1. Introdução
Em 2021, na época em que este manuscrito foi produzido, estamos testemunhando tempos significativos para a arquitetura e urbanismo - a antiga produção ocidental nascida de um grupo social específico, em um século específico, para fins específicos. A produção de conhecimento em arquitetura e urbanismo está cada vez mais sendo contestada, e as abordagens hegemônicas em história e teoria da arquitetura, tidas como “padrão” (“Ocidental”), estão sendo cada vez mais questionadas. Há vários anos, cada vez mais currículos e programas se distanciam da grande maioria de questões sociais e urbanas fundamentais, clamando por respostas urgentes para fazer avançar as interpretações críticas das relações de poder no modo como teorizamos e propomos em nosso campo. O desenvolvimento progressivo da teoria feminista, dos estudos decoloniais e da teoria antirracista na arquitetura e nos estudos urbanos estão intensificando implacavelmente essa mudança de paradigma.
“Encarnando o vírus: intervenções epistêmicas e performativas à hegemonia disciplinar na arquitetura e urbanismo” apresenta os resultados preliminares de um projeto de pesquisa ainda incompleto, nascido durante a pandemia, graças a uma rede colaborativa transnacional e ao crescimento de um espaço de trabalho virtual comum. Em 2019, as três autoras começaram a trabalhar juntas em uma das quatro áreas de pesquisa “Arquiteturas feministas” do grupo de pesquisa “Urbanismo, Arquiteturas e Desenho Feminista”, uma rede de acadêmicas da América Latina, Caribe e Espanha com sede em Córdoba, Argentina, que realiza pesquisas principalmente nas línguas espanhola e portuguesa1. As autoras reuniram suas diferentes origens, trabalhos de pesquisa e locais limitados (Argentina / Brasil / Galiza-Espanha e os Países Baixos) para pensar de forma colaborativa sobre uma questão-chave: a análise aprofundada de diferentes formas epistêmicas e performáticas de intervir, desafiar e contestar a hegemonia disciplinar nos estudos arquitetônicos e urbanos. Ou seja, analisando a partir de uma perspectiva feminista como produzimos, disseminamos e validamos os conhecimentos disciplinares em arquitetura e os valores culturais que determinam esse processo.
Assim, o artigo apresenta as conversas que emergiram das perspectivas situadas das autoras (Haraway 1988), bem como interesses comuns, embora nunca tenham se conhecido pessoalmente e residam em países distintos. Este texto estrutura três vozes diferentes, em três partes escritas originalmente diferenciadas, em três línguas maternas diferentes (galego, espanhol e português), sendo finalmente traduzidas para o português. Esperamos que esse esforço possa contribuir para ampliar as perspectivas hegemônicas que emergem dos espaços de produção da literatura acadêmica em língua portuguesa. As observações finais resumem o objetivo comum de contestar a ilusão do “truque de deus”2 das produções arquitetônicas e urbanas que, para nós, ainda são profundamente parciais e excludentes. Conforme afirmado pelas palavras de Donna Haraway na década de 1980:
Quero uma escrita feminista do corpo que enfatize metaforicamente a visão outra vez, porque precisamos resgatar este sentido para encontrar nosso caminho através de todos os truques e poderes visualizadores das ciências e tecnologias modernas que transformaram os debates sobre a objetividade. Precisamos aprender em nossos corpos, dotados das cores e da visão estereoscópica dos primatas, como vincular o objetivo aos nossos instrumentos teóricos e políticos de modo a nomear onde estamos e onde não estamos, nas dimensões do espaço mental e físico que mal sabemos como nomear (Haraway, 2009, pp. 20-21).
Em consequência dessa perspectiva, tomamos a imagem simbólica de encarnar o vírus como uma estratégia metodológica que explicaremos ao longo do artigo, mas que implica fundamentalmente encarnar intervenções epistêmicas e performativas de um nós que expande e esbate os limites das disciplinas hegemônicas, sendo nós mesmas o vírus que tensiona e estica a disciplina. É importante levar ainda em consideração que esse encarnar também se relaciona com a dimensão subjetiva e emocional que atravessa a materialidade da carne, do ato de encarnar e performar.
