado às moças de elite, essa mesma espacialidade para as mulheres pobres - sejam negras ou brancas, forras ou cativas - também estaria associada à obrigação de seu ofício, posto que era, muitas vezes, através delas que comercializavam seus produtos. O preconceito quanto à idade das mulheres era também um condicionante da significação associada a esses espaços: enquanto para as mulheres jovens a presença nas janelas significava disponibilidade amorosa, para as mulheres mais velhas a mesma atitude era sinal de que estavam cuidando da vida alheia e dedicando-se às fofocas, como sugerido por “certa viúva de certa rua [...] por cuidar da vida alheia e por não se dar ao respeito [...] por estar de porta todos os dias. É ser vadia...”.27
Outra passagem descreve as janelas como espaço de colisão entre esposas e criadas, na qual se lê que “passou uma dessas duas escravas pela rua em frente à minha casa, e achando-se minha senhora na janella, a preta a insultou com um escarro seco”.28 Nesse ensejo em específico, no qual a mulher de elite se encontra constrita no espaço privado e a mulher negra estaria desprendida no espaço público, a desenvoltura da última fica em evidência, sobrepujando a primeira. Nessa situação especificamente, sugerimos que mulheres negras transcenderam a convencional relação servil que regia a relação entre as senhoras de elite e as mulheres escravizadas, experimentadas no espaço privado. Nesse sentido, a transitoriedade entre público e privado - expressa nas janelas - trazia, ao menos momentaneamente, paridade entre as mulheres envolvidas, ou até mesmo representava ali uma vantagem às mulheres escravizadas ou empobrecidas.
É nesse contexto, também, que sugerimos que a presença no espaço privado representava desvantagem para as moças de elite, posto que, durante os namoros à janela, somente os rapazes conseguiam disfarçar seus comportamentos, caso fosse necessário escapar de repreensões. Isso porque o espaço público tende a ser menos revelador, pois inúmeros poderiam ser os pretextos que justificassem sua presença no local. Talvez por essa necessidade de dissimulação é que foram encontrados relatos que diziam que os namoros à janela acabavam por extrapolar as cercanias das mesmas, partindo em busca das esquinas, como sugerido “em todos os lugares é a esquina escolhida para o ponto dos namorados”. Nesse sentido, “os lampeões de esquina”29 tinham nesses locais uma espacialidade privilegiada, posto que posicionar-se junto a elas potencializava o alcance da visibilidade e facilitava camuflar qualquer excesso amoroso. Apesar disso, quando a mesma artimanha espacial, de evasão das vigias, era utilizada pelas amantes, percebemos que os jornais abandonavam o discurso complacente, e por vezes ingênuo, e taxavam tais ações como inconvenientes,30 citando constantemente mulheres nas “esquinas das nossas ruas, á (sic) espera de um amor efêmero” (Coradini, 1995, p. 67).
Sobre essa diferente valorização, denúncias de “mulheres da vida” que iam assistir a missas na Igreja do Menino Deus31 dão a dimensão das tensões geradas pela coexistência espacial de diferentes mulheres, no presente caso, de amantes e esposas. Além do caráter pontual das igrejas, percebemos que tal repulsa poderia ocorrer de forma dispersa frente ao território. Nesse sentido, foram identificadas passagens que diziam que “a polícia obrigará também a todas as meretrizes se mudarem das ruas onde habitem famílias”,32 ou ainda, reivindicando “uma rua especial para decahidas [...] que possa servir para residência unicamente de meretrizes.33 As ocorrências extraídas do jornais demonstraram que, possivelmente, eram as Ruas “Conselheiro Mafra, Rua Pedro Soares” e “João Pinto”34 que experimentavam tal embate entre esposas e amantes.
O cruzamento de esposas e amantes no Mapa de Ocorrências reiterou o caráter da Rua João Pinto, assim como inseriu como local desses embates, também, a Rua Fernando Machado. Apesar de apresentarem a mesma intensidade de ocorrências, entendemos que esta última se destaca em relação à primeira. Isso porque a Rua João Pinto concentrou, durante boa parte do período estudado, comércios e serviços, os quais podiam funcionar como usos que neutralizavam os mundos opostos relativos às amantes e às esposas. Essa característica não era observada na Rua Fernando Machado, que acreditamos, por ser majoritariamente residencial, tornava tais incongruências urbanas ainda mais evidentes.
Já a Praça XV de Novembro, antigo Jardim Oliveira Belo, o principal espaço de sociabilidade das elites locais, demonstrou ser complementar aos jogos amorosos encenados à janela, ou às esquinas. No entanto, tais ocorrências não estavam distribuídas de maneira homogênea ao longo do recorte temporal proposto, visto que tiveram maior incidência a partir da década de 1890. Até esse momento, os poucos relatos recolhidos faziam referência a dinâmicas amorosas envolvendo mulheres negras, expressas em narrativas persecutórias, que deixavam claro o menosprezo em relação a elas, como as passagens “no meio da praça a fallar com a creoula... podes estar certo que causas nojo” e “é tão sem vergonha que em pleno dia, e mesmo na praça, se põem a fallar com a crioula”.35 Paralelamente, o período é marcado por discursos que exigiam do poder público o “ordenamento” do local, tanto por questões estéticas, de higiene e de oportunidade de lazer à população local (Veiga, 2010).
