Introdução
A história da Arquiteta Maria José Abrunhosa de Castro (1949-1999) é marcada pela sua formação superior, concluída durante os últimos anos da ditadura do Estado Novo (1933-1974), e pela experiência no programa habitacional Serviço de Ambulatório e Apoio Local (SAAL-Norte), programa desenvolvido logo após o 25 de abril de 1974. Com cerca de 25 anos de trabalho, praticamente desconhecidos, Abrunhosa de Castro fez parte de uma geração de arquitetos/as que começou a integrar, de forma sistemática, o corpo técnico das autarquias no início da década de 80. O seu trajeto profissional encontra-se vinculado à cidade da Guarda e a muitos dos seus concelhos vizinhos, onde exerceu cargos públicos e atividade como profissional liberal. Foi a partir desta região que Abrunhosa de Castro colocou em prática ideias que fazem parte da cultura arquitetónica e do seu discurso disciplinar, debatendo as condições externas e contextos específicos do seu exercício, nomeadamente as circunstâncias políticas, sociais, culturais e os seus efeitos no exercício da arquitetura e do planeamento urbano.
É importante referir que a investigação acerca da história das arquitetas portuguesas só recentemente tem começado a ser desenvolvida de forma sistemática e coerente1. Este artigo, centrado no percurso da Arquiteta Maria José Abrunhosa de Castro, pretende constituir-se como parte integrante desse corpo de conhecimento, em particular no desenvolvimento da investigação sobre as arquitetas na segunda metade do século XX2. Metodologicamente detém-se numa abordagem biográfica ao seu trabalho, que tem como objetivo estabelecer uma aproximação às suas ideias, pelo entendimento do seu percurso pessoal, académico, ativista, político e profissional, mas sobretudo de análise à sua produção teórica3. Esta abordagem não pretende esgotar-se aqui, pelo que uma investigação mais robusta entende-se necessária, que possa recair numa análise mais profunda aos cargos de responsabilidade na gestão urbana, aos projetos de arquitetura e urbanismo, aos instrumentos de planeamento desenvolvidos, à extensão da sua participação no programa habitacional SAAL-Norte e na Associação dos Arquitetos Portugueses, entre outras atividades. Será importante perceber se esta arquiteta, intimamente implicada na vida coletiva, compreende como as transformações espaciais detêm um papel ativo na organização do lugar da mulher nas dinâmicas sociais.
Para atingir o objetivo proposto recorreu-se a material de arquivo: aos artigos de opinião que, entre 1992-1999, Abrunhosa de Castro publicou em imprensa de circulação regional e nacional. Também se fez uso da entrevista aberta como método de investigação. Foram realizadas entrevistas ao marido de Abrunhosa de Castro, o Arquiteto Sérgio Gamelas, numa recolha de dados sobre o percurso de vida de ambos, bem como das opiniões subjetivas sobre as experiências tidas. De igual modo, foram conduzidas entrevistas junto de políticos da cidade da Guarda, nomeadamente os ex-presidentes da Câmara Municipal da Guarda, Abílio Curto (1976-1995) e Maria do Carmo Borges (1995-2005). O poeta, ator, encenador, performer, ex-diretor do Teatro Municipal da Guarda, e atualmente diretor da Direção Geral das Artes, Mestre Américo Rodrigues, que privou com o casal na cidade da Guarda, foi igualmente entrevistado. Estas entrevistas, dirigidas à compreensão do crescimento da cidade da Guarda, não deixaram de parte algumas reflexões, abaixo sumarizadas, referentes ao espírito reflexivo e combativo de Abrunhosa de Castro.
Deste modo, este artigo estrutura-se em três momentos. Os dois primeiros são tidos como essenciais para compreender o terceiro. A parte inicial centra-se no período de formação superior de Abrunhosa de Castro e na sua primeira experiência profissional, no SAAL-Norte. A segunda parte, durante a década de 80, debruça-se sobre o trabalho desenvolvido na Câmara Municipal da Guarda, na qual, entre várias ocupações e cargos por ela assumidos, se destaca a coordenação do Projeto MEREC e do Plano Diretor Municipal (PDM) da cidade. O terceiro momento aborda a sua produção escrita, patente em crónicas de opinião. Aí, Abrunhosa de Castro apresenta ao leitor/cidadão ideias sobre a importância da qualidade arquitetónica e do planeamento urbano na defesa do interesse público, da política e da democracia, como intrínsecas à cidade. Reflete sobre o valor da contestação dos poderes estabelecidos e o desejo de uma sociedade informada, crítica, exigente e contestatária.