2. Arquitetura esticada: desafiando a hegemonia disciplinar arquitetônica
Do ponto de vista histórico, a produção da arquitetura como disciplina científica acadêmica tem se baseado em um conjunto de saberes definidos como “profissionais” - denominados “objetivos”, “apolíticos” e “neutros” - que têm potencial para ignorar a lógica subjacente das relações de poder e as condições materiais sociopolíticas e econômicas em que foi produzida. Falamos, em outras palavras, de lógicas subjacentes coloniais, capitalistas, racistas e patriarcais que, desde o Renascimento italiano até o século XIX, foram paulatinamente implantadas nas universidades, em países onde o capitalismo industrial foi ganhando força. Essas lógicas resultaram no nascimento de uma profissão separada da criação de escolas e organizações profissionais, principalmente no século XIX, por e para homens privilegiados (Novas Ferradás, 2021). Esses princípios, fundamentos e conjuntos de conhecimentos em arquitetura têm sido cada vez mais disputados desde as últimas décadas do século XX, principalmente a partir da década de 1970. Mais de cinquenta anos depois, eles ainda são estruturantes do ponto de vista epistemológico.
Segundo as tradições da História, a dimensão temporal é relevante, e a inércia de mais de cinco séculos não pode desaparecer imediatamente. Embora, conforme explicado, desde as últimas décadas do século passado, a imaginação nascida dos movimentos populares de luta pela justiça social, inclusive a feminista, contestasse esses acordos gerais. Em especial a partir da década de 1970, um número crescente de feministas no mundo da arquitetura começou a produzir teoria em seus próprios termos, identificando vieses disciplinares opressores e disputando sua vocação apolítica e universal. A crítica se intensificou no âmbito latinoamericano e na Península Ibérica na virada do século, sobretudo a partir dos influentes trabalhos de Ana Gabriela Godinho (2012), Ines Moisset e seu grupo de “Un día/una arquitecta” (desde 2015), e Zaida Muxi (2018). Foi nesse momento que as mulheres passaram a ter acesso e a permanecer na profissão em maior número - apesar do enfrentamento à violência e sexismo presentes. De maneira geral, na década de 2000, estudantes de arquitetura atingiram a igualdade quantitativa, embora esses números estejam longe da realidade na prática profissional, sobretudo em termos de reconhecimento. No momento em que este texto está sendo produzido, começamos a ver os frutos da longa e dolorosa jornada de diferentes gerações, ao mesmo tempo que reconhecemos os grandes desafios que temos pela frente.
De acordo com Gramsci (apudSalem, 2020), a hegemonia nas narrativas de uma disciplina poderia ser a condição ou norma geradora de efeitos poderosos e permite o exercício das estruturas de poder. Baseada em normas, valores e ideias que criam uma visão convincente do mundo, que permite à classe dominante exercer o poder material. Uma visão de mundo que permite exercer o poder, em particular o poder material, mas também o poder do conhecimento que precede e define as estruturas e métodos. Tal ordem regula e registra os valores culturais para fundamentação das pedagogias e da prática da arquitetura e urbanismo. E o grupo específico de pessoas responsáveis pela produção do conhecimento na disciplina vem, desde as últimas décadas do século 20, se diversificando lentamente - pelo menos mais do que em seus 500 anos anteriores de história.
Os padrões arquitetônicos coloniais e androcêntricos têm raízes antigas. Em 1550, Giorgio Vasari publicou As vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos. Atualmente, a Wikipédia reuniu citações que identificam este volume como provavelmente o trabalho mais famoso e lido, escrito durante o Renascimento italiano, e o primeiro livro mais importante sobre a história da arte (e da arquitetura). Esta série de biografias de artistas e arquitetos do século XVI consagra a autoria individualizada e o formato biográfico como forma de criar conhecimento em arquitetura.
Historiadores da arquitetura frequentemente enquadram o nascimento da figura moderna do arquiteto, durante esse período comumente conhecido como Idade Moderna, com base nas interconexões entre a Antiguidade Clássica, o Renascimento italiano e o Romantismo. Normalmente, a compreensão moderna do arquiteto o define como um designer elitista e executor do projeto, distanciando-se do construtor - o mestre construtor medieval - reivindicando seu papel como artista solo e intelectual. Nos séculos seguintes, com base nesse mito, a arquitetura consolidou-se como arte liberal, sem dúvida influenciada pela idealização de novas regras de representação geométrica (a normalização da perspectiva) e pela disseminação dos tratados de arquitetura. O entendimento baseado em algumas das questões apontadas por Vitruvius sobre o que era um arquiteto - séc. I A.C. (uma pessoa que projeta edifícios que recebeu educação especializada, que aprende a desenhar e conhece a história da arquitetura) é revisado no século XVI e implementado no século XIX nas Universidades ocidentais europeias, no auge do capitalismo industrial (Novas Ferradás, 2021).