Após 1890, foram enfim iniciadas as obras de modernização da Praça, coincidentes com o aumento das passagens que aludiam à presença no local dos namoros das meninas da elite. Tais relatos funcionavam quase como um apelo às jovens, convidando-as a comparecerem à Praça XV de Novembro para participar da dinâmica do footing,36 como em “não deixeis nunca de florir, aos domingos, no jardim que o município custeia para o vosso encanto.37 Essas observações, as quais contrastam com as condenações sofridas pelas mulheres negras anteriormente, sugerem que associar as figuras femininas de elite a uma localidade recém remodelada, ainda que associadas aos namoros, objetiva a “valorização” do local. Nesse sentido, e com base no raciocínio de Scott (1989), discursos como esses deixam claras estratégias narrativas que emprestaram características femininas sob o pretexto de qualificar o espaço ao seu redor, como também sugerido em uma “senhorita que constitui o melhor ornamento da nossa urbe”38 e outra que “passava divinamente [...] enquanto o ceu tornava-se com a sua passagem mais azul, as rosas do Oliveira Belo mais symbolicas”.39 Vale lembrar que, enquanto as moças da elite “ornavam” a cidade com a sua presença - tal como uma reificação do corpo feminino - não faltaram relatos que exigiam providências das autoridades perante mulheres, em sua maioria negras, que transitavam pelas ruas fugindo dos padrões estéticos e higienistas, como “uma preta que conduz tigres ferozes40[...] obrigando os transeuntes a correrem tapando o nariz”41 e outra “preta louca que vaga pelas ruas da capital”.42
Tal valorização discordante fica ainda mais clara com a leitura de como transcorria a dinâmica dos namoros à Praça. Nela, as meninas ricas transitavam na porção central da praça, enquanto em seu entorno transitava “o segundo time, isto é, as empregadinhas, as garotas mais pobres, as criolas dos morros” (Veiga, 2010, p. 209). Segregação semelhante, conforme refere Pereira (1996, p. 48), era imposta à categoria das amantes, das quais se exigia que compreendessem que “ali entre as famílias não é o seu lugar”. Nesse caso, então, a “modernização” da Praça XV de Novembro repelia aquelas que não se encaixavam nos padrões, às quais restavam os bastidores. Possivelmente decorrente desse embate é que, conforme refere Veiga (2010), o footing deixou de acontecer no local e, a partir da década de 1930, passou à Rua Felipe Schmidt, em “d” na Figura 3. Nesse sentido, as pressões advindas da coexistência espacial culminaram na expulsão da dinâmica preliminar, e não em uma possível convivência harmoniosa entre ambas, demonstrando a inconveniência de significados sobrepostos associados ao espaço.
Tal como a Praça XV de Novembro, também a região do Rio da Bulha, a leste daquela, sofreu modernizações ao final do Século XIX e início do Século XX, sob o mesmo discurso higienista. O local, conforme o Mapa de Ocorrências, demonstrou um caráter, em sua maioria, alinhado às territorialidades de criadas e amantes, estas últimas em função das ocorrências em si, e as primeiras pelo fato de o local abrigar relevantes fontes públicas e o rio principal associado ao ofício de lavagem de roupas. A nova conformação do local - frequentemente associado às lavadeiras e indicado como insalubre pela Medicina Social - canalizou o Rio da Bulha e influenciou o cotidiano das mulheres que tinham no local seu ganho diário. O período dessas reformas ficou repleto de ocorrências policiais envolvendo essas mulheres, devido às disputas pelos córregos que ainda restavam (Brignol, 2003). A demolição dos antigos casebres e a construção de edifícios sofisticados, que aumentavam a presença das mulheres de classes de alta renda, ao mesmo tempo repercutiram na expulsão das mulheres mais pobres (Pereira, 1996).
4.4. Expectativas: negociações entre o espaço público e o espaço privado
As relações entre as mulheres e a cidade repercutiram em distintas significações quanto ao espaço público e privado em Desterro/Florianópolis. De modo a entender tais divergências, sugerimos que, em lugar de nos basearmos no caráter dicotômico do espaço, imaginemos o trânsito feminino entre tais esferas. Nesse sentido, propomos que tal mobilidade ocorria seguindo três dimensões, definidas com os termos (i) negação, (ii) excursão e (iii) incursão, atravessadas pelo afrouxamento ou acirramento das opressões que incidiam sobre as mulheres no momento em que estas oscilavam entre a casa e a rua. Tais fluxos estão indicados na Figura 5.
