1. Introdução
As desigualdades, nas suas mais diversas dimensões, tendem a aumentar tanto em Portugal, como na Europa e no mundo em geral, materializando-se de forma particularmente evidente nas cidades, que hoje concentram a maioria da população mundial (ver e.g. Costa, 2012; Lindenberg, 2019; EAPN, 2021; UN, 2020). Palco de um intenso processo de urbanização, a Área Metropolitana de Lisboa (AML) reflete, em contexto nacional, um modelo de desenvolvimento urbano desigual na distribuição de recursos, no acesso a bens e serviços públicos, bem como na efetivação de direitos essenciais, como a habitação e um habitat condigno (Guinote, 2019; Seixas & Antunes, 2019). O Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional (IHRU, 2018) sinalizava em 2018 cerca de 26.000 famílias a viver em situação de grave carência habitacional em todo o país, mais de metade na AML. As estratégias locais de habitação entretanto elaboradas - instrumentos de planeamento de iniciativa municipal que visam conhecer as necessidades habitacionais existentes e projetar, planear e monitorizar a intervenção pública - ampliam o olhar sobre o problema, dando conta de uma realidade para lá destes números (IHRU, 2020; Jorge, 2022a, 2022b).
Vários autores (e.g. Santos, Teles & Serra, 2014; Mendes, Carmo & Malheiros, 2019; Ribeiro & Santos, 2019; Santos, 2019; Tulumello, 2019; Mendes, 2020) mostram como uma combinação de circunstâncias e acontecimentos locais e globais, associados a processos de turistificação, mercantilização e financeirização, fizeram disparar nos últimos anos o preço da habitação nas áreas metropolitanas. A crescente valorização imobiliária a que estão sujeitas, e que nem a pandemia foi capaz de inverter, reflete-se nos centros de Lisboa e Porto - onde o investimento tem sido dirigido sobretudo para o setor do turismo (comércio, restauração, alojamento de curta duração) e para população com elevado poder de compra -, mas rapidamente se estende aos municípios vizinhos, como a Amadora, adjacente a Lisboa.
Os dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) confirmam esse efeito dispersor sobre o preço da habitação. No primeiro trimestre de 2019, entre os 18 municípios da AML, a Amadora apresentava ao nível do mercado de compra e venda o maior crescimento face ao período homólogo: mais 21,8% (INE, 2021). No segundo trimestre de 2020, já em plena pandemia, apesar da desaceleração geral do ritmo de crescimento dos preços da habitação, voltava a registar um forte crescimento - mais 14,2% -, que se mantém nos dois dígitos um ano depois - mais 11,4% (Idem). No mercado de arrendamento, o valor dos novos contratos celebrados neste município registou um aumento de 36% entre o segundo semestre de 2017 e o segundo semestre de 2020 (INE, 2020a, 2020b). Em relação à transação fundiária, embora não seja possível calcular a média dos valores praticados, terão certamente acompanhado esta curva ascendente.
Face à escalada de preços, é cada vez maior a fatia da população com dificuldades em aceder a uma habitação, assistindo-se a diferentes tipos de resposta e margens de manobra: quem reúne condições de endividamento contrai um empréstimo bancário para compra de uma habitação; quem não as reúne ou não opta por essa via fica refém de um mercado de arrendamento cada vez mais restrito e inacessível (Travasso, Oro, Almeida & Ribeiro, 2020) ou recorre a outras estratégias, como a ocupação de fogos devolutos ou de terrenos públicos e privados onde constrói, sem licença camarária, a sua casa (ver e.g. Lages & Jorge, 2020; Saaristo, 2022). A habitação pública, que representa apenas 2% do parque nacional (INE, 2016), é insuficiente para responder a todas as situações de carência e vulnerabilidade habitacional existentes.
Neste sentido, como podem as operações urbanísticas associadas à atual dinâmica de mercado contribuir para o aumento do parque habitacional público? Esta é a questão que levantamos, a partir da articulação entre políticas de habitação e política de solos e da leitura das respostas públicas traçadas para suprir a carência e precariedade habitacional. Com base num trabalho de campo apoiado em levantamentos e reconhecimento local, bem como nos diplomas e trabalhos prévios dirigidos ao contexto em enfoque, analisa-se o quadro legislativo e financeiro que pauta os últimos anos e as respostas que dele emanam. Dá-se particular ênfase à operacionalização e ao impacto do Programa Especial de Realojamento (Decreto-Lei n.º 163/93, de 05 de julho), lançado em 1993, e aos primeiros passos do seu sucessor, o 1.º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação (Decreto-Lei n.º 37/2018, de 04 de junho), publicado em 2018 e dirigido às situações de maior precariedade e vulnerabilidade habitacional.
Tendo em conta os diplomas e instrumentos lançados, elencados e aprofundados no ponto seguinte, identificamos o seu potencial transformador, nomeadamente em que medida as políticas de habitação se articulam, ou podem vir a articular, com a política de solos, a partir do caso do município da Amadora e de um território específico: o outrora designado Bairro de Santa Filomena, classificado como núcleo precário e objeto de um processo de demolição e realojamento, cujo terreno se encontra atualmente livre para a implementação de uma grande operação urbanística em fase de estudo, dirigida ao mercado livre. Este processo permite-nos ilustrar e refletir sobre as potencialidades do planeamento e gestão urbana na provisão de habitação pública, com vista a uma intervenção pública mais robusta, equitativa e prolongada no tempo.