Portanto, a normalização da profissão como a entendemos hoje não ocorreria até o século XIX, quando as noções de gênio criativo do artista surgiram como produto do movimento romântico (Kristeller, 1944), influenciando definitivamente sua formação. O desenvolvimento da profissão especializada (arquitetura da engenharia, por exemplo) ocorreu em locais urbanos específicos onde a industrialização ganhava força. O arquiteto como artista intelectual e liberal, a serviço da comissão privada, constituiu-se como profissional formado em determinados padrões da época.
Ao longo de todos esses séculos em que as mulheres foram explicitamente excluídas da noção de ser arquiteto, o antropocentrismo doutrinário do campo criou raízes profundas no sistema hegemônico de valores. Esses valores determinaram os vieses androcêntricos na produção do conhecimento, bem como a norma antropométrica predominante na padronização na arquitetura e design, ocorridos durante o século XX. Do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci (ca. 1485) ao Modulor de Le Corbusier (1946), a norma hegemônica androcêntrica ainda tem a virtude de enquadrar a maioria em “minorias” e forçosamente pautar, de múltiplas formas, a vida destes por uma perspectiva tida como universal, da minoria hegemônica (Ruiz Menéndez, 2021). Arquitetura ao serviço de um cânone que ainda é regularmente reproduzido e manifestado na maior parte dos produtos culturais de nossa sociedade. Longe dos padrões hegemônicos criados por e para os privilegiados homens brancos, a multiplicidade de outros pela e para a maioria (Afaina de Jong en Nevejan, 2020) está ganhando terreno (disciplinar). Nesse processo, questiona-se não apenas o padrão antropométrico hegemônico para as pessoas, mas também a hierarquia de valores que definem o processo de design, como o modo de análise do espaço. Os valores por trás da prática vão além da dicotomia entre a função e a forma, e a lista interminável de estilos lidos do colonialismo (Baydar Nalbantoglu, 1998). Seguindo o que foi afirmado pelos referenciais arquitetônicos do século XXI, os arquitetos sempre aprenderam que a forma segue a função. Mas a função segue a forma? Nas relações humanas hierárquicas, sua forma provavelmente define a função3. Estamos apenas olhando para menos da metade do quadro se a história social e política da maioria for excluída da crônica arquitetônica hegemônica.
De modo mais específico, olhar para a expropriação das mulheres ao longo da história e a desvalorização histórica de seu trabalho têm implicações significativas. O feminino na arquitetura (e não só) entendido como o subalterno (Spivak, 1985), foi excluído pelas estruturas hegemônicas de poder patriarcal e colonial, entre as quais aspectos interseccionais interferem na nossa análise. Como explica Silvia Federici:
“Mulheres”, então, no contexto deste livro, significa não somente uma história oculta que necessita se fazer visível, mas também uma forma particular de exploração e, portanto, uma perspectiva especial a partir da qual se deve reconsiderar a história das relações capitalistas. A reconstrução da história das mulheres, ou o olhar sobre a história por um ponto de vista feminino, implica uma redefinição fundamental das categorias históricas aceitas e uma viabilização das estruturas ocultas de dominação e exploração (Federici, 2017, pp. 27 e 29).
Em geral, até a segunda metade do século XX, tanto nas Universidades quanto nas organizações profissionais, as mulheres eram ativa ou passivamente excluídas. O poder do conhecimento arquitetônico era masculino per se. Além disso, a riqueza gerada no exercício da profissão pertencia aos homens. Muitas vezes, essa restrição não foi especificada, pois era simplesmente impensável - apenas algumas décadas atrás, o mandato social destinado à parte das mulheres (principalmente brancas, de classe média ou da elite) era se casar e dar à luz. Donas de casa realizando o trabalho não remunerado de reprodução social, mulheres como trabalhadoras mal pagas e desvalorizadas -incluindo trabalhadoras domésticas-, etc. Os salários masculinos acumulavam toda aquela criação de riqueza, estabelecendo, ao mesmo tempo, a dependência de mulheres e crianças dos salários dos homens para a sobrevivência. E embora algumas mulheres excepcionais tenham conseguido ser admitidas como estudantes de arquitetura nas universidades décadas depois de terem sido criadas4, elas tiveram que enfrentar um ambiente extremamente hostil, e poucas se formaram. Portanto, essa acumulação (por expropriação) e divisão do trabalho enraizaram inércias na produção do conhecimento em arquitetura e urbanismo - sempre favorecendo a remuneração masculina no processo. Mesmo sabendo que a arquitetura é, majoritariamente, uma arte material e, sem bens materiais, não há possibilidade de construir arquitetura.
