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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.sp23 Lisboa abr. 2023  Epub 04-Out-2023

https://doi.org/10.15847/cct.28006 

ARTIGO ORIGINAL

As consequências imediatas e a longo prazo da pandemia Covid-19 na educação em Portugal: uma exploração empírica

The immediate and long-term consequences of the Covid-19 pandemic on education in Portugal: an empirical exploration

1CIES-Iscte, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, inessantostavares@gmail.com


Resumo

A pandemia gerada pela Covid-19 teve impacto em diversas áreas, desocultando e intensificando as desigualdades sociais. O presente artigo analisa a influência da pandemia na reprodução de desigualdades sociais na educação, partindo do reconhecimento do efeito cíclico que a escola assume na reprodução de desigualdades e tendo presente a relação entre os recursos expressos através dos diversos tipos de capitais e o desempenho escolar. Pretende-se, assim, compreender como a pandemia potenciou a reprodução de desigualdades, tendo em foco o contexto português e analisando as consequências em dois prismas: imediatas e a longo prazo. Sabendo que as desigualdades se apuram também numa perspetiva macro, na medida em que as diferentes desigualdades estão interligadas entre si e que a carência de diferentes capitais tem impacto em várias áreas, nas quais a educação se inclui, quais são os alunos mais penalizados? Que desigualdades são mais tangíveis? A presente investigação utiliza também como fundamentação empírica uma base de dados que engloba todos os alunos inscritos no sistema de ensino púbico português, nos anos letivos 2018/19 e 2019/20, de forma a explorar as diferenças verificadas no primeiro ano de pandemia, as consequências imediatas. Assim, analisam-se as desigualdades económicas, sociais, escolares e territoriais que a pandemia causou, bem como os seus diferentes impactos nos resultados escolares.

Palavras-chave: educação; desigualdades sociais; reprodução social; pandemia Covid-19

Abstract

The pandemic generated by Covid-19 had an impact in several areas, uncovering and intensifying social inequalities. This article analyses the influence of the pandemic in the reproduction of social inequalities in education, starting from the recognition of the cyclical effect that the school assumes in the reproduction of inequalities and bearing in mind the relationship between resources expressed through various types of capital and school performance. The aim is thus to understand how the pandemic has enhanced the reproduction of inequalities, focusing on the Portuguese context and analysing the consequences in two prisms: immediate and long term. Knowing that inequalities can also be ascertained from a macro perspective, to the extent that the different inequalities are interconnected among themselves and that the lack of different capitals has an impact on several areas, in which education is included, which are the most penalized students? Which inequalities are more tangible? The present research also uses as empirical grounding a database encompassing all students enrolled in the Portuguese public education system, in the school years 2018/19 and 2019/20, in order to explore the differences verified in the first year of the pandemic, the immediate consequences. Thus, the economic, social, school and territorial inequalities caused by the pandemic are analysed, as well as their different impacts on school results.

Keywords: education; social inequalities; social reproduction; Covid-19 pandemic

Introdução

A pandemia desencadeada pela Covid-19 não só desocultou desigualdades sociais que estavam encobertas e às quais era dada menor visibilidade, como agudizou o fosso das desigualdades sociais em vários campos, nomeadamente as desigualdades na saúde, na educação, económicas e sociais.

São múltiplas as esferas atingidas pela pandemia (Carmo, Tavares e Cândido, 2020; 2022), sendo a educação uma das mais evidentes. As escolas fecharam durante períodos intercalados, variáveis consoante o ano escolar e o país em questão. Indiferentemente das nuances específicas que cada caso poderá ter assumido, o percurso escolar foi interrompido e alterado - embora em algumas situações se possa ter procedido a uma manutenção do ano escolar, inclusive de modo presencial - porque existia uma pandemia ou um momento pós-pandémico em pano de fundo quer dos estudantes, quer dos profissionais que compõem o meio escolar, ao qual dificilmente poderiam ser indiferentes.