2. Políticas de Habitação e Política de Solos: uma oportunidade em aberto
Depois de um longo período à margem da agenda política e mediática, o tema da habitação regressou em força nos últimos anos. As profundas alterações financeiras, económicas e sociais a que se assistiu (ver Santos, 2019), destituídas de uma visão estratégica capaz de suster o distanciamento progressivo entre o quadro normativo e as políticas públicas no domínio da habitação, justificaram a aprovação em 2015 de uma Estratégia Nacional para a Habitação (Resolução do Conselho de Ministros n.º 48/2015, de 15 de julho). Considerava-se, em termos técnicos, o défice habitacional ultrapassado, na sequência da implementação do Programa Especial de Realojamento (PER), criado com o intuito de “erradicar as barracas” existentes nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto (ver e.g. Cachado, 2013). Contudo, apontava-se para a persistência de problemas relacionados “com a degradação do parque habitacional dos centros urbanos antigos, com as necessidades de mobilidade das famílias e com os custos da habitação, em especial no arrendamento” (ponto I. do Anexo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 48/2015, de 15 de julho).
Com efeito, o período de austeridade determinado pelo Memorando da Troika de 2011, a par do pacote legislativo lançado sob a égide da reabilitação urbana (ver e.g. Mendes, 2020), tiveram um impacto perverso no acesso à habitação. Medidas como a introdução de Vistos Gold (Lei nº 63/2015, de 30 de junho) e do Regime Fiscal Especial para Residentes Não Habituais, mas também as alterações introduzidas em 2012 ao Novo Regime do Arrendamento Urbano (Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto), a publicação da Lei do Alojamento Local (Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto), em 2014, e a adoção de um Regime de Isenções Fiscais aos Fundos de Investimento Imobiliário, lançado no ano seguinte, direcionaram os recursos públicos para a promoção do investimento especulativo, por oposição ao investimento na criação de habitação a custos controlados e sem fins lucrativos. Como destacam Alves e Rosa (2017), mesmo as operações urbanísticas assentes na criação de parcerias público-privadas e na afetação de dinheiro público na expropriação de terrenos e edifícios e/ou na demolição e construção de infraestruturas reiteraram esta tendência. Por sua vez, as taxas urbanísticas cobradas pelos municípios aos privados revelaram-se muitas vezes insuficientes para cobrir o investimento necessário na provisão de infraestruturas, inviabilizando igualmente a implementação de programas locais que atenuassem a distopia do mercado habitacional (Guinote, 2019).
A Lei de Bases Gerais da Política de Solos, de Ordenamento do Território e do Urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de maio), publicada em 2014, acabaria por não contribuir para a inversão deste cenário. Segundo Guinote (2019, pp. 224-225), a relação entre o direito de propriedade, o direito de edificar e o direito de urbanizar manter-se-ia imprecisa e, dessa forma, favorável à desregulação do mercado, tal como ficaria por assegurar uma repartição transparente, eficiente e justa dos custos de urbanização e das mais-valias decorrentes dos processos de infraestruturação, urbanização e edificação. Apesar da Lei propor uma articulação entre o ordenamento do território e os instrumentos fiscais aplicados ao nível do imobiliário, apontando para a afetação social das mais-valias geradas pela aprovação dos planos territoriais de âmbito municipal ou intermunicipal (alínea a, artigo 66.º), há ausências importantes a registar. Ao nível da redistribuição de benefícios e encargos (artigo 65.º), não é feita qualquer referência à garantia de acesso à habitação aos grupos de menores recursos, tal como não constam nos fins a que se destina os objetivos da política de habitação (artigo 2.º). Simultaneamente, a Lei também não especifica a percentagem das mais-valias a afetar à dimensão social a que se refere, dando espaço a interpretações várias (ver e.g. CNADS, 2013; Jorge & Oliveira, 2014).
O aumento das desigualdades sócio-espaciais desencadeado pelos processos de gentrificação e especulação imobiliária subjacentes a estas omissões e opções políticas, contestadas por um número crescente de associações e organizações da sociedade civil (Falanga et al., 2019), conduziu, em 2017, à criação da Secretaria de Estado da Habitação - hoje integrada no Ministério das Infraestruturas e Habitação - e à publicação, em 2018, da Nova Geração de Políticas de Habitação (Resolução do Conselho de Ministros nº50-A/2018, de 2 de maio). Um novo leque de programas públicos assume a missão de, por um lado, garantir o acesso universal a uma habitação adequada, através do alargamento do âmbito dos beneficiários e da dimensão do parque habitacional com apoio público; por outro, de criar as condições para que a reabilitação passe de exceção a regra, tanto ao nível do edificado, como das áreas urbanas (Preâmbulo).