1. Formação Superior e o SAAL-Norte
Maria José Abrunhosa de Castro (figura 1) nasceu em 1949 no Porto. Filha única, os seus pais eram oriundos da Região Norte de Portugal, nomeadamente de Trás-os-Montes. Criaram residência no Porto devido à profissão do pai, comerciante de tecidos. Segundo Gamelas (2021), seu marido, a sua orientação profissional deve-se ao carácter metódico do pai, e ao recurso à orientação psicológica, que testou as suas aptidões para arquitetura. Assim, prosseguiu os seus estudos nesta área com grande apoio familiar. Importa assinalar a singularidade da sua trajetória formativa pois, durante a ditadura, particularmente no final dos anos sessenta, a formação de raparigas era essencialmente orientada para profissões tradicionalmente femininas. As mulheres da burguesia viam a sua educação limitada ao sétimo ano do curso liceal, a cursos médios e superiores, em especial na área de letras (Pimentel, 2015, pp.366-367). Em setembro de 1966, Abrunhosa de Castro entrou no curso de Pintura da Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP). Aí deve ter solicitado a mudança para o curso de Arquitetura, que conclui em 1975.4 Antes de terminar a sua formação, em setembro de 1969, casou-se com Sérgio Gamelas e partiu com ele para Angola, enquanto esteve destacado como alferes miliciano durante a Guerra Colonial. Viveram durante cerca de dois anos numa povoação chamada Mavoio, na província de Uíge, localizada cerca de 600 Km a Norte de Luanda. Sobre a vida em Angola escreveu:
“A vida corria calma. Foi uma lua-de-mel de quase um ano, mas cheia de peripécias. Na nossa casa havia um laboratório de fotografia, instalado na antiga cozinha. Todas as noites um soldado e um cabo habilidosos iam lá fazer fotografias dos colegas, para mandarem para casa.(…) Eu andava de socas com mais de 10 colares ao pescoço, porque estávamos nos finais dos anos 60 e era o tempo da flower generation. Em Maquela comentava-se no quartel que havia um alferes que tinha trazido uma mulher um bocado «original».” Abrunhosa de Castro (1999, p.10)
O casal regressa a Portugal em 1971, e Abrunhosa retoma os estudos de arquitetura que havia suspendido na ESBAP, agora sob os efeitos da crise estudantil. Juntamente com o marido envolve-se nas atividades do movimento estudantil do Porto:
“O departamento de arquitectura estava em crise e as aulas não começavam. A agitação estudantil estava ao rubro - estávamos em 1971… Um dia, no meio das manifestações e fugas à polícia, ouvimos dizer que à noite havia uma reunião das associações de estudantes no Teatro Universitário. Nada de perder aquilo. Até porque as associações eram clandestinas e havia muitas tendências associativas para além da que estava ligada ao PCP - que não nos interessava. (…) Assim nos envolvemos de corpo e alma nas lutas estudantis dos princípios dos anos 70, eram lutas contra um ensino arcaico, onde não se podia ter acesso a filmes, a livros, a informação digna do mínimo de credibilidade. E isso é particularmente irritante para a alma estudantil, já de si predisposta a revoltar-se pelo mínimo pretexto. Nós, além do pretexto, que não era pequeno, tínhamos mais: a aventura e o risco. Julgam que não é um factor tremendo de atracção?” Abrunhosa de Castro (1999, p.10)
Após o maio de 68, a crise estudantil foi o culminar de uma série de acontecimentos que tornaram cada vez mais frequentes as contestações ao regime autoritário e ao processo de reforma do ensino universitário português, iniciado em 1957. Ao longo de 1968, julgou-se que a transição de poder entre Salazar e Caetano criaria um programa político de liberalização e modernização da sociedade portuguesa. Contudo, com a manutenção da Guerra Colonial, esta ideia de progresso revelou-se profundamente antagónica (Rosas, 1992, pp.547-54). Se antes de Marcelo Caetano a repressão policial teve lugar, intensificada pela violência sobre os manifestantes, após as eleições de 1969, marcadas pela fraude, emerge um novo ciclo de repressão, com a prisão e exílio de oponentes ao regime, para além do encerramento de sindicatos e associações estudantis (Moniz, 2008, p.3). Perante este cenário, a crise estudantil de 69 foi alimentada pela retórica antirregime, envolvida em questões sociais e em profundo desagrado com a Guerra Colonial em África (1961-1974), mas também pela receção da cultura juvenil mundial, numa rebeldia que irrompia pelo mundo, auxiliando na difusão de novas posições políticas, mudanças na moral e nas sociabilidades (Cardina, 2008, p.118).5
Os movimentos estudantis operavam pelo intermédio de uma oposição cultural, especialmente em Coimbra, mas também no Porto (Moreira, 2010),6 e adotaram “tácticas «filo-guerrilheiristas» de embate com as autoridades ou a elaboração de cartoons humorísticos, exemplos de novas formas de ação que entroncam em modalidades de contestação emergentes, nas quais as componentes política, cultural e geracional se combinavam” (Cardina, 2008, p.119). Apesar da forte retaliação policial para o encerramento das associações estudantis, os estudantes das três cidades universitárias (Coimbra, Porto e Lisboa) mantiveram uma campanha de resistência com grandes manifestações e greves na primavera de 1971, 1972 e 1973. A campanha era feita segundo uma leitura politizada antifascista e anticapitalista, conduzida, em parte, por grupos revolucionários de extrema-esquerda, radicados no meio estudantil, motivados pelos “referenciais éticos e estéticos provenientes da revolução cultural chinesa, revolução cubana ou das generalizadas lutas estudantis” (Cardina, 2008, p.123).