Além das diferentes áreas nas quais se sentiram, de formas diferentes, o agudizar das desigualdades sociais, a pandemia também gerou desigualdades em diferentes andamentos: por um lado, existiram algumas consequências da pandemia (e respetivo confinamento) concretas e com impacto imediato e, por outro lado, existiram consequências que, embora possam revelar-se de imediato, manifestam-se sobretudo a longo prazo. É sobre esses dois binómios que se focará o presente artigo.

O objetivo deste estudo prende-se, portanto, com a análise das consequências da pandemia Covid-19 na educação, recorrendo para tal a uma análise empírica aos dados já disponíveis e à revisão bibliográfica. Distinguiu-se a análise entre as consequências a curto e a longo prazo, uma vez que envolvem pontos reflexivos diferentes, sendo relevante perceber as diversas lógicas de como a pandemia poderá afetar a reprodução de desigualdades em educação.

Assim, partiu-se para a pesquisa com uma pergunta de investigação central: de que modo a pandemia Covid-19 influenciou ou poderá influenciar a reprodução das desigualdades sociais? Com o desenvolvimento do estudo, constatou-se que para uma melhor organização e aprofundamento da temática, seria necessário distinguir entre o curto e o longo prazo, uma vez que algumas consequências são mais tangíveis que outras, existindo alguns impactos cujos dados ainda não estão apurados, tratando-se de uma análise mais reflexiva das potenciais consequências.

Breve enquadramento teórico sobre as desigualdades sociais em educação

Therborn (2006) aborda a multidimensionalidade das desigualdades sociais, explorando conceptualmente as diferentes componentes destas, classificando-as em três principais tipos de desigualdade: vitais, existenciais e de recursos. Enquanto as desigualdades vitais interpelam as temáticas da saúde, da vida e da morte, sendo transversais a diferentes contextos, as desigualdades existenciais estão associadas ao reconhecimento do ser humano e a fenómenos como o racismo ou a xenofobia. As desigualdades de recursos prendem-se com as desigualdades de capitais, na conceptualização de Bourdieu (2010 [1979]), sendo acerca destas últimas que versará o presente estudo.

De facto, e segundo Bourdieu, existem quatro principais tipos de capital: económico (referente aos rendimentos, propriedades, riqueza e detenção dos meio de produção de cada indivíduo), simbólico (que respeita ao prestígio, embora Bourdieu o coloque num plano distinto dos restantes capitais), social (a rede de contactos e relacionamentos sociais ao dispôr de cada pessoa) e cultural (associado à escolaridade, ao conhecimento e às aprendizagens dos indivíduos). Os diferentes capitais, aqui enunciados de modo abreviado, influenciam decisivamente o habitus e a vivência de cada indivíduo, sendo permanentemente e de modo tendencial reproduzidos através de diversas instituições, nomeadamente a escola.

O habitus refere-se a um sistema de disposições que os diferentes indivíduos dispõe e utilizam, inconsciente, a cada momento, tendo repercussões nas suas perceções, nas suas ações e nas suas apreciações. O habitus é estruturado a partir dos capitais acumulados ao longo da vida, diferenciando os indivíduos que pertencem a diferentes classes sociais. O habitus configura-se enquanto um mecanismo que gera práticas socialmente estruturadas, atuando não apenas como sinal dos recursos possuídos pelos indivíduos, pelas famílias e pelas classes sociais, mas também através dos seus hábitos, das suas práticas, dos seus esquemas de gosto, das suas perceções, das suas preferências culturais ou da sua linguagem (Bourdieu, 2010 [1979])).

A conceptualização que Milanovic (2016) propõe acerca da desigualdade consoante o território onde se nasce (location based inequality) pode ser extrapolável para as desigualdades em educação, na medida em que, tanto entre países como também dentro de um mesmo país, existem territórios em que é mais facilitado o acesso à educação do que outros, condicionando assim o acesso dos jovens e criando uma “citizenship penalty” que é exterior aos jovens, na medida em que nada fizeram para tal, sendo determinado consoante o local de nascimento ou em que se habita.