Entre os programas lançados, destaca-se o 1.º Direito, que visa precisamente apoiar a promoção de soluções habitacionais a pessoas em condições consideradas indignas e sem capacidade financeira para suportar o custo do acesso a uma habitação adequada. Ao contrário da Estratégia Nacional para a Habitação de 2015, reconhece-se a persistência de situações de grave carência e precariedade habitacional, parte delas sinalizadas nas estratégias locais de habitação, de iniciativa municipal e sujeitas à aprovação do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU). Condição para aceder a financiamento ao abrigo do 1.º Direito, as estratégias locais de habitação acabam muitas vezes por se cingir ao universo de situações abrangidas por este diploma, não assumindo uma leitura transversal e multissetorial, quer do território, quer da problemática habitacional, o que dificulta a articulação com outras políticas públicas (Jorge, 2022a). Embora esta articulação esteja subjacente à abordagem integrada preconizada na Nova Geração de Políticas de Habitação, sublinhando-se a necessária cooperação entre políticas e organismos setoriais, entre as administrações central, regional e local e entre os setores público, privado e cooperativo, não há uma referência específica à Política de Solos, de Ordenamento do Território e do Urbanismo.
Apenas em 2019, com a publicação da Lei de Bases da Habitação (Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro) se destaca esta dimensão, dedicando-se um capítulo específico à política de solos e ordenamento do território (Capítulo IV). Considera-se que “[a] garantia do direito à habitação pressupõe a definição pública das regras de ocupação, uso e transformação dos solos” e que, neste sentido, há que disponibilizar e reservar solos de propriedade pública de forma a assegurar: “[a] regulação do mercado habitacional, promovendo o aumento da oferta e prevenindo a especulação fundiária e imobiliária”; “[a] intervenção pública nos domínios da habitação e reabilitação urbana a fim de fazer face às carências habitacionais e às necessidades de valorização do habitat”; e “[a] localização de infraestruturas, equipamentos e espaços verdes ou outros espaços de utilização coletiva que promovam o bem-estar e a qualidade de vida das populações” (n.º 1 e 3, artigo 34.º). Nas operações de loteamento e urbanísticas de impacto considerado relevante, as cedências gratuitas para o domínio privado municipal e as mais valias decorrentes de alterações de uso do solo podem ser afetas a programas públicos de habitação, incluindo de realojamento (n.º 5-6, artigo 34.º). Esta visão reflete-se, à escala local, na figura da Carta Municipal de Habitação (artigo 22.º), trazida pela Lei de Bases da Habitação, que, para além do diagnóstico das carências habitacionais existentes, prevê especificamente a identificação dos recursos e potencialidades locais - solo urbanizado expectante, urbanizações ou edifícios e fogos devolutos, degradados ou abandonados -, o planeamento e ordenamento prospetivo das carências decorrentes de novas atividades económicas e a definição estratégica dos objetivos, prioridades e metas a alcançar no seu prazo de vigência.
3. Amadora: um problema a resolver
A articulação entre as políticas de habitação e a política de solos e as respostas públicas encontradas para suprir a carência e precariedade habitacional são exploradas a partir do caso do município da Amadora, um dos mais pequenos do país - com apenas 24 km2 -, mas simultaneamente um dos mais densamente povoados - com aproximadamente 172.000 habitantes (Censos, 2021) - e maior número de situações de carência habitacional sinalizadas - 2.839 famílias - no Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional de 2018. De facto, desde a sua criação, em 1979, que este município se depara com graves problemas de habitação, associados aos “bairros degradados” que concentra ou concentrava dentro dos seus limites administrativos, de ocupação e construção considerada não legal. Expressão dos fluxos migratórios que acompanharam o processo de industrialização a partir da década de 1960 e os conflitos armados que se seguiram à independência das ex-colónias em 1974 (Arbaci & Malheiros, 2010; Pereira, 2013), mas também de um regime de propriedade e territorial ambíguos (Taviani, 2019), estes lugares, na sua maioria racializados, estão muitas vezes associados ao imaginário do crime e da delinquência, do caos e da desordem. Esta imagem pejorativa, alimentada por processos estruturais de estigmatização, exclusão e discriminação racial e institucional (Raposo et al., 2019; Jorge & Carolino, 2019; Alves, 2021), tem servido de suporte a ações de demolição e despejo por parte da administração local, algumas sem alternativa habitacional (Carmo, 2013; Bogado, 2020).
Estas ações realizaram-se sobretudo no quadro do PER, que apresentou a erradicação das chamadas “barracas” como solução única e prioritária para a Amadora e restantes autarquias envolvidas, cabendo-lhes: efetuar um levantamento exaustivo e rigoroso das “barracas” existentes no seu concelho, identificar os proprietários dos terrenos onde estavam implantadas e programar no tempo os empreendimentos a construir (artigo 4.º). Para além disso, teriam ainda de “proceder a uma fiscalização rigorosa de ocupação do solo na respectiva área”, “demolir integralmente as barracas em simultâneo com o realojamento” e “assegurar que os terrenos presentemente ocupados por núcleos de barracas a demolir que estejam na sua propriedade ou posse e se destinem à construção de habitação ficam prioritariamente afectos à execução do programa ou à promoção de habitação de custos controlados” (artigo 5.º).