Foi nestas circunstâncias que Abrunhosa de Castro regressou aos estudos em arquitetura, tornando-se militante ativa do movimento associativo estudantil do Porto. De salientar que as associações de estudantes funcionavam de forma semilegal, sujeitas ao escrutínio académico e policial. Muitas foram criadas à margem da lei por funcionarem tendo por base posições ideológicas contrárias às do regime (Moreira, 2010). Foi em clandestinidade que Abrunhosa de Castro participou das atividades do movimento que concorreu às eleições na Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina do Porto, em 1973, designado de «Por um Ensino ao Serviço do Povo». Este movimento que, além do subentendido fundamento ideológico marxista, era marcado pela crítica à cultura interessada no sentido gramsciano, onde os estudantes universitários e os intelectuais, ao invés de atuarem na naturalização das ideias da ordem vigente, eram os detratores de esquemas político-económicos (Moreira, 2010).7 Abrunhosa de Castro foi também dirigente da União de Estudantes Comunistas (marxista-leninista) UEC (ML), sob o pseudónimo «Saul». A UEC (ML) era uma organização comunista para a juventude, promovida então pelo Comité Marxista-leninista Português. A sua atividade política estendeu-se ainda à participação no Jornal A Verdade, no Partido de Unidade Popular (PUP) e no PCP (ML) (Pereira, 2011). Este último com influência comprovada na Universidade do Porto, partido legatário do PCP e conotado ideologicamente com o maoísmo (Moreira, 2010). Entre as ações desenvolvidas em militância, encontram-se textos publicados anonimamente, a ilustração de cartazes e panfletos e a documentação fotográfica da vida militante, antes e após o 25 de abril (figura 2).
Em 1966, na ESBAP, o curso de arquitetura que Abrunhosa de Castro frequentava estava em crise profunda. Uma crise derivada do processo de reforma do ensino superior português, iniciado em 1957, e segundo o qual se procedia à substituição do sistema Beaux Arts.8 Em 1958, foi adotado um novo sistema, de interdisciplinaridade e capacitação técnico-científica, tendo sido desenvolvidas com os alunos estratégias de reflexão e debate sobre a cidade e problemas sociais e urbanos, com influência das abordagens realizadas à arquitetura pelos sociólogos Chombart de Lowe e Henri Lefebvre (Moniz, 2008, p.7). Segundo Moniz (2010, p.59), foi um período em que os arquitetos “procuraram promover a função social do arquitecto, atento aos problemas da sociedade e da cidade por oposição ao arquitecto tecnocrático”. Da consciência social, preconizada pelos professores, a pedagogia do projeto arquitetónico é substituída pela contestação política, com a participação dos alunos nas lutas estudantis. Depois do encerramento da escola, no ano letivo de 1969-1970, permanece em exercício um regime experimental de ensino até 1974, período durante o qual a crítica é regra do processo criativo (Moniz, 2008, p.10).
Por intermédio destas vivências e abordagens, preconizadas no curso de arquitetura da ESBAP (figura 3), a geração de Abrunhosa de Castro adquiriu ferramentas que motivaram a intervenção em questões habitacionais. Em contiguidade com o 25 de abril de 1974, o programa habitacional SAAL (Serviço de Ambulatório de Apoio Local) veio a intensificar o debate sobre a função social do arquiteto. Desenvolvido pelo Secretário de Estado Nuno Portas, o SAAL era um serviço de suporte às populações organizadas em associações de moradores que, por intermédio de brigadas técnicas, atuava na melhoria das condições habitacionais de bairros degradados, construindo novas casas e infraestruturas (Bandeirinha, 2010). A Norte, alunos e professores da ESBAP participaram num novo método de projeto centrado em novas estratégias de ensino, conhecendo intrinsecamente os locais e estabelecendo o diálogo com a população, naquele que foi um dos primeiros exercícios sobre a construção da cidade em democracia.
Sérgio Gamelas (2021) refere que ele e a mulher chegaram ao SAAL de forma natural. Ambos estudavam e trabalhavam com professores da ESBAP e tinham conhecimento da existência do programa. Na altura residiam na Ramada Alta, muito perto do Bairro da Bouça (figura 4). Um dia decidiram falar com os moradores do bairro para aferir o seu interesse em criar uma associação de moradores. No âmbito do SAAL-Norte, Abrunhosa de Castro foi a 2ª responsável pela Brigada Técnica da Bouça, juntamente com o marido, com a Arquiteta Anni Gunther Nonell e com Jorge M. O. Moreira (Bandeirinha, 2010, p.416). A Brigada Técnica, na proximidade que tinha com a associação de moradores, agia na discussão do projeto e no levantamento “das necessidades das populações, que queriam, o que estavam à espera” e também na sua politização que, segundo Sérgio Gamelas (2016) “era ao contrário, a população é que nos devia politizar a nós, mas ali era uma espécie de manifestações e exigir isto aquilo ou aqueloutro (…). [E, na altura,] As ilhas tinham uma falta de espaço tremenda, as pessoas viviam amontoadas, sem o mínimo de condições, era uma coisa terrível”. Sobre esta experiência, Abrunhosa de Castro escreveu:
“Descobrimos que para a zona da Bouça, que fica perto da Boavista, havia um ante-projecto do arquitecto Siza Vieira, julgo que para o Fundo de Fomento da Habitação. O estudo tinha ficado na Gaveta; e logo a nossa Brigada Técnica e a Associação de Moradores da Bouça contactou o autor para que desse seguimento ao trabalho, adaptando-o aos novos residentes. Foi pois o projecto do arq.º Siza que a Associação de Moradores da Bouça veio a construir, após um logo processo de discussões com a direcção e com os associados, sobre a forma das casas, onde dominava o português vernáculo «à Porto» que o arquitecto digeria com a maior aparência de normalidade.” Abrunhosa de Castro (1994, p.9)
2. Experiência Profissional anos 80: o Projeto MEREC e o PDM da Guarda
Saídos da experiência SAAL, em finais dos anos 70, Maria José e Sérgio Gamelas chegam à Guarda numa altura em que as oportunidades de trabalho como arquiteto eram escassas e as autarquias se encontravam carentes de meios técnicos. Em 1979, Sérgio Gamelas integra o Gabinete de Apoio Técnico da Guarda (GAT) e, em agosto do ano seguinte, Abrunhosa de Castro ingressa no município da Guarda como arquiteta. 9 A decisão camarária da sua contratação tem lugar a 30 de abril de 1980. Estando em condições de igualdade com outros candidatos, pesou na sua escolha a fixação de residência do casal na cidade e a competência de ambos (CMG, 1980). Na Câmara Municipal da Guarda, Abrunhosa de Castro desempenhou diferentes atividades. Foi responsável pela emissão de pareceres de construção, pela elaboração de vários projetos no centro histórico, projetos de equipamentos e de arranjos, e estudos urbanísticos em toda a cidade.