As desigualdades sociais e a sua reprodução através da educação consistem numa temática estrutural da análise das sociedades contemporâneas, contribuindo a escola para a reprodução das desigualdades sociais (Bourdieu e Passeron, 1980 [1970]), através de modelos cíclicos, nos quais quem tem menos capitais (Bourdieu, 2010 [1979]) à partida, mantém-se com menos capitais, servindo a escola como uma instituição para validar a reprodução da menor ou maior acumulação de capitais.

Como Coleman (1966) concluiu no conhecido relatório de sua autoria, a desigualdade dentro da escola reside, sobretudo, nas diferentes famílias de origem dos alunos (nomeadamente na sua escolaridade, situação socioeconómica e profissional), sendo este o fator determinante na obtenção do sucesso escolar. Neste sentido, os capitais de origem configuram-se no principal fator de distinção do sucesso escolar dos estudantes na escola, o que a materializa numa instituição reprodutora de desigualdades.

A pandemia, além de desvendar um conjunto de tendências de desigualdades na educação que já se vinham percecionando (Martins, 2020; UNESCO, 2020; Tavares, 2022) veio intensificar as desigualdades sociais em educação por diferentes vias, como se aprofundará neste estudo. Como se constata em Tavares e Carmo (2021), as desigualdades sociais foram sentidas em diferentes esferas do mundo escolar, algumas potencialmente mais invisíveis e sobre as quais existirá menos reflexão, também devido à sua difícil medição, como as questões pedagógicas ou de cidadania. Fatores como a espacialidade da escola, o debate iniciado no encontro dos alunos, dos mais informais, como o recreio, aos mais formais, como na sala de aula, associações de estudantes ou clubes, a cidadania e o espírito crítico daí originado, são todos impulsionados pela experiência escolar presencial e dificilmente equiparáveis a um universo online. Apesar de num momento posterior e passada a pandemia as atividades terem retomado e o presencial voltado a ser o modelo de encontro mais frequente da escola, a interrupção que existiu terá um impacto no desenvolvimento dos alunos, que não será recuperável, tanto porque os estudantes não voltaram a ter essa idade como porque tendencialmente não repetiram esses anos escolares. Nesse sentido, os alunos estão em desvantagem quando comparados com as gerações mais velhas que, modo geral, viveram os seus anos escolares, a infância e a adolescência na sua plenitude.

Notas metodológicas

No presente artigo são apresentados dados relativos aos alunos inscritos no sistema de ensino português desde o ano letivo 2001/02 até 2019/20, tendo como fonte a DGEEC - Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência. A cedência e a exploração destes dados estão inseridas num protocolo para o desenvolvimento da dissertação de doutoramento da autora deste artigo. Os dados foram trabalhados através da unidade de análise aluno, sendo posteriormente agrupados na unidade município, o que permitiu a realização da análise de clusters.

Os dados respeitantes ao desemprego são oriundos do IEFP - Instituto do Emprego e Formação Profissional e são ainda utilizados dados do INE - Instituto Nacional de Estatística (índice de Gini, Rácio p80/20 e Ganho médio mensal).

Para a realização da análise de clusters analisou-se o diagrama de dendrogram, constatando-se a existência tendencial de quatro grupos de municípios e, dado que a amostra é de grande dimensão e que todas as suas variáveis são quantitativas, decidiu-se recorrer ao método não hierárquico K-means Clusters para a análise (Hair et al., 1995; Maroco, 2018). Após a definição dos quatro clusters, cruzou-se cada grupo com variáveis de desigualdade, de forma a melhor caraterizar e relacionar os diferentes indicadores, percebendo como as variáveis de desigualdade em cada município podem ser relevantes na evolução das taxas de retenção e desistência durante o primeiro ano de pandemia Covid-19.

As consequências imediatas da pandemia Covid-19 na educação em Portugal

Alguns dos efeitos da pandemia (e respetivo confinamento) revelaram-se concretos e de impacto imediato, como é o caso do aumento do desemprego - ainda que amortizado pelas políticas públicas operadas pelo governo de apoios diretos ou indiretos ao emprego, sendo as mais relevantes o lay-off simplificado e as moratórias de crédito às empresas - ou da saúde - tanto as diferenças no acesso, geradas por desigualdades de escolaridade, económicas, territoriais, etc., como na maior mortalidade de alguns grupos sociais (Tavares, Cândido, Caleiras e Carmo, 2022; Pegado, 2022).