Em suma, conforme refere Salem (2020, p. 13), parece que na contemporaneidade existe uma incapacidade dos cânones da arquitetura de difundir seus ideais culturais normativos fora de uma porção particular e privilegiada da população. A partir da teoria decolonial, conceitos como esticamento (Fanon, 1963) da arquitetura para o alongamento da disciplina para além de perspectivas colonizadas e a própria ideia de “teoria itinerante” (Said, 1983), poderiam contribuir para tornar as disciplinas de arquitetura e urbanismo um projeto mais inclusivo e eficaz. Nesse sentido, é possível preparar o caminho para uma análise mais profunda do capitalismo colonial patriarcal no campo. Isso exigirá um novo equilíbrio e uma troca constante entre consentimento e coerção, um desafio que ainda temos pela frente na arquitetura. Uma luta para romper as hegemonias disciplinares atuais, encontrando maneiras flexíveis de adaptar a arquitetura e o urbanismo aos seus diferentes contextos - tanto quanto aqueles de onde emergem.
3. A fronteira doméstica como território epistêmico
O doméstico como lugar epistêmico
Explorar as intervenções epistêmicas da arquitetura hegemônica a partir de uma perspectiva feminista, envolve mergulhar profundamente nos dispositivos semióticos e políticos de seus fundamentos5 teóricos e técnicos. Do ponto de vista histórico, a esfera doméstica foi o detentor material e simbólico do patriarcado. Conforme afirmado por Gerda Lerner, em A Criação do Patriarcado:
Até o passado mais recente, esses historiadores foram homens, e o que eles registraram é o que os homens fizeram, experimentaram e acharam significativo. Eles chamaram isso de História e reivindicaram a sua universalidade. O que as mulheres fizeram e experimentaram foi deixado sem registro, negligenciado e ignorado na interpretação. [...] As mulheres foram sistematicamente excluídas da iniciativa de criar sistemas simbólicos, filosóficos, científicos e legais. As mulheres não apenas foram privadas de educação ao longo história, em todas as sociedades conhecidas, como foram excluídas da formação de teorias6. (Lerner, 1986, pp. 4-5).
Assim, nos perguntamos que tarefa temos em uma revisão epistêmica sobre a esfera doméstica. Habitando as paisagens que desenha a fronteira em seu interior (em espanhol, casa adentro), destaca-se fortemente o estereótipo do doméstico capitalista, colonial e patriarcal, ou seja, a posse de corpos feminilizados e a expropriação de sua vitalidade corpo-territorial. Rita Segato em entrevista, diz:
As mulheres nunca sofreram tanta violência doméstica como na Modernidade porque o sexual foi totalmente privatizado, o que é um erro, porque o sexual é político e bélico, não é sexual. Se o patriarcado não fosse a rede de significados e sentidos em que estamos aprisionados, a sexualidade não teria nenhum dos significados que tem entre nós7 (Segato, 2003, p. 189).
É desse modo que o doméstico se arquiteta, como o novo campo de batalha, onde toda a biopolítica que se aplica a ela, é uma nova configuração de dominação dos corpos feminilizados.
A partir da normatividade conjugal (ou heteronormatividade), o poder doméstico e cotidiano está posto na esfera privada. Pois bem, a partir do contrato sexual monogâmico, o contrato social da modernidade ainda está em vigor hoje. Michel Foucault argumenta:
A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. (Foucault, 1976, p. 9).
Nas fronteiras da casa adentro, instalam-se as matrizes pedagógicas da violência patriarcal, das novas formas de vulnerabilidade e da precariedade dos corpos feminilizados - principalmente de mulheres e meninas. Ou seja, o que separa a privatização do doméstico é o fundamento do patriarcado e sua violência.
O espaço doméstico torna-se um espaço ao serviço do senhor, o pai de família, de sua lei, de sua norma e de seu sustento. Desse modo, constrói-se um poder territorial que profanará a vitalidade dos corpos feminilizados, a partir da desapropriação da soberania de sua sexualidade e de sua espacialidade.