Nos anos 80, o município da Guarda, carente de meios técnicos, atuava com instrumentos de planeamento urbano legalmente ineficazes, e procurava controlar o crescimento urbano, a distribuição e normalização da oferta habitacional. Vivia-se uma situação idêntica a muitas cidades portuguesas. Em meados dos anos 70, após a queda do regime corporativo e com o fim do projeto colonial, Portugal desenvolvia o seu presente democrático em clima de instabilidade económica, social e política.10 Sedimentava-se o poder local democrático, cuja representatividade fora conseguida pelo reforço da participação pública das populações, agindo na defesa dos seus interesses e na negociação com o poder central. O desenvolvimento económico e infraestrutural foi conseguido pela disponibilização de mecanismos financeiros e legais que, institucionalmente, permitiram às cidades realizar obras de fomento.11 Estas transformações céleres tiveram o seu impacto nos municípios que, face à demissão do estado de uma política intervencionista sobre o mercado habitacional, ficaram na linha da frente da oferta e distribuição de habitação.12 Desde os anos 70 do séc. XX, a cidade da Guarda assistia a um agravamento das condições habitacionais e, desde a década de 60, ao crescimento contínuo e exacerbado da população, com a chegada dos ex-combatentes, expatriados das colónias portuguesas e ex-emigrantes. Na década seguinte, ao contrário ao êxodo rural, que contribuía para o decréscimo populacional no concelho, a cidade continuou a assistir a um acréscimo populacional, coincidente com o registo acentuado da construção de edifícios por freguesia, com inequívoca incidência nas freguesias urbanas que compunham a cidade da Guarda.13
Entre 1983 e 1986, Abrunhosa de Castro teve um papel central na implementação de um projeto-piloto na cidade. Este projeto resultou de uma articulação com a Comissão de Coordenação Regional do Centro (CCR-C), o apoio financeiro da Agência Americana para o Desenvolvimento (USAID/AID), o apoio técnico da Tennessee Valley Authority (TVA), a administração central, as universidades portuguesas e consultores privados. O projeto Managing Energy and Resource and Efficient Cities (MEREC) foi consequência dos acordos internacionais com os EUA, desenvolvidos em Portugal após o 25 de abril. Como programa de assistência técnica e financeira destinado a cidades médias, assentava num processo de planeamento abrangente dedicado à gestão eficiente de recursos locais. Dirigido a países em vias de desenvolvimento, tinha como objetivo dar resposta às crescentes exigências urbanas face à escassez energética e de recursos naturais. Na essência, constituía um projeto de engenharia social, decorrente dos efeitos da crise petrolífera do final dos anos 70 e da conjuntura económico-social e política portuguesa, saída da revolução (Ramos, Couceiro & Brito, 2016). Neste projeto, Abrunhosa de Castro foi Assistente de Coordenação, responsável pelo setor de planeamento municipal e corresponsável, com o marido, pela área da construção civil.
A equipa do projeto submeteu-se a um processo de planeamento baseado numa estratégia cruzada entre setores e recursos, à qual se seguiu um plano de ação, incluindo preocupações com gestão urbana e eficiência energética. Abrunhosa de Castro, na sua função de coordenadora, exerceu um trabalho amplo que se centrou sobretudo no desenvolvimento do Plano Diretor Municipal (PDM), mas não só. À semelhança dos panfletos e cartazes realizados durante a sua formação, desenhou pósteres e desdobráveis para campanhas de sensibilização sobre os critérios construtivos a observar na construção e renovação de edifícios, na defesa do património, na importância do planeamento urbano e na aferição das capacidades construtivas dos terrenos. Ainda se junta a este trabalho um conjunto de artigos publicados nos boletins municipais. Nestes, Abrunhosa de Castro (1986, pp.8-9) elucida o munícipe sobre os resultados do MEREC e, posteriormente, sobre a importância do PDM (1987, pp.4-5) (ver figuras 5, 6 e 8).