A par da publicação e execução do PER, assistiu-se na década de 1990 a um forte dinamismo ao nível do ordenamento e gestão urbana, com o lançamento da segunda geração de planos diretores. O Plano Diretor Municipal da Amadora (Resolução do Conselho de Ministros n.º 44/94, de 22 de junho), publicado em 1994 e atualmente em revisão, prevê a integração no processo urbano dos espaços classificados como urbanizáveis/urbanizáveis mistos que ainda não foram objeto de licenciamento e loteamento, determinando como obrigatória a afetação de 10% da totalidade dos fogos propostos a programas de habitação social (artigo 32.º). Este instrumento de gestão territorial, juntamente com o PER, anunciavam uma forte aposta na ampliação do parque habitacional público, através do realojamento dos agregados a residir nos denominados “bairros degradados” ou de “barracas” e da criação de uma bolsa de terrenos e fogos dirigida para esse fim. Avançaram as demolições e os processos de realojamento, contudo, nem os terrenos públicos livres de ocupação após a implementação do PER, nem os fogos propostos no Plano Diretor Municipal da Amadora, foram afetos à habitação social ou a custos controlados.
Dos 35 “bairros degradados” identificados pela Câmara Municipal da Amadora (CMA) ao abrigo do PER, quatro ainda não foram dados como extintos1 (Figura 1). Segundo informação da CMA (2020), do total de 6831 agregados sinalizados, 37% foram realojados no parque habitacional municipal, nenhum deles in loco, 21% apoiados através do PER Famílias, do Programa de Apoio ao Auto Realojamento e do Programa de Retorno2, 36% saíram, entretanto, dos respetivos bairros e os restantes 6% aguardam uma resposta habitacional. Ficaram de fora pessoas que se encontravam deslocadas por motivos profissionais ou de saúde à data do levantamento, mas também as que chegaram posteriormente ou que, entretanto, nasceram (Carmo, 2013). No âmbito do PER, a CMA construiu ao longo dos anos um total 2442 fogos (IHRU, 2018, p. 46), concentrados maioritariamente em três conjuntos habitacionais - Casal da Mira (760 fogos), Casal da Boba (700 fogos) e Casal do Silva (284 fogos) -, cada um com um gabinete técnico local, que visa uma maior descentralização dos serviços e integração social3. Com efeito, a quebra das relações de vizinhança e solidariedade que marcavam muitas vezes os lugares de origem4, mas também os processos de realojamento em si, tendencialmente impostos e fechados ao diálogo, bem como a concentração de habitação social, periférica e de fraca qualidade construtiva e urbanística, acabaram por gerar novos processos de exclusão e segregação sócio-espacial (ver e.g. Cachado, 2013; Carreiras, 2018; Alves, 2021), que carecem de outro olhar sobre o território e a problemática habitacional. Mesmo quando garantidas melhores condições de habitabilidade, o processo de realojamento conduzido pela CMA colocaria em causa, quer a política de habitação até então adotada, quer o modelo de desenvolvimento urbano subjacente, como veremos de seguida, à luz do caso de Santa Filomena.
4. Santa Filomena: um terreno livre para o mercado de habitação
O Bairro de Santa Filomena foi, à semelhança de outros na Amadora, alvo de um longo processo de demolição, resistência e realojamento. Na sua maioria de origem cabo-verdiana, quem ali se instalou em meados da década de 1970 comprou informalmente uma parcela de terreno - sem registo, nem pagamento de impostos associado - e construiu - sem licença camarária - uma habitação (Alves, 2021, p. 115). Com o passar do tempo, o Bairro expandiu e densificou e, após a entrega de um abaixo-assinado junto da CMA, acedeu à rede de água e eletricidade (Ibidem). Declaradas às finanças, parte das habitações aí erigidas passaram a pagar o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), sem, no entanto, a questão fundiária estar esclarecida ou regularizada junto das entidades competentes. Do ponto de vista predial, correspondiam a parcelas rústicas, classificadas como solo urbano/urbanizável e área reservada a equipamentos no Plano Diretor Municipal.
Em 1993, a CMA iniciou o recenseamento dos agregados ao abrigo do PER, mas apenas em 2012 avançaram em força as demolições (Figura 2). Após décadas de transações sem registo predial formal (ver Alves, 2021, p. 115), em 1999 uma parte das parcelas de terreno ocupadas foi adquirida por uma empresa imobiliária - Geralnova, Compra, Venda e Exploração de Imóveis, S.A. - e revendida em 2002 a outra empresa - Moinho de Vila Chã, Atividades Imobiliárias, Lda. -, até chegar em 2006 às mãos de um Fundo Especial de Investimento Imobiliário - Villafundo -, gerido pelo Millennium BCP - Banco Comercial Português (Villafundo, 2006). Esta cadeia de transações refletia, por um lado, a centralidade que estes terrenos às portas de Lisboa e do centro da Amadora adquiriram e, por outro, a especulação a que ficaram sujeitos, mesmo estando ocupados há décadas.