Essa profanação opera a partir do dispositivo doméstico-político-semiótico que significa o confinamento da casa adentro, na implementação de uma série de tecnologias sobre a forma de vínculo da vida-território-corpo que vai desde a espacialidade, a vinculação, partindo da expropriação do corpo erótico, reduzindo-o a um corpo sexuado, à redução das liberdades criativas na experiência do espaço. Todo o poder está preso na segregação dos binarismos espacializados, a serviço do design heteropatriarcal. Este último faz da matriz doméstica a base para a reprodução dos valores sociais: corpos sexuados, espacialidade-escravocrata, vínculo-adultocêntrico. Todos os corpos que habitam a espacialidade conjugal doméstica, permanecem sob a hierarquia do senhor - o patriarca, o guardião, o pai de família, reduzido a bens e serviços de seu domínio. É, portanto, a continuação política da guerra.
A arquitetura hegemônica faz do território uma matéria de desenho heteropatriarcal. O território, os corpos, a espacialidade, os vínculos são construídos de acordo com as novas políticas de guerra na esfera doméstica, onde a economia para a reprodução da vida se sustenta no trabalho quase escravo e invisibilizado de corpos feminilizados, principalmente mulheres e meninas.
Instala-se o modelo político de normalização territorial: a segregação do doméstico casa adentro. A gestão da vitalidade coletiva do corpo-territorial se privatiza, deixando-a isolada e sob a tutela do patriarcado. Essa tutela não apenas supõe uma violência intrínseca na gestão do cotidiano, mas se apropria da epistemologia do doméstico, ou seja, tudo é funcional ao sistema heteropatriarcal e, a partir daí, seu desenho.
A moral técnica patriarcal e sua justiça: estereótipos
Por que a teoria da arquitetura e o projeto estão separados e não fazem parte do mesmo corpo teórico-técnico? Desmistificar “mulheres fazem teoria” - o que se diz: elas não transformam a realidade - e “homens projetam”.
São mais de 3500 anos de subordinação, cumplicidade e dominação. A maquinaria doméstica reproduz, do simbólico ao funcional, um desenho que responde às necessidades desse sujeito masculino, branco, trabalhador, homem de boa vontade, etc., tornando-se o lugar para o seu sustento, tanto material como simbólico. As espacialidades domésticas abrigam toda a força disciplinadora dos corpos. Não só pela estrutura da sua funcionalidade, mas pela imagem que reproduzem ao modo de uma pedagogia. Perguntamo-nos: que produção de normatividade subjetiva se instala na espacialidade do doméstico? O que “despotencia” ou captura toda a diversidade da vitalidade não-hegemônica, típica dos corpos feminizados? Que estereótipos são reproduzidos em casa?
A moral técnica patriarcal se projeta segundo três ordens principais, para sua manutenção e reprodução, a saber: econômico, político e cultural. A ordem econômica é aquela ditada pelo mercado, aquela que usa e abusa dos sistemas assistenciais e domésticos, como valor profanado. A ordem política, que, para entendê-la, poderíamos dividir em três categorias a partir de três autoras feministas, a dona (Segato, 2013) minha filha, minha esposa, minha casa; precariedade (Butler, 2004) que traça uma cartografia do poder e dos corpos que importam, e daqueles que não importam; e o consequente estado de insegurança (Lorey, 2012). Isso implica a precariedade como forma de governo, e o estado de insegurança como produção subjetiva, isto é, corpos medrosos, ávidos por uma estabilidade social, o que cria toda uma conexão e consequente espacialidade policial. E, por fim, a ordem cultural androcêntrica, que obedece a uma justiça patriarcal, que não adere à superfície da vida e ao que ela precisa, mas se arma e se fabula com as narrativas patriarcais: os estereótipos.
Aqui reside a necessidade de mudar tudo. Estereótipos são ficções que regem a disciplina. Ou seja, o purista, o sexista, o reducionista e o patriarcal que nos fragmenta, nos enclausura e nos despreza casa adentro. Essas três ordens disciplinares têm um correlato espacial que nos domestica em seu sentido pejorativo. Ou seja, eles nos armam com uma forma de vida reduzida ao patriarcado. Talvez a pergunta necessária pudesse ser o que esses corpos feminizados podem fazer, de que espaços eles precisam para expandir sua vitalidade, o que aconteceria, se eles próprios fossem os protagonistas do desenho urbano. Que cenário se instaura libertando o doméstico das fronteiras forçadas da casa adentro? Quais poderes se armam e se constroem no doméstico sem fronteiras definidas ou bem definidas? De quais estruturas espaciais uma vitalidade estendida precisa? Que vínculos se definem?