A primeira dessas afluências se refere à (i) negação, relativa à categoria de esposas, e consequentemente às mulheres de elite, em sua maioria. A negação sugerida refere-se ao fato de que, para essas mulheres, a experimentação plena do espaço permanecia incompleta, pois sobre essas mulheres incidiam opressões tanto no espaço público quanto no espaço privado. No espaço público corriam o risco de ser confundidas com prostitutas e no ambiente doméstico estavam subjugadas ao acirramento do sistema patriarcal. Para elas, então, o espaço de transição entre público e privado, expresso nas janelas, apareceu como um local potencial onde podiam exercer, com relativa liberdade, sua territorialidade e, consequentemente, articular suas influências na produção do espaço, posto que, como demonstrado anteriormente, a presença feminina nas janelas era tolerada, ou mesmo estimulada pelos discursos da imprensa.
A dinâmica de (ii) excursão representa a experimentação de uma maior liberdade quando da transposição no sentido da casa para a rua, e estaria associada à categoria de criadas, composta, em sua maioria, por mulheres negras escravizadas. A justificativa repousa no fato de que, se relativizarmos as opressões sofridas por elas entre as esferas, chegaremos à condição de que, conforme sugere Dias (1995), o espaço público poderia representar uma maior liberdade quando comparado à opressão sofrida por elas no espaço privado, como também sugere Graham (1992). Perante isso, essas mulheres possuíam experiências mais variadas do que as senhoras dos sobrados, ou seja, sua excursão ao espaço público viabilizava, comparativamente ao espaço privado, uma menor condenação no ideário social. Em Desterro/Florianópolis, essa dinâmica seria potencialmente semelhante, uma vez que, conforme verificámos,43 poucas delas cumpriam os serviços exclusivos de “de portas a dentro”,44 onde acabavam sendo vigiadas com mais rigor. Ao contrário, observamos que a maior parte dessas mulheres cumpria tanto serviço externo quanto interno de uma casa, sugerindo, então, que em Desterro a maior parte das mulheres escravizadas tinha trânsito livre entre a casa e a rua.
A dinâmica de (iii) incursão representa a experimentação de uma maior liberdade quando essas mulheres desenvolviam o fluxo no sentido da rua para a casa, e estaria associada à categoria das amantes, e consequentemente às prostitutas. A condenação da presença dessas mulheres no espaço público contrasta com a condescendência em relação a seu ofício no espaço privado, como sugere um artigo que acusa que “homens de elevada posição [...] demonstram satisfação quando uma incauta donzela [...] vem aumentar o rol das infelizes”.45 Ou ainda outra passagem que, mais do que reivindicar a extinção da prostituição na cidade, sugere que as prostitutas sejam “recolhidas no Asilo Irmão Joaquim”.46 Ou seja, sua incursão no espaço privado representava um afrouxamento no discurso de opressão a elas. Ao contrário das categorias anteriores, no entanto, o espaço privado não representa necessariamente o local onde se experimentaria uma razoável sensação de independência, mas sim o lugar no qual os julgamentos que incidiam sobre elas eram amenizados, pelo menos discursivamente.
Ao sugerir que, em Desterro, as esposas exerciam sua territorialidade às janelas, as criadas executavam funções associadas tanto ao interior quanto ao exterior e que as amantes, de alguma maneira, escancaravam a “intimidade” nos espaços públicos é possível insinuar que essas mulheres aproximavam as esferas relativas à casa e a rua. Ao gerar tal conexão, essas mulheres potencialmente contribuíram, então, com a diluição da oposição entre o espaço público e o espaço privado em Desterro/Florianópolis.
5. Considerações finais
Como vimos, a alternância entre sujeição e condescendência da presença feminina no espaço variava de acordo com raça, classe e gênero - assim como a faixa etária, ou mesmo a sexualidade, das figuras envolvidas. Ficou evidente, também, que a função que justificaria tal ocupação feminina do espaço cumpria um papel indiscutível. Sobre tais deliberações, é possível perceber que quando a experimentação do espaço adquiria um caráter licencioso é porque estava associada, de alguma maneira, às dinâmicas amorosas. Ainda assim, possuíam características específicas conforme as colisões das opressões femininas, sendo que moças brancas de elite tinham ainda mais aceitação do que as mulheres negras empobrecidas. Por esse motivo, sugerimos as disponibilidades amorosas como interventoras principais quanto aos afrouxamentos e retraimentos das sujeições de esposas, criadas - ainda que sujeitas às especificidades das fronteiras sexuais de seus corpos - e amantes, bem como particularizavam seus trânsitos entre a esfera pública e a esfera privada.
Temos consciência de que as ocorrências espaciais femininas que fundamentaram as discussões esbarram na parcialidade das fontes, visto a carência de discursos femininos autênticos. Apesar disso, acreditamos que a discussão tenha auxiliado a problematização de diferentes valorizações, assim como significações, habitualmente associadas aos espaços público e privado. O presente artigo, então, não apenas reiterou as vicissitudes que caracterizam o espaço urbano mas, sobretudo, especificou-as ao explorar o caráter interseccional que as envolve. Acreditamos, ainda, que revelar tais aparatos fundamenta outras possibilidades para as narrativas de construção da paisagem urbana, expondo a representatividade feminina em relação à cidade e, portanto, reagindo à ideia de que elas pouco tenham contribuído com sua construção - mesmo se entendidas como possibilidades remanescentes, balizadas segundo a mediação entre a casa e a rua - para a produção do espaço urbano.