O trabalho desenvolvido por Alves (2021) sobre o PER, tendo por base precisamente o caso do Bairro de Santa Filomena, permite-nos restituir parte do processo de demolição e resistência que aí teve lugar. Decorridos 19 anos desde o primeiro recenseamento, os agregados que integravam a lista camarária tinham, no entender da CMA, direito a ser realojados, mas os restantes não. Em 2012, na iminência de perderem as suas casas, parte das pessoas não recenseadas mobilizou-se pelo direito à habitação com o apoio de coletivos como a Habita, o SOS Racismo e a Plataforma Gueto, formando-se para o efeito uma Comissão de Moradores (Alves, 2021, p. 121). Tinha início uma interlocução entre a Comissão e a CMA, no sentido de se suspenderem as demolições até que fosse encontrada uma alternativa viável para as pessoas consideradas “Não PER”, que exigiam ser realojadas. Contudo, a CMA apenas se dispunha a contribuir para a entrada destes agregados no mercado de arrendamento, através da disponibilização do valor correspondente a um mês de caução e a um ou dois meses de renda, alegando fortes constrangimentos financeiros por parte do município (Ibidem). Vale a pena recordar que, em 2012, Portugal travava uma profunda crise económica e financeira, com forte impacto no tecido social, registando um elevado índice de desemprego e incumprimento no pagamento de bens essenciais como a habitação (ver e.g. Santos, Teles & Serra, 2014).
Face à irredutibilidade da CMA, a Comissão de Moradores e o Coletivo Habita levaram a cabo um conjunto de ações de protesto, através da denúncia da situação na Assembleia Municipal da Amadora, da redação de uma carta de solidariedade dirigida à CMA e da apresentação de uma queixa à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Provedoria de Justiça (Alves, 2021, pp. 123-125). Avançou-se ainda com providências cautelares e manifestações junto das sedes do IHRU e da CMA, realizaram-se comunicados de imprensa, a Relatora da ONU e o International Network for Urban Research Action (INURA) manifestaram-se contra a abordagem e posicionamento da administração local, mas nada conseguiu travar o avanço das máquinas (Alves, 2021, pp. 126-130).
Segundo dados da CMA, em meados de 2013 a taxa de execução do PER em Santa Filomena rondava os 80%, tendo sido realojados 229 agregados e excluídos outros 114 do processo (Alves, 2021, p. 133). Como último reduto, alguns moradores que adquiriram informalmente as parcelas de terreno onde erigiram as suas casas - 17G, 18G, 20G, 21G, 22G, 23 G, 24G (ver Quadro 1 e Figura 3) - instauraram nesse mesmo ano uma ação por usucapião contra o Fundo Imobiliário gerido pelo Millennium BCP, reivindicando o terreno ocupado na sua maioria há mais de 25 anos. Em 2016, esta ação foi considerada nula pelo Tribunal da Relação de Lisboa alegando: “[não ser possível obter] o destaque de uma parcela de terreno através do instituto da usucapião, por via judicial, dado que, dessa forma estaríamos a permitir ao Tribunal substituir-se às autoridades administrativas, em matérias que se reportam à autorização de loteamento ou de verificação de legalidades dos destaques prediais, situação esta que é de todo inadmissível”5.
Ainda em 2016, em resposta a uma queixa apresentada pelo Coletivo Habita na sequência de demolições sem alternativa habitacional na Amadora, o então Provedor de Justiça recomendava a revisão do PER, alegando tratar-se de “um instrumento manifestamente desatualizado, [...] [que] não tem permitido que os Municípios aderentes alcancem os objetivos pretendidos nem, tão-pouco, [...] dar a resposta devida aos cidadãos interessados”6. Face a uma conjuntura descrita como “socialmente muito sensível” e de “relevante complexidade jurídica”, e uma vez que os proprietários dos respetivos terrenos os adquiriram sabendo das “construções clandestinas” ali implantadas há várias décadas, não lhes assegurando, entretanto, “uma função útil” nem qualquer participação ativa no custo social com o realojamento, sugere igualmente à CMA que pondere a sua expropriação por utilidade pública. Para tal, recorre ao n.º 2 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 804/76, que determina as medidas a aplicar na “construção clandestina” e nas operações de “loteamento clandestino”, segundo o qual: “logo que se torne desaconselhável o prolongamento da manutenção da área de construção clandestina, pôr-se-á fim à ocupação da mesma”, não apenas pela demolição, como também “expropriando-se, se for necessário, os respetivos terrenos”. Ademais, segundo o regime próprio aplicável às expropriações por utilidade pública de zonas consideradas “degradadas”, os terrenos ocupados por “barracas” ou “bairros de lata” serão avaliados “atendendo exclusivamente ao seu destino como prédios rústicos”, com vista a alargar o conjunto de solos destinados à construção de novas habitações a custos controlados (n.º 3 e 4 do artigo 1.º do Decreto-Lei nº 273-C/75, de 3 de junho).
Nenhuma das recomendações foi acolhida pela CMA e, após a demolição integral do Bairro em 2015, os terrenos mantiveram-se expectantes, agora livres de ocupação, sofrendo forte valorização no mercado imobiliário. Recentemente, em 2021, o BCP anunciou a venda destes mesmos terrenos designados Villafundo, que, segundo uma consultora imobiliária, integram “a mais importante bolsa para a promoção residencial para a classe média da Grande Lisboa nos próximos anos”7. A operação urbanística prevista para a área (ver Quadro 1 e Figura 3), considerada de interesse estratégico municipal e que integra, para além dos terrenos outrora ocupados pelo Bairro de Santa Filomena e por outras ocupações similares também dadas como extintas, o denominado Bairro da Estrada Militar da Mina ainda não demolido, propõe a construção de habitações (unifamiliares e plurifamiliares de média e alta densidade) e espaços comerciais, equipamentos e serviços, bem como a criação de novas áreas verdes e de recreio8. Um estudo urbanístico da iniciativa do BCP - que tem na sua posse cerca de 111 hectares -, apresentado no âmbito da revisão do PDM, define uma área edificável de cerca de 55 hectares, sendo 80% da capacidade construtiva destinada à habitação e os restantes 20% para atividades económicas. A proposta apresentada prevê a promoção de “habitação a custos e rendas controladas” - até 10% da oferta residencial total, repartidos equitativamente entre a CMA e o proprietário -, nos termos a definir na Estratégia Local de Habitação da Amadora, sobre a qual nos detemos de seguida, e da revisão do PDM, em curso9.