No caso da escola, as consequências são várias e, embora seja precipitado elaborar conclusões perentórias ou deterministas, é necessário analisar as principais tendências e pistas que é já possível levantar do efeito da pandemia, recorrendo ao suporte de dados estatísticos.

O Gráfico 1 ilustra a evolução da taxa de retenção e desistência tanto para o ensino básico como para o ensino secundário, de 2001 a 2020. Como se pode verificar, a taxa diminui de forma relativamente constante nos vinte anos em análise, embora com algumas oscilações e esporádicos aumentos, nomeadamente entre 2010 e 2013. É de notar que o intervalo de pontos percentuais entre a taxa de retenção e desistência do ensino básico e do ensino secundário diminuiu severamente entre 2001 e 2020, passando de 26,7% em 2001 para 6,3%. em 2020.

Fonte: DGEEC

Gráfico 1 Taxa de retenção e desistência por nível de ensino, 2001-20201  

Conforme o Gráfico 1 assinala, a taxa de retenção e desistência diminuiu consideravelmente entre 2019 e 2020 (último ano de pré-pandemia Covid-19 e primeiro ano afetado pela pandemia Covid-19), decrescendo 1,6 pontos percentuais (p.p). no caso do ensino básico e 4,6 p.p. no ensino secundário, indicando que durante a pandemia as taxas de retenção e desistência dos estudantes parecem ter diminuído. Um dos fatores que certamente influenciou esta descida prende-se com a não existência de exames nacionais neste período, salvo os estudantes do ensino secundário que queriam aceder ao ensino superior. De facto, a não existência de exames nacionais poderá ter influenciado estes dados, na medida em que algumas das retenções, sobretudo no ensino secundário, se devem à não aprovação nos exames nacionais. Serve, portanto, o momento atual também para refletir sobre a utilização de exames nacionais enquanto ferramenta para balizar e avaliar os conhecimentos, bem como para hierarquizar alunos e escolas e mediar o seu acesso ao ensino superior. Como Alves (2008) demonstra, sobretudo através da análise dos exames nacionais de português, mas também de outras disciplinas, os exames nacionais carecem de fiabilidade pedagógica, não se materializando num instrumento de avaliação justo, o que coloca em causa a concretização de uma igualdade de oportunidades, por diversos motivos, nomeadamente pela falta de objetividade intrínseca a uma ferramenta deste tipo, embora exista uma aura de objetividade por trás da avaliação dos exames, por não ter em consideração o ponto de partida diferenciado dos alunos e das escolas em que estudam, por não valorizar as especificidades que cada aluno poderá apresentar, em resumo, pela tentativa de metrificar os estudantes e as escolas, em lugar da qualidade do ensino e das aprendizagens, resultando num potenciador da reprodução das desigualdades sociais por via da escola (Gouveia, 2017).

Por outro lado, parte destes resultados tendencialmente encontra justificação no facto de se viver, com efeito, um momento particular, que deixou em suspenso diferentes componentes do quotidiano, influenciando os diversos elementos da vida dos indivíduos, incluindo dos profissionais e alunos que compõem o meio escolar, bem como as suas famílias.

Outro fator a ter em consideração nesta análise é ainda a interferência que a pandemia consubstanciou no ensino de áreas manuais - não podendo existir uma via presencial, estas esferas foram alvo de um ensino menos profícuo, o que poderá resultar em avaliações menos estruturadas, dada a falta de uma peça essencial na aprendizagem e também na sequente avaliação.

Assim, mais do que analisar se a taxa de retenção e desistência aumenta ou diminui, interessa perceber de que forma esta se distribui, uma vez que o aumento ou a diminuição, por si, poderão não ser significativos. De facto, a taxa poderá diminuir ou aumentar devido substancialmente ao momento excecional que se vive, não advindo daí nenhum contributo sólido para o combate às desigualdades. Interessa, como tal, perceber se essa diminuição ajuda na construção de uma escola menos desigual e de que modo ou, inversamente, se esta descida em nada tem impacto no combate às desigualdades ou ainda se, embora a taxa tenha diminuído, as desigualdades se expandiram ou potencialmente poderão aumentar de forma mais veemente.