Principalmente, quando se fala de domesticidade ampliada, falamos de uma territorialidade justa, de uma espacialidade guardiã de uma justiça que se arma na vida do e com o cotidiano, cheia de afetos e sensibilidades, onde o que rege as formas são as qualidades destes.
Pensar em um NÓS para a construção de abrigos
Pensar em um NÓS (ou NOSOTRAS, em espanhol) para a construção de abrigos, tem uma historicidade regional do sul global. São precisamente aqueles espaços que são ameaçados por capitais globais transnacionais que querem transformá-los em bens e serviços que se defendem ferozmente do extermínio e do desaparecimento, e nessa defesa e reexistência afirmam o não-patriarcal, o não-capitalista, o não ao colonial. Temos muito que aprender com esses territórios vivos.
As Arquiteturas Feministas fazem uma abordagem material e simbólica, a partir de uma ética da subalternidade como política de subjetivação, ou seja, de onde aquele outro, despido de voz, recupera e afirma aquela voz profanada, e passa a ser protagonista, com sua necessidade e sua diferença. Ouvir seu manifesto de desconforto é o início de um projeto que podemos chamar de Arquitetura Feminista.
Então, longe de ser um estereótipo normativo e disciplinador, as Arquiteturas Feministas recompõem esse nós que integra o corpo coletivo para cuidar da vida, de seu desejo, de sua força relacional, da forma de sua paisagem e de sua materialidade, como tribo, teia, rebanho, comunidade, o território coletivo que constrói os cuidados necessários contra a profanação do que importa.
4. Proposta Encarnada: performatividade como alternativa metodológica
Por que considerar o corpo das mulheres como um instrumento teórico metodológico potente, sobretudo, a partir da sua experiência do cotidiano? Aqui, propomos encarnar nossos corpos feminizados, vistos e considerados estranhos (queers), como um vírus, que não nasce necessariamente de uma linguagem metafórica sobre a doença (Sontag, 1977), mas de encarar que nossos corpos vivenciam esse paradoxo da corporificação da estranheza imposta, como também uma possibilidade de transformação encarnada pelos feminismos. Ou seja, uma fusão a partir desta estranheza imposta (racismo, sexismo, colonialismo) que busca nos matar, e se transforma, para desestabilizar e romper hegemonias, inclusive do ponto de vista epistêmico e metodológico. Ao invés de assumirmos esse lugar como natural, encarnando passivamente a dominação masculina, encarnar o vírus é estabelecer uma resistência oposta às opressões. E assim, surge nossa vontade de transformação, no dia-a-dia de nossas vidas. Um desejo de existência em ação, enraizada no cotidiano. Por essa razão, trazemos uma discussão sobre nossos corpos estranhos (feminizados e feministas) que agem e performam tal qual uma matéria social que intoxica possibilidades de intervenções epistêmicas e performativas. E assim, neste processo, desconstruir os efeitos hegemônicos da reprodução teórica e da prática política em nosso campo.
Por isso, pensar em Arquiteturas Feministas seria um processo de construção, encarnada por este vírus paradoxal, de uma epistemologia do cotidiano e do corpo-território, sem distanciamentos ou perpetuação ideológica da neutralidade científica. Uma construção que, profundamente do ponto de vista da materialidade social e subjetividades de nossos corpos e cotidianos, diferencial e desigualmente constituídos, propomos ativar de modo corporificado processos paradoxais de práticas e relações, desestabilizando e construindo outros caminhos epistêmicos.
Tal alternativa de abordagem metodológica busca tensionar as epistemologias hegemônicas para confrontar a ideia de método a partir de um único caminho. As perspectivas teóricas e conceituais consolidadas de forma petrificada e inquestionável, confundindo-as com regras e normas insuperáveis. Colocar nossos corpos feminizados no centro do debate teórico-metodológico tem um sentido pedagógico de apontar as contradições de gênero como estruturais da construção da racionalidade acadêmica e profissional e, consequentemente, o processo de desigualdades reproduzidas através da produção do conhecimento. Tal abordagem pressupõe uma posição ativa, de intervenção epistêmica e performativa, já que nos faz confrontar e encarnar um corpo-território, isto é, uma experiência de proposição conceitual que nos situa como corpo feminizado tanto como sujeitas como objetos de pesquisa, demonstrando os estranhamentos que nosso corpo e nossa experiência generificada do cotidiano causam na disciplina (Tavares & Ramos, 2021).