Os estudos que conduziram ao PDM, bem como a metodologia de interligação e diálogo entre departamentos municipais preconizada pelo MEREC, resultaram, segundo a própria, na tomada de decisões conjuntas e foram determinantes para o controlo do planeamento e uso do solo na cidade. A esse trabalho, realizado no meio da pressão construtiva reativa ao crescimento da cidade, acrescentava-se “o desenvolvimento da prática do desenho urbano permanente, acompanhando os pedidos de viabilidade de loteamento, de modo a cozer espaços, ligar arruamentos e definir equipamentos” (Abrunhosa de Castro, 1988, p.46). A par com as ações de sensibilização desenvolvidas para promotores imobiliários e outros investidores, disponibilizou-se informação sobre as capacidades de uso do solo, atingiu-se maior clareza nas regras de uso dos terrenos e menor fricção entre município e munícipes. Tal tornou possível a gestão da pressão construtiva fora do perímetro urbano, o que contribuiu para promover a qualidade do desenho de novos loteamentos e garantido a existência de espaço público (figura 7). Neste trabalho, inclui-se o Mini-manual dos loteamentos urbano (figura 8) concebido por Abrunhosa de Castro. Era um documento destinado a promotores e munícipes que elucida e reunia as normativas legais e procedimentos em vigor a adotar no licenciamento de loteamentos, ilustrado com perfis dimensionais de arruamentos, densidades construtivas, afastamentos mínimos, entre outras regras.
Dos estudos realizados no âmbito do MEREC, o PDM da Guarda foi estruturado em quatro premissas que tinham como propósito colmatar a dispersão urbana e o impacto infraestrutural da mesma. Esses princípios procuraram concentrar o núcleo urbano, orientar o crescimento da cidade a Sul-Nascente, maximizando as infraestruturas existentes, proteger recursos e, por fim, garantir a melhoria do desenho urbano, na salvaguarda pela qualidade das zonas mais antigas da cidade (Abrunhosa de Castro, 1989; CMG,1985). Os atrasos políticos, decorrentes da administração central, levaram a que o PDM da Guarda fosse aprovado apenas em 1994, já na premência da absorção de fundos comunitários.14 No longo percurso que teve até à sua ratificação, o PDM da cidade tornou-se num instrumento para gestão urbana corrente, para responder à pressão urbana, avaliar a viabilidade construtiva, definir regras e gerir infraestruturas, ao invés de uma ferramenta estratégica. Assim, após a conclusão do MEREC em 1986, Abrunhosa de Castro prosseguiu os trabalhos do PDM, com a colaboração do arquiteto Manuel Fernandes Sá e do engenheiro António Babo, também consultores do projeto.
A arquiteta dá continuidade ao seu trabalho como profissional liberal, após solicitar a exoneração do seu cargo no município, no final da década de 80. Nos dez anos de trabalho na Câmara Municipal da Guarda, foi também responsável pelo Regulamento da Construção da Zona do Centro Histórico da Guarda e pela Monitorização do Perímetro Urbano da Cidade (Abrunhosa de Castro, 1988).15 Desde o início da sua carreira profissional, foi frequentemente convidada a participar na redação de revistas, como a Sociedade e Território: revista de estudos urbanos e regionais, em seminários, congressos e conferências de planeamento e ordenamento do território, património, entre outros, relacionados com o exercício da profissão de arquiteto, e em instituições de ensino secundário e superior. A sua intervenção pública estendeu-se também a vários meios de comunicação, como foi o caso da televisão, onde, há 35 anos atrás, o palco público dos profissionais de arquitetura era ainda muito desigual no que se refere ao género. Em uma das suas intervenções televisivas, Abrunhosa de Castro enuncia as condições do exercício da profissão, a dificuldade ao acesso à mesma, em especial na Beira Interior, dizendo: “O arquiteto é um bicho raro no interior e pouco entendido”. Evidenciava, assim, a sua compreensão ímpar sobre o momento de intensidade construtiva que o país atravessava e as fragilidades e consequências da burocracia própria do licenciamento de construções (Abrunhosa de Castro, 1986). Defendeu também o papel do estado na sua função completiva, um exercício que considera necessário, em particular na Beira Interior, onde o êxodo rural e a emigração redundam numa falta de quadros. Deu como exemplo o trabalho desenvolvido pelos serviços técnicos do município da Guarda no apoio ao cidadão, garantido a qualidade das intervenções no património edificado (Abrunhosa de Castro, 1988).
3. Crónica de Opinião (1992-1999)
Durante a década de 90, a partir da Guarda, Abrunhosa de Castro dedica-se ao desenvolvimento de planos diretores municipais, planos de pormenor e planos de urbanização, em especial na Beira Interior. Vila Nova de Foz Côa, Manteigas, Pinhel, Sabugal, Almeida, Moimenta da Beira, São João da Pesqueira são alguns dos concelhos com os quais colaborou. Participou nas atividades do NARBI, o Núcleo de Arquitetos da Região da Beira Interior, da Associação de Arquitetos Portugueses, entre 1989 e 1995 e, como Presidente do Secretariado, integrou o Conselho de Delegados desta Associação, no mandato de 1996 a 1998. A par com a sua atividade profissional e associativa, continuou a sua intervenção pública, de forma sistemática, publicando artigos em jornais regionais, como o semanário Terras da Beira, a partir de 1992 e, no ano seguinte, no diário Público, edição Norte.