O Gráfico 2 apresenta a taxa de retenção e desistência consoante os alunos beneficiem ou não de Ação Social Escolar (ASE) nos anos letivos de 2018/19 e 2019/20, no sistema de ensino público em Portugal continental.

Fonte: DGEEC, dados próprios.

Gráfico 2 Taxa de retenção e desistência por benefício de ASE, 2018/19 e 2019/202  

De acordo com o Gráfico 2, são os beneficiários de ASE que parecem diminuir mais as taxas de retenção e desistência, comparativamente com os restantes, também derivado a serem o grupo que apresentava as taxas mais elevadas em todos os ciclos de ensino, o que leva a que, assumindo uma diminuição relativamente equiparada, diminuam mais pontos percentuais. Sabendo que o ensino secundário tem as suas especificidades no que concerne à relação entre taxa de retenção e desistência e beneficiários de ASE, entre outros motivos porque muitas vezes existe uma seleção feita nos ciclos de ensino anteriores, nos quais ficam retidos parte dos estudantes beneficiários de ASE, é interessante analisar o 1º, 2º e 3º ciclos de ensino. Com efeito, nestes ciclos de ensino os alunos beneficiários de ASE parecem diminuir mais as taxas de retenção e desistência comparativamente com os estudantes que não beneficiam de ASE (no 1º ciclo -1,03 p.p. comparativamente com -0,53 p.p. nos alunos não beneficiários de ASE, no 2º ciclo -2,22 p.p. comparativamente com -1,09 p.p. e no 3º ciclo -3,9 p.p. comparativamente com -2,21 p.p.). Se é verdade que os alunos beneficiários de ASE diminuíram mais acentuadamente as suas taxas de retenção e desistência comparativamente com os restantes, é relevante assinalar que mantêm sempre taxas de retenção e desistência superiores às dos estudantes que não beneficiam de ASE, por vezes alcançando quase o dobro como, aliás, se verificava em 2018/19. Como tal, e uma vez que os alunos beneficiários de ASE tinham valores relativamente mais elevados que os não beneficiários de ASE, foram estes os que diminuíram as taxas mais significativamente, o que não corresponde a uma aproximação entre os grupos, na medida em que se mantém um fosso relevante entre eles.

O Gráfico 3 ilustra a taxa de retenção e desistência consoante ser ou não uma escola TEIP, para os anos letivos 2018/19 e 2019/20.

Fonte: DGEEC, dados próprios.

Gráfico 3 Taxa de retenção e desistência das escolas TEIP e não TEIP, 2018/19 e 2019/203  

As escolas TEIP correspondem a escolas em Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, geralmente marcadas por se inserirem em contextos de maiores desigualdades económicas e sociais. A taxa de retenção e desistência diminuiu de forma relativamente proporcional tanto nas escolas TEIP como nas escolas não TEIP, sendo o intervalo entre as escolas mais próximo (0,42 p.p.) em 2019/20 do que era em 2018/19 (1,06 p.p.), como se pode observar no Gráfico 3. Assim, e embora os valores se aproximem e ambos diminuam, os alunos inscritos em escolas TEIP continuam a apresentar taxas de retenção e desistência superiores aos estudantes que frequentam escolas não TEIP.