N.º Mapa (Figura 3) | N.º Imóvel | Artigos | Área dos artigos/m2 (valores aproximados) | ||
---|---|---|---|---|---|
Ocupação Santa Filomena | Propriedade BCP | Propriedade CMA | |||
1. | 60661 | 1FF1/4592/4593/1461 | 0 | 799369 | 0 |
2. | 90659 | 5018U | 0 | 78730 | 0 |
3. | 90651 | 18G | 16490 | 9123 | 7367 |
4. | 90650 | 20G | 12482 | 3968 | 8514 |
5. | 90652 | 22G | 47061 | 19767 | 27294 |
6. | 90658 | 24G/5l | 9639 | 5207 | 4432 |
7. | 90653 | 40G | 0 | 161884 | 62693 |
8. | 90654 | 3425U | 0 | 24707 | 0 |
9. | 90660 | 17G/3l | 0 | 6604 | 39936 |
TOTAL | 85672 | 1109359 | 150236 |
Fonte: Cruzamento de informação de Alves (2021, p. 133) e do documento de promoção imobiliária da Cushman Wakefield, disponível em: https://imoveis.cushmanwakefield.pt/media/docs/products/2158/teaser-villafundo-amadora.pdf Legenda: a vermelho os “bairros degradados” dados como extintos (A. Santa Filomena; B. Encosta Nascente; C. Estrada Militar da Mina; D. Pré-fabricados da Mina; E. Serra Pequena); a amarelo os existentes (F. Estrada Militar da Mina; G. Quinta do Pomar). A numeração corresponde aos artigos discriminados no Quadro 1.
5. Recursos públicos para mais e melhor habitação pública: um desafio permanente
Já depois de Santa Filomena e de outros bairros similares, como o 6 de Maio e o Estrela de África, serem dados como extintos, a CMA sinalizou 2839 famílias em situação de precariedade no Levantamento Nacional das Necessidade de Realojamento Habitacional, evidenciando a persistência de um problema de habitação no concelho (IHRU, 2018, p. 22). Face a este cenário e à oportunidade de investimento público em habitação no quadro do Plano de Recuperação e Resiliência10 (2021-2026), a autarquia elaborou a sua Estratégia Local de Habitação (ELH) ao abrigo do 1.º Direito (ver Jorge, 2022a, 2022b), estabelecendo as prioridades e soluções habitacionais a desenvolver até 2025 a partir de um diagnóstico das carências habitacionais existentes. No total, identificaram-se 2.973 agregados em situação de carência financeira e indignidade habitacional (precariedade e insalubridade), um número longe de estar estabilizado - só em 2020, foram registadas 645 novas candidaturas a uma habitação social na Amadora (CMA, 2021, p. 22) -, mas passível de ser atualizado de acordo com a Portaria que regulamenta o programa (n.º 6, artigo 2.º). Com base neste diagnóstico, prevê-se, quer a construção de fogos destinados a realojamento (222), quer a reabilitação de edifícios e fogos devolutos do parque habitacional público (1854) e o apoio a beneficiários diretos a residir em edifícios de propriedade mista - pública e privada, decorrente dos processos de alienação do parque habitacional municipal - também para reabilitação (321).
No topo das prioridades da ELH da Amadora está a eliminação dos denominados núcleos e bairros de habitação precária e ilegal, não resolvidos ao abrigo do PER - como o Bairro da Estrada Militar da Mina, que, como referimos anteriormente, coincide em grande parte com a área abrangida pela operação urbanística denominada Terrenos Villafundo (Figura 3) - e sobre os quais prevalece uma visão pejorativa, onde a CMA sinalizou agora 998 agregados. As soluções de reabilitação de fogos vagos no parque habitacional público e a construção de novos fogos em terrenos municipais, financiadas ao abrigo do 1.º Direito, cobrem 42% destes agregados (CMA, 2021, p. 26-27). Os restantes 58% serão apoiados através de uma comparticipação financeira a fundo perdido por parte do município para auto realojamento, no quadro do Programa de Apoio ao Auto Realojamento, alegando-se falta de recursos imobiliários e fundiários disponíveis para responder às necessidades de realojamento, o impacto positivo da implementação deste programa e a progressiva emancipação, autonomia e integração sócio-espacial que tem gerado (CMA, 2021, p. 27). O limite da comparticipação corresponde a 60% do valor de compra dos fogos a custos controlados de tipologia adequada à composição dos agregados beneficiários (n.º 2, artigo 3.º, do Regulamento n.º 358/2020, de 04 de setembro), disponíveis no mercado livre de habitação (arrendamento ou compra e venda), com preços, como começámos por apresentar, inflacionados. Por fim, equaciona-se ainda a aquisição, pelo município, de habitações no mercado para realojamento e a construção de fogos com esse mesmo objetivo, em terrenos municipais não disponíveis no momento e/ou onde esta possibilidade depende de instrumentos de gestão urbanística e da definição da capacidade edificatória por parte do PDM, em revisão. A promoção de “habitação a custos e rendas controladas” proposta na operação urbanística prevista para os terrenos Villafundo enquadra-se neste cenário.