Foi num ambiente editorial isento, ativo, crítico, profissional e com preocupações de cidadania que Abrunhosa de Castro iniciou as suas crónicas no Terras da Beira (Rodrigues, 2017). As suas primeiras intervenções neste semanário, que acompanharam os cartoons do arquiteto e cronista António Ferreira dos Santos (1948-2016). «Cuidado Com Elas!», «Onde está o Centro Histórico?», «Porque não vêm os turistas?» e «Errar é humano…», - expunham a ferocidade do crescimento urbano português (Abrunhosa de Castro & Santos, 1993a, b, c, d). Neles é evidente a sátira acerca do modo como o crescimento das cidades portuguesas se concretizava. Abrunhosa de Castro, apoiada pelos desenhos humorísticos de António Ferreira dos Santos, manifesta algumas das singularidades da Guarda e da Beira Interior. Explica como a criação não justificada de uma rede viária periférica à cidade era feita sem razões passíveis da necessária articulação urbana/suburbana e como, ao invés de uma intervenção legitimadora do papel dos centros históricos, era preferida a demolição e construção em altura. Estava patente a defesa dos centros históricos como elementos proporcionadores de qualidade ambiental, e a sua conceção de desenvolvimento, entendido como um processo concomitante, no qual se garantem condições de qualidade arquitetónica e urbana, de diálogo com os tecidos históricos da cidade, assegurando a imprescindível diversidade das formas sociais e económicas (figura 9).
O trabalho realizado e o conhecimento adquirido na autarquia da Guarda, a partir do PDM, foram fundamentais para que, ao longo da década de 90, Abrunhosa de Castro proceda ao seu esclarecimento, nos seus artigos, apontando a relevância deste documento para a sociedade. Em «Planos para que vos quero! (reflexões sobre o futuro dos PDM)» (figura 10), artigo publicado no rescaldo dos primeiros planos ratificados em Portugal, Abrunhosa de Castro destaca o que os planos representam para as autarquias e para uma sociedade ainda pouco familiarizada com eles e com a normativa urbana legal que os mesmos vêm impor. Refere que os planos são elaborados “para defender o interesse público, nomeadamente os interesses difusos (ambiente, património, paisagem, qualidade de vida) e a igualdade dos cidadãos perante as regras de transformação e uso do solo” (Abrunhosa de Castro, 1993). Ao discorrer sobre a importância do planeamento como instrumento legal de igualdade territorial, que não deve ser sujeito a interesses minoritários, reflete também sobre as ameaças a esta ideia. Ao considerar os planos como ferramentas para a democracia no uso do espaço, Abrunhosa de Castro alerta para a sua partidarização, alheada da discussão política das ideias que os sustentam. Para ela, o dissenso político-democrático é obrigatório, o único capaz de garantir a equidade no uso do solo, e é pelo debate sobre a coisa urbana que se atinge uma opinião pública informada, contestatária das decisões políticas tomadas.
A cidade como o lugar da democracia e da contestação das ações do poder por parte de uma sociedade informada, crítica e interventiva são ideias que Abrunhosa de Castro perseguiu e defendeu ao longo da sua produção escrita. Em 1998, em sete artigos intitulados «Planos Municipais e Cultura Democrática», anotava as mudanças operadas na gestão dos planos, explicando o trabalho desenvolvido na Guarda e os seus resultados. No primeiro artigo reflete sobre os progressos que o processo de planeamento trouxe, permitindo ultrapassar idiossincrasias relativamente à aprovação de construções carentes de sustentação técnico-legal. Obras sujeitas à autoridade do poder técnico e/ou político autárquico e à capacidade influenciadora do poder privado no processo decisório (Abrunhosa de Castro, 1998b). Um processo que veio a ser alterado, primeiro com a capacitação técnica das autarquias e, em segundo, pela mudança legal proporcionada pelos planos de ordenamento do território, instituídos em 1982.16 Assim, os estudos realizados para o PDM da Guarda vieram manifestar as já conhecidas suscetibilidades dos processos de atribuição de licenças de construção, validando uma realidade física, cujas consequências futuras se previam nefastas:
“A continuar a aprovar loteamentos e construções ao acaso das pretensões particulares, a Guarda corria o risco de se tornar ingovernável: não havia orçamento camarário nem fundos europeus capazes de dotar de infra-estruturas e equipamentos mínimos uma tão vasta área, nem possibilidade de dotar a cidade de um módico de qualidade de vida, de identidade urbana, de coesão de imagem. (…). Era o desperdício e a irracionalidade «in acto».” (Abrunhosa de Castro, 1998d)
Abrunhosa de Castro mostra-se ciente das suas experiências profissionais, denotando na sua escrita a responsabilidade que assumia como arquiteta e as dúvidas no seu percurso. Ela expôs ao leitor os processos de aprendizagem e os desafios a que esteve sujeita, numa pedagogia desmistificadora e clarificadora sobre dificuldades de execução de um instrumento de planeamento, explicando a importância da classificação dos terrenos e dos critérios construtivos. A interpretação inequívoca destes elementos deveria clarificar o cidadão e o político. Em entrevistas realizadas aos ex-autarcas da Guarda, pelo Partido Socialista: Abílio Curto e Maria do Carmo Borges - ambos salientaram a faceta pedagógica e combativa de Maria José que, no seio da autarquia, originava conflitos acesos acerca do modo como era conduzido o crescimento da cidade (Curto, 2016; Borges, 2017).