A Figura 1 mapeia uma análise de clusters que cruza as taxas de retenção em 2018/19 com as de 2019/20, de forma a compreender-se como evoluíram as taxas de retenção e desistência nos diferentes municípios em ambos os anos em análise. No grupo com menor retenção encontram-se concelhos localizados sobretudo a norte do país e tendencialmente situados no litoral ou próximos da costa marítima. A taxa de retenção e desistência nestes municípios desceu em média -1,44 p.p., passando a média da taxa de retenção e desistência de 3,28 para 1,84. Os municípios que apresentam uma retenção intermédia baixa apresentavam em 2018/19 taxas de retenção e desistência, em média, semelhantes ao grupo de retenção intermédia alta (6,26 no primeiro e 6,64 no segundo). No entanto, no ano letivo 2019/20 essa diferença aumentou, passando o grupo de retenção intermédia baixa a representar uma taxa de 3,18, enquanto o grupo de retenção intermédia alta 5,72. O primeiro grupo localiza-se sobretudo no interior norte do país e no litoral centro e alentejano e o segundo grupo no interior centro e no Algarve. Por fim, o grupo com maior retenção está localizado sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa e no interior alentejano, sendo o grupo que apresenta maiores taxas de retenção e desistência em ambos os anos letivos em análise, mas também aquele no qual mais diminuiu a taxa (-3,97 p.p., de 10,68 para 6,71).

Fonte: DGEEC, dados próprios.

Figura 1 Mapa da análise de clusters da taxa de retenção e desistência, Portugal, 2018/19 e 2019/20 

Como a Figura 1 permite visualizar, podem retirar-se duas principais conclusões da análise: por um lado, os grupos de municípios que tinham taxas de retenção e desistência mais elevadas antes da pandemia, no ano letivo 2018/19, são os que continuam com as taxas mais elevadas num momento pandémico, no ano letivo 2019/20, o que indica que as taxas diminuíram mas de forma relativamente proporcional pelos municípios, na medida em que aqueles que apresentavam taxas mais elevadas mantiveram esse lugar e vice versa. De facto, e ressalvando que houve grupos que diminuíram de forma mais intensa que outros, todos mantiveram o seu lugar na hierarquia.

Por outro lado, é de assinalar as diferenças territoriais, com as taxas de retenção e desistência mais elevadas a sul do país e taxas mais reduzidas a norte.

Seguidamente, a Tabela 1 apresenta o cruzamento do resultado da análise de clusters com variáveis de caraterização de desigualdades, de forma a melhor retratar cada um dos grupos, sendo estes indicadores i) a taxa de desemprego em 2020; ii) o índice de Gini de 2020; iii) o rácio P80/P20 de 2020; e iv) o ganho médio mensal em 2020.

Tabela 1 Caraterização dos clusters consoante variáveis de desigualdades, 2020 

Menor retenção Retenção intermédia baixa Retenção intermédia alta Maior retenção
Taxa de desemprego 2020 -- - + ++
Índice Gini 2020 -- - + ++
Rácio P80/P20 2020 -- - + ++
Ganho médio mensal 2020 -- + - ++

Fonte: DGEEC, IEFP e INE, dados próprios.

Como a Tabela 1 retrata, o grupo de municípios em que a taxa de retenção e desistência é menor, localizados sobretudo a norte do país, é também o grupo no qual o índice de Gini e o rácio P80/P20 são mais reduzidos, bem como o ganho médio mensal. Os concelhos com uma média de retenção intermédia baixa apresentam valores para a taxa de desemprego, o índice de Gini e o rácio P80/P20 intermédios baixos, e valores intermédios altos para o ganho médio mensal. Os municípios inseridos no grupo de retenção intermédia alta têm valores de taxa de desemprego, índice de Gini e rácio P80/P20 intermédios altos e ganho médio mensal intermédio baixo e os concelhos com maior retenção são também os que apresentam valores médios mais elevados para a taxa de desemprego, o índice de Gini, o rácio P80/P20 e o ganho médio mensal. Assim, as taxas de retenção e desistência dos alunos parecem tendencialmente acompanhar estes indicadores, sendo os municípios em que a taxa de retenção e desistência é menor aqueles em que geralmente a taxa de desemprego, o índice de Gini, o rácio P80/P20 e o ganho médio mensal também é menor.