Pesquisas a partir de abordagens teórico-metodológicas feministas, críticas ao colonialismo, têm apresentado a importância da relação entre corpo e território para a compreensão da corporificação generificada da experiência cotidiana para fazer frente a ideia de espaço e território como matéria congelada, como mercadoria, alisando complexidades, contradições por conta de um ideal de ordem urbana. Uma ideia de reforma urbana higienista e violenta depende pois não só de ordenamento espacial pré-concebido, ignorando o vivido e o percebido (Lefebvre, 2000) onde é possível performar e estar nos territórios em nossos termos. Ao contrário, em várias cidades do mundo, de Paris ao Rio de Janeiro, de A Coruña a Buenos Aires, corpos foram violentados e despejados/deslocados para onde é tolerável uma ideia positivista de desordem, como periferias e favelas.
A pandemia tem exposto a necessidade cada vez mais urgente de salvar e sustentar vidas, ao invés de se concentrar em salvar a economia ou os lucros perdidos (Bhattacharya, 2020). Não é possível olhar apenas como pressuposto teórico e propositivo que o lugar da reprodução é realizado pelas premissas impostas no século XX, até porque esse padrão heteronormativo, patriarcal e europeu nunca foi uma realidade para as mulheres populares, não-brancas. A historiadora brasileira Rachel Soihet (1989), em sua pesquisa sobre a criminalidade feminina no Rio de Janeiro no período entre 1890 a 1920, momento que o urbanismo surge como disciplina, nos revela uma leitura das diferenças do cotidiano dessas mulheres e como também projetos de reforma urbana interferiram e estruturaram suas práticas sociais. A chamada Reforma Pereira Passos (1903-1906), inspirada no projeto dito de modernização realizado em Paris no século XIX (1853-1870), foi a expressão mais radical de uma lógica positivista e higienista de ordem urbana cujas consequências foram basicamente o controle e segregação dos corpos através da violência (Tavares, 2015). Uma perspectiva de ordem que impedia a permanência das mulheres nos espaços públicos ou de incorporar uma mulheridade oposta aos estereótipos burgueses e sexistas da época. Contudo, elas tiveram papel de destaque nos processos de resistência à reforma urbana no centro do Rio de Janeiro. Por isso, a pesquisa se debruçou sobre os processos criminais, pois essas mulheres encarnavam práticas estranhas à ordem urbana. Em razão disso, eram criminalizadas.
Por esta razão, investir em pesquisas que foquem no tema da domesticidade, relacionada estritamente ao espaço físico doméstico, como a eficiência da cozinha pelo princípio da diminuição do trabalho (vide a cozinha de Frankfurt proposta pela arquiteta austríaca Margarete Schütte-Lihotzky - 1897-2000), não parecem ser suficientes como chaves analíticas, interpretativas, e até propositivas, do ponto de vista do controle dos corpos feminizados, enquadrados numa lógica de ordem e eficiência da vida cotidiana reprodutiva, para manutenção das contradições capitalistas de produção do espaço urbano. A domesticidade aqui também pode ser lida paradoxalmente com a domesticação dos corpos das mulheres, imbricada pela perspectiva de ordem urbana das cidades. Um processo ainda presente na contemporaneidade. Inclusive, por isso é significativo estabelecer um olhar de espaço urbano que incorpore a dimensão do privado, do doméstico, e não apenas do espaço público, usualmente associado como sinônimo de espaço urbano. Aí reside uma das dimensões do necessário esticamento da disciplina, quando reconhecemos a indiferença das práticas espaciais da vida reprodutiva que são corporificadas pelo controle.
Torna-se ponto fundamental em nosso debate, neste artigo, inverter, colocar do avesso a perspectiva das análises, encarnando radicalmente viradas no cotidiano para construção de outras perspectivas teórico-metodológicas (Tavares & Ramos, 2021). Isso porque não há exercício teórico feminista que seja não corporificado/encarnado que não exercite ou pelo menos vivencie paradoxalmente essas fronteiras, entre o imposto e as resistências encarnadas.