Abrunhosa de Castro era profundamente consciente da convergência de interesses na gestão urbana e dos problemas que tais proveitos acarretavam para a qualidade do espaço urbano. A crítica à especulação imobiliária não esquecia a crítica à estrutura autárquica, pois é a instituição representativa da democracia na cidade e a mais próxima dos cidadãos. Ao poder autárquico fez poucas concessões, sem deixar, no entanto, de reconhecer os seus méritos. Mas também se deu conta do seu esvaziamento político. Nesse julgamento incluem-se os desafios e limitações da profissão de arquiteto na administração local. Opôs-se à sujeição do autarca a determinados grupos e redes de interesses, sob pretextos de progresso e desenvolvimento, explicando como a administração técnica local deve assumir um papel persuasor em defesa do “interesse do público contra os interesses do público” (Abrunhosa de Castro, 1992). Diga-se da valorização do património e do ambiente da cidade, da coordenação do seu crescimento sustentado e da legalidade urbanística. Contudo, o papel persuasor do técnico, particularmente do arquiteto municipal, enfrentava complicações decorrentes de uma estrutura administrativa que classificava como desinteressada na qualificação dos seus peritos. Incapaz de ultrapassar uma organização pouco responsabilizada e centralizadora. Situação que tornou problemática a criação de equipas técnicas capacitadas para perseguirem os interesses coletivos da cidade em matéria de desenvolvimento (Ibid.).
Deste modo, quando as mudanças demográficas, sociais, económicas e físicas verificadas na cidade da Guarda construíram e validaram uma sociedade claramente urbana, subsistia a incapacidade do poder político de avaliar a conjuntura, devido a uma ausência de reflexão política sobre o papel da cidade:
“Na demografia urbana tem hoje um peso crescente uma população trazida pela emergência de emprego no terciário superior, uma população geralmente instruída, de pessoas que se fizeram a si próprias. O que estas pessoas esperam do poder não é proteção, é liberdade. (…) É que o futuro deste concelho vai depender de saber se a cidade vai estagnar lentamente arrastada pelo declínio das suas aldeias, ou se é a cidade que se vai desenvolver e transformar o mundo rural em outra coisa qualquer - sustentada, viva, mas necessariamente (muito) diferente, libertando as suas gentes do servilismo e subdesenvolvimento.” (Abrunhosa de Castro, 1997)
Sobre a Guarda, sublinhou como a mudança física e sociodemográfica foi acompanhada pelo alargamento do horizonte da experiência social da cidade. Em «O interior, a regionalização e as auto-estradas» (1996), Abrunhosa de Castro manifestou-se contra o debate sobre a regionalização que, na altura, dominou o espaço mediático e político nacional. No entanto, o que antecedeu esta posição foi a constatação sobre o modo como o investimento em acessibilidades, nomeadamente as autoestradas, ajudou a criar pontes na circulação do interior com o litoral, transformando a sociedade urbana da Guarda, abrindo perspetivas. Os investimentos públicos, em matéria infraestrutural, permitiram o crescimento de um mercado de trabalho especializado no interior. A abertura da cidade ao ensino superior também trouxe consigo uma população estudantil de necessidades plurais e diversificadas. Segundo Abrunhosa de Castro (1966), transpôs-se o servilismo social existente e a cidade abriu-se à anonimidade do cidadão comum e a um conceito de vida moderno e mais cosmopolita. As novas dinâmicas da vida urbana possibilitaram a realização de experiências e dinâmicas de convívio diferentes. Na modificação das vivências sociais e urbanas residiu também a transformação proporcionada pela arquitetura em intervenções compreendidas na reabilitação do espaço público, de edifícios históricos e em programas públicos, como equipamentos e habitação.
Abrunhosa de Castro tem também uma posição muito própria sobre a atividade do arquiteto, que estava arreigada naquilo que ele era capaz de proporcionar pelo estudo do espaço através do desenho. Desenho usado na melhoria da qualidade do espaço urbano e na defesa da cultura, dos valores históricos e ambientais da cidade. No ano de 1998, em «Brincadeiras Arquitectónicas», discute como as mais recentes intervenções no centro histórico da Guarda estão a ser conduzidas, em contrariedade com o disposto no Regulamento do Centro Histórico, pelo que reivindica uma atuação conscienciosa sobre o espaço:
“Na verdade os arquitectos capazes de se encarregarem da tarefa são a excepção e não a regra. Existe hoje uma nefasta cultura de arrogância arquitectónica, cada vez mais, atinge os estudantes de arquitectura que finalizam os respectivos cursos. Quando muitos dos mais conceituados professores já o compreenderam, paradoxalmente as vagas de recém licenciados distinguem-se por uma aterradora displicência e sobranceira na intervenção em edifícios antigos, pretendendo ‘marcar a sua criatividade sem medos’, eufemismo que na realidade significa ‘impor o seu ego contra tudo e contra todos’. O que leva a intervenções abusivas sobre os edifícios históricos, na ânsia de imprimirem a sua ‘marca pessoal’, a sua ‘ruptura’, manifestação tantas vezes da sua falta de modéstia e compreensão dos valores culturais em causa.” (Abrunhosa de Castro, 1998a)
Para Abrunhosa de Castro, a linguagem arquitetónica devia ser conjuntiva, de finalidade comum, materializada na cidade pelo processo de reunião, de saber acerca das suas circunstâncias históricas e contingências, realizada “com humildade, com respeito e com rigor. [Pois] De que outro modo se poderá legar a cultura do passado às gerações vindouras?” (Ibid.).