Embora ainda não seja possível avaliar a implementação e o impacto das respostas habitacionais propostas no quadro do 1.º Direito, identificam-se até ao momento mudanças, mas também similitudes, com o seu congénere. Seguindo a tendência dominante, o problema da habitação continua a ser lido sobretudo a partir de uma perspetiva quantitativa e setorial, geralmente limitado ao número de pessoas e agregados elegíveis no programa, ao número de fogos em falta e ao investimento implicado em cada resposta habitacional, definida à margem dos destinatários, sem o seu envolvimento ou participação (Jorge, 2022a). Contudo, o facto da ELH vir a integrar a Carta Municipal de Habitação da Amadora - 2035, prevista na Lei de Bases da Habitação e atualmente em fase de elaboração, reafirma o tema na agenda local, dando igualmente espaço a uma abordagem e leitura do território e da problemática mais abrangentes. Este instrumento municipal de planeamento e ordenamento territorial, ao se articular, no quadro do PDM em revisão, com os restantes instrumentos de gestão do território e demais estratégias aprovadas ou previstas para o município (artigo 22.º da Lei de Bases da Habitação), representa uma oportunidade para ultrapassar a falta de recursos fundiários, imobiliários e financeiros destacada na ELH, nomeadamente através de uma maior articulação com a política de solos, como preconizado na Lei de Bases da Habitação.
Ao tratar-se de um município densamente ocupado e com uma bolsa de terrenos livres restrita, esta falta de recursos acaba por determinar as respostas habitacionais até agora lançadas, havendo o risco de se reproduzir o modelo de desenvolvimento urbano em que assentou o PER. Na construção de novos fogos para realojamento, dependente dos terrenos livres na posse do município - Serra de Carenque, Casal da Boba, Arneiro dos Cucos e Cerrado dos Caldeireiros (CMA, 2021, p. 26) -, pode não estar garantido o acesso aos serviços e equipamentos de proximidade necessários ou desejáveis, dada a sua localização periférica, estando uma parte na imediação dos bairros municipais já existentes, o que aumentará a concentração de habitação pública. Nestes bairros, segregados do ponto de vista social e urbanístico, preveem-se intervenções de reabilitação ao nível do edificado e do espaço público (arruamentos, passeios, estacionamento, espaços verdes), visando uma melhoria do habitat e da imagem urbana, bem como a implementação de um programa dirigido à promoção da inclusão social, apoiado em Contratos Locais de Desenvolvimento Social-4G11 (CMA, 2021, p. 37). Esta aposta na reabilitação do parque habitacional público, que revela uma mudança na forma como se lê e intervém no território, é destacada no âmbito do processo de revisão do PDM. No relatório que apresenta e sintetiza a sua fase de caracterização e diagnóstico ao nível da habitação, o espaço público é descrito como objeto de intervenção e de trabalho na ação de realojar, com vista a melhorar a qualidade de vida das populações, nomeadamente através da disponibilização de equipamentos e serviços de proximidade, contrariando a mono-funcionalidade (CMA, 2018, p. 46). Em complemento, sublinha-se a necessidade de interagir em rede, através da análise e da tomada de decisão conjuntas e integradas (Ibidem). Sendo a participação um dos princípios pelos quais se rege o 1.º Direito (artigo 3.º), requer-se a efetiva participação, não só das entidades e organizações locais, como sobretudo dos beneficiários na operacionalização das soluções, traçadas na ELH sem o seu envolvimento ou auscultação (CMM, 2021, p. 45).
Já fora do quadro do 1.º Direito, o realojamento disperso na malha urbana consolidada, através do Programa de Apoio ao Auto Realojamento, poderá promover a dispersão territorial e uma maior mistura social, em oposição ao realojamento massivo e concentrado, mas não contribuirá para o aumento do parque habitacional público, assentando numa leitura individual, e não coletiva, do problema habitacional. Tendo em conta a comparticipação até 60% do valor de compra dos fogos com tipologia adequada à composição de cada agregado, o acesso a uma habitação no quadro deste programa requer capacidade de poupança por parte dos possíveis beneficiários e/ou de endividamento, caso se recorra ao crédito bancário, como forma de cobrir os remanescentes 40%. Embora este investimento possibilite uma resposta habitacional a cada agregado, não consolida uma política pública de longo prazo, capaz de beneficiar mais pessoas em carência ou vulnerabilidade habitacional.