Assim, reclamamos pela interseccionalidade epistemológica corporificada, ou seja, encarnada, como uma espécie de reconquista, de uma retomada de “viradas de mesa”, pelo cotidiano e para o cotidiano. Entendendo que, nos termos de Lefebvre (2000), a repetição das práticas sociais/espaciais num espaço constituído pela homogeneidade como meta (espaço abstrato), produzem resíduos, com possibilidades de “viradas de mesa”, do direito ao espetáculo, segundo Ana Clara Ribeiro (2010), ou o direito a aparecer (Butler, 2019), uma espécie de brecha para o direito à cidade, um espaço diferencial (Lefebvre, 2000), sem espetacularização ou até mesmo indiferença aos corpos feminizados (Tavares & Bonadio, 2021). Uma espécie de reformulação das práticas metodológicas diante das relações de poder onde a ordem do corpo contribui para compreender a cotidianidade do espaço urbano, atravessado pela dominação heteronormativa, patriarcal, racista e colonial, numa noção de ordem violenta, restritiva e opressora da experiência vivida pelas mulheres.
Neste sentido, avaliamos que esta postura teórico-metodológica pode cumprir com a desconstrução da “marginalidade” por exemplo do trabalho doméstico para a reprodução social do capital e do lugar marginal em que as mulheres são enquadradas, consequentemente. A vida cotidiana da reprodução social aqui não é interpretada do ponto de vista da sua relação com a produção, como se o trabalho doméstico fosse improdutivo ou, mesmo, redefinido numa perspectiva de arranjos espaciais e arquitetônicos para liberar tempo ao trabalho dito produtivo. Este artigo questiona tal lógica, pois ela é justificadora das opressões, e a uma ideia de direito à cidade ligada não ao direito de trabalhar, mas de trabalhar mais, das mulheres serem mais espoliadas (Federici, 2021). Sendo assim, a epistemologia vigente busca naturalizar e normatizar essa lógica de exploração e perpetuação de desigualdades.
Sendo assim, encarnar o vírus é performar o esticamento da disciplina de arquitetura e urbanismo, colocando no centro a reprodução social como estrutural de encarnarmos epistemes feministas e decoloniais. Performamos um olhar analítico do espaço urbano a partir da reprodução social com seus efeitos e possibilidades de transformação na vida urbana. Com isso, aprofundamos a abordagem sobre o urbano levando em conta radicalmente os espaços domésticos e institucionais e, certamente, não só questionamos mas também performamos interferências no modo como se produz conhecimento. Esse movimento performático, nada mais é do que performa nossa estranheza (como vírus) para transpor limites para os quais não fomos treinadas. Por isso, esticar a arquitetura, por uma Arquitetura Feminista, ainda é uma ato de coragem.
5. Questões finais
A hegemonia na produção e reprodução do conhecimento na disciplina de arquitetura e urbanismo, assim como suas metodologias, têm sido disputados pelo movimento feminista, principalmente nas últimas décadas do século XX. Falamos de uma visão hegemônica da disciplina baseada em normas, valores e ideias, de onde se exerce o poder do material (Salem, 2020), e do simbólico, historicamente resultando no apagamento, desapropriação e apropriação do trabalho exercido pelos corpos femininos, mas não só. Nossas práticas e resistências, quando invisibilizadas, também nos desencarnam e estabelecem um desencontro inclusive com o nosso lugar epistêmico de interpretação dos territórios urbanos e nos assujeitando a reprodução de propostas, práticas e teorias. Sabemos que o debate sobre gênero e resistência tem sido esvaziado, perdendo potências de luta epistêmicas e políticas. Por essa razão, neste contexto de pandemia, propomos encarnar um vírus de possibilidades de intervenções epistêmicas e performativas para a encarnação ou corporificação urgente de novas abordagens teórico-metodológicas.
O esticamento das abordagens analíticas sobre a vida e o espaço urbano a partir da reprodução social é ter coragem de nomear nossas perspectivas como Arquiteturas Feministas com vista a disputar simbolicamente subjetividades no âmago histórico de discriminação metódica de ensino e pesquisa do diferencial, priorizando as superficialidades da ideia de universalidade hetero-patriarcal.
Um lugar político que encarnamos nesta disputa epistemológica histórica que parece ser recente. Na verdade, temos conseguido ampliar nossas aliadas e fazer ressonar nossos esforços como arquitetas feministas de falar, mesmo neste lugar de subalternidade sobre a complexidade da vida cotidiana de quem não se submete. Sem binarismos, sem reducionismo histórico, de forma transdisciplinar e encarnada nos territórios. Falando abertamente de que performamos como estratégia metodológica, como busca de transformação no cotidiano, para o cotidiano.