A sua posição perante a intervenção arquitetónica encontra-se patente no projeto de recuperação do Paço Episcopal, obra inaugurada em 1999 (figura 11). Realizado em coautoria com o marido e Arquiteto Sérgio Gamelas, o projeto era descrito como “Um projecto fora de moda”. O comentário e a explicação das soluções preconizadas redundavam de uma crítica ao modo como as intervenções no património arquitetónico eram realizadas, “«sem medos», fazer intervenções arrojadas, ou «a colar o século XX». É frequentemente uma excessiva afirmação da personalidade do autor, uma falta de contenção e de humildade, e uma falta de consideração e de respeito pela memória das pessoas” (Abrunhosa de Castro, 1999). Esta postura, identificada como uma consequência herdada do movimento moderno e da sua posição “de ruptura com o passado no plano estético e social”, um corte que resultou na complexidade e contradição que Robert Venturi havia identificado ao chamar “a atenção para o facto de que os flamingos e os anõezinhos de plástico com que os americanos decoravam os seus jardins estavam na razão directa da excessiva aridez da arquitectura que lhes forneciam os arquitectos, com os paradigmas de depuração, minimalismo e abstracção” (Ibid.). A intervenção no Paço Episcopal resultou de um estudo apurado do existente e do que a história, na sua fraca aceção documental, mostrou, bem como do processo de seleção das diferentes sedimentações formais, com o objetivo de “que as pessoas da Guarda se identificassem com a obra quando concluída, que nada de estranho se lhes deparasse salvo o reconhecimento de que tudo o que estava degradado se tinha restaurado. O que nos levou a optar sempre, dentro do labirinto de opções que se iam colocando no desenrolar da obra e à medida que vestígios de várias épocas iam surgindo, pela solução mais recente, aquela que as pessoas conheciam, mesmo que violando a «pureza inicial do edifício», retirando aquilo que constituía um «artificialismo desfigurante»” (Ibid.).
Consciente dos significados coletivos que o Paço Episcopal, e também a Praça Velha, têm para a cidade e para os seus habitantes, Abrunhosa de Castro alertou para a condição pública do trabalho do arquiteto. Não hesitou em citar Karl Popper, em discussão com Herbert Marcuse nos anos 60, a propósito das funções da crítica, em reação aos comentários feitos à sua opinião sobre o projeto municipal de reabilitação da Praça Velha, apresentado em 1996. Para esse projeto defendeu uma proposta sujeita a discussão pública, fundamentada num concurso aberto a arquitetos consagrados a nível nacional e internacional (Abrunhosa de Castro et al, 1996b). Ela vem defender a crítica como condição de indispensável para a liberdade de expressão e para o dissenso democrático, essenciais para chegar a uma solução arquitetónica capaz de defender a Praça como espaço central da história coletiva:
“Aquilo que é importante é exercer o direito de crítica sobre as ideias, as hipóteses, as politicas, os resultados de uma acção não sobre as pessoas. (…); Saber distinguir entre o compromisso possível e o que está fora de questão faz parte dessa aprendizagem [do arquiteto]. E aceitar projectos profissionalmente complicados sem assegurar as necessárias condições de investigação, de execução e de debate com outros profissionais, é uma ingenuidade que se pode pagar caro.” (Abrunhosa de Castro, 1996b)
Notas finais: arquitetura, planeamento, política, cidade e controvérsia democrática
Ao longo de praticamente uma década, Abrunhosa de Castro expôs as particularidades das transformações urbanas da cidade da Guarda, mas não só. Descreveu também as dificuldades inerentes à construção da cidade, ao exercício político local e à prática arquitetónica. O seu pensamento crítico participou de forma empenhada na vida urbana. Foi uma instigadora permanente de valores e critérios de qualidade, procurando integrar ideias e dinamismo na cultura social e política dominante. Foram as ferramentas herdadas da sua formação académica e política que a tornaram capaz na discussão sobre a sociedade e os seus caminhos, sempre consciente dos efeitos do liberalismo económico no espaço da cidade, nomeadamente na urbanização, os quais se intensificaram na recente democracia portuguesa. Não só se verifica um discurso conhecedor das transformações urbanas empreendidas na cidade da Guarda, mas também dos impactos dos investimentos da administração central, na mobilidade e na transformação da experiência social da Beira Interior. Os seus argumentos e o exercício arquitetónico preconizado, como foi o caso particular do Paço Episcopal, nunca se fundamentaram num conhecimento desenvolvimentista ou absolutista. Conclui-se que seria a primeira a negar-se determinantemente a isso. A sua posição é a da defesa dos valores culturais comuns da cidade, naquilo a que se refere à sua materialidade-histórica, à valorização de diversos modos de vida e sociabilização, apenas conseguidos pela cidade enquanto espaço do coletivo, à exigência do desempenho das suas instituições. Reflexo disso é o investimento dado no esclarecimento do cidadão, à sua sensibilização na defesa do património, do ordenamento, da qualidade do desenho urbano. Para ela, a cidade é o espaço da democracia e não só as suas instituições a deviam promover. A sociedade deveria ter um papel ativo na sua construção e debate, devendo as entidades administrativas cooperar nesse sentido. Neste sentido, foi uma defensora do exercício democrático concretizado pela indispensável cidadania informada, participativa e politizada na coisa urbana. Uma cidadania que estará em condições de discutir ideias e caminhos futuros para a construção da cidade. Que atua na defesa da construção da cidade pela controvérsia democrática, contribuindo ativamente para a ampliação do conhecimento de uma sociedade civil, cuja fragilidade é “caldo de cultura para todos os abusos de poder, tráfico de influências, e manipulação das regras do jogo num Estado de Direito” (Abrunhosa de Castro, 1995).