As mais valias urbanísticas a capturar no quadro da operação imobiliária Terrenos Villafundo, que podiam servir para promover mais habitação pública, acabam por não sair do papel, estando dependentes da conclusão da revisão do PDM e da própria Carta Municipal de Habitação da Amadora - 2035, bem como da orientação política e técnica de quem os executar. Na prática, seguindo o entendimento de Pardal e Pinheiro (2000), estão em causa pelo menos três tipos de mais-valia: (1) simples, correspondente ao acréscimo do valor fundiário resultante de uma alteração de uso ao nível dos instrumentos de gestão urbanística; (2) indireta, relativa à valorização decorrente do desenvolvimento na envolvente, sem qualquer melhoria, transformação ou investimento no próprio prédio ou artigo predial em causa; e (3) imprópria, decorrente do eventual acréscimo de valor entre o momento da compra e da posterior venda. Tratando-se de terrenos adquiridos e transacionados quando ocupados por milhares de pessoas, quer as operações urbanísticas no seu entorno, quer a demolição das construções e realojamento de quem aí residia, acabaram por beneficiar fortemente o Fundo Imobiliário detentor final destes terrenos, que, sem qualquer contrapartida social ou financeira, se limitou a assistir às movimentações que conduziram à sua desocupação e subsequente valorização. Apesar de haver espaço para uma ação de expropriação por utilidade pública, como referido pelo Provedor de Justiça, o posicionamento e investimento do poder público no âmbito do PER acabaram por viabilizar o processo especulativo aqui traçado, culminando num estudo urbanístico que, como referimos anteriormente, propõe a promoção de “habitação a custos e rendas controladas” até 10% da oferta residencial total, uma contrapartida aquém das mais-valias que poderiam vir a ser capturadas numa operação desta escala e natureza.
6. Notas conclusivas
Como começámos por evidenciar no início do texto, quanto maior a dinâmica do mercado livre, maiores as receitas de investidores e promotores imobiliários e, por sua vez, maiores as dificuldades sentidas por quem não consegue cobrir o aumento dos preços da habitação. Esta aparente relação de causa e efeito alerta para a urgência de traçar e implementar um modelo de desenvolvimento urbano menos desigual e, simultaneamente, ampliar as respostas públicas de acesso à habitação, alocando para o efeito mais e melhores recursos financeiros, fundiários e imobiliários. O vasto leque de diplomas e instrumentos lançados nos últimos anos para fazer face ao problema, sentido pela classe média e, ainda mais, pelos grupos de menores recursos, aqui em destaque, abrem novas oportunidades, tanto ao nível do tipo de soluções habitacionais disponíveis, como de uma possível articulação entre políticas de habitação e política de solos e adoção de uma abordagem integrada e multissetorial. Contudo, as práticas nem sempre refletem essa abertura.
O município da Amadora, com uma crescente dinâmica de mercado e simultaneamente a braços com um forte défice habitacional, revela parte das contradições e limitações do poder público nesta matéria. A análise do processo de demolição e realojamento do outrora Bairro de Santa Filomena, conduzido ao abrigo do PER, bem como da posterior promoção de uma grande operação urbanística nos terrenos deixados livres, coloca em perspetiva a política de habitação aí seguida nas últimas décadas e a ausência de uma política de solos capaz de lhe dar suporte e garantia de continuidade. O PER acabou por ser responsável pela emergência de bairros de realojamento periféricos, de fraca qualidade urbanística, arquitetónica e construtiva, agora objeto de ações de reabilitação ao abrigo do 1.º Direito, como por, paradoxalmente, reproduzir fenómenos de exclusão e segregação sócio-espacial difíceis de superar. Por sua vez, ao não se considerar a expropriação por utilidade pública, de forma a ampliar a reserva de terrenos aptos à construção de habitação pública em áreas mais centrais e até a viabilizar um realojamento in loco, beneficiou-se o setor imobiliário privado, alimentando o mercado especulativo de habitação que, direta ou indiretamente, retroalimenta a precariedade e vulnerabilidade habitacional. Neste sentido, por um lado, a ocupação de terrenos públicos e privados como forma de responder a uma carência habitacional e a uma ausência de resposta por parte do poder público é lida como não legal e sancionada pela edilidade, por outro, a compra desses mesmos terrenos ocupados e o avanço de uma operação urbanística em seu lugar são legitimas e consideradas legais.
Mais recentemente, as metas traçadas no âmbito da revisão do PDM e a elaboração da Estratégia Local de Habitação e de uma Carta Municipal de Habitação, no quadro respetivamente do 1.º Direito e da Lei de Bases da Habitação, preconizam outra abordagem, que requer uma forte mudança de atitude e orientação política por parte do executivo municipal. A promoção de “habitação a custos e rendas controladas” até 10% da oferta residencial total da operação imobiliária prevista para os terrenos Villafundo, após a extinção do Bairro de Santa Filomena, à qual se seguirão outras, como a do Bairro da Estrada Militar da Mina, ao abrigo do 1.º Direito, pode anunciar uma tímida mudança. Contudo, revela-se crucial a garantia da sua efetiva concretização, por via de uma contratualização e subsequente monitorização, para que o passado não se reproduza - recorde-se que a afetação obrigatória de 10% da totalidade dos fogos propostos a programas de habitação social, decretada pelo PDM da Amadora de 1994, não se efetivou -, colocando-se em prática um modelo e abordagem de intervenção distante e distinto do PER. Outras respostas, como as promovidas através do Programa de Apoio ao Auto Realojamento, ao assentarem na dinâmica do mercado privado e na propriedade privada individual, em detrimento da ampliação do parque habitacional público, ficarão aquém do que o problema da habitação hoje, e amanhã, requer.