As consequências a longo prazo da pandemia Covid-19 na educação em Portugal

Num outro prisma, existem resultados que, apesar de se poderem manifestar de imediato, têm sobretudo relevância a longo prazo, como os que estão relacionados com a sociabilidade - que é transversal de um ponto de vista etário, abrangendo tanto crianças e jovens em fases mais precoces de socialização, como população mais envelhecida, que se viu forçada a abdicar de um conjunto de interações quotidianas o que, por vezes, sinonimizou um isolamento total durante dias ou meses - que poderão ter interferências imediatas significativas nos indivíduos mas, tendencialmente, os seus efeitos apenas serão apurados na sua totalidade a longo prazo. Outra das consequências que apenas a longo prazo se poderá apurar mais aprofundadamente prende-se com a educação. Embora de imediato a pandemia tenha tido alguns efeitos, nomeadamente alterando as taxas de retenção e desistência, como se verificou anteriormente, é a longo prazo que os efeitos mais gravosos se poderão desocultar.

A sociabilidade é um dos aspetos que maior enfoque merece nesta reflexão. As crianças e jovens foram temporalmente privados de um conjunto de interações próprias da idade, bem como de descobertas em vários planos, originando desigualdades face à restante população, na medida em que não viveram na plenitude os seus anos escolares, estruturais em vários aspetos.

As crianças e jovens foram desprovidos do desenvolvimento de atividades desportivas, tanto em clubes que possam frequentar como da prática do desporto escolar, incentivo fomentado nas escolas que tão relevante se torna no combate ao sedentarismo, no estímulo de uma alimentação mais equilibrada e na incrementação de práticas desportivas e saudáveis nos jovens, além da sua componente de socialização com colegas e de impulso de espírito de equipa, de partilha e de solidariedade (Tavares e Carmo, 2021).

Os estudantes não vivenciaram igualmente um conjunto de atividades culturais, algumas facultadas pelas escolas, como a comparência em clubes de teatro, música, coros, dança, etc., e outras não oferecidas diretamente pelas escolas, como a criação de bandas e outras atividades de geração autónoma. Embora, logicamente, se possa ter tentado amenizar as interrupções com a manutenção de algumas destas atividades por via não presencial, e não desvalorizando os esforços empreendidos para que tal sucedesse, a realização destas atividades nesse novo formato não se poderá equiparar a um formato presencial, num momento em que a pandemia não fosse uma realidade. Atividades como estas permitem aos alunos não só descobrir outras áreas e novos interesses, como desenvolver um conjunto de faculdades e linguagens pedagogicamente estimulantes.

As atividades cívicas configuram-se enquanto outra prática que foi suspensa durante o período pandémico. Desde atividades espontâneas decorrentes da vivência do espaço escolar, como a organização de alunos para promover algum debate ou suscitar alguma discussão acerca dos problemas quotidianos de cada escola, até à organização em associações de estudantes ou outros movimentos cívicos, todas as formas de organização cívica têm o seu lugar e fomentam a inserção dos alunos numa participação ativa na sociedade, fundamental e imprescindível no amadurecimento das democracias atuais.

É durante os escalões etários em estudo que se começam a desenvolver e desenhar relações afetivas e amorosas e, partindo delas, se desenrolam descobertas relacionais e sexuais, que ajudam a estruturar os jovens nas suas formas de se relacionar com os outros, além da inerente erupção de experiências e indagações. Assim, e considerando que estas experiências carecem de uma vertente presencial muito marcada, o confinamento poderá ter um impacto bastante negativo nos estudantes neste aspeto, uma vez que lhes suspendeu, ainda que por dois anos, o desenrolar típico da exploração e busca de afetos e formas de relacionamento com os outros, resultado que tendencialmente se verificará sobretudo num momento mais posterior.

A pandemia poderá ter gerado um distanciamento face à escola que importa não obliterar, nomeadamente no que concerne a alunos tendencialmente já mais afastados da escola num momento anterior (Costa, 2020). De facto, a pandemia impulsionou um afastamento entre os estudantes e a escola, sendo este afastamento ainda mais agudizado para os alunos com menores capitais culturais, que eram anteriormente já os mais excluídos do meio escolar, o que origina um aumento das desigualdades (já antes existentes) para com estes estudantes. Assim, os alunos mais desfavorecidos tendencialmente somaram ainda mais desigualdades, encontrando-se no pós-pandemia num lugar mais desigual relativamente aos seus colegas que num momento pré-pandemia. Afigura-se, portanto, relevante pensar nestes alunos e no que se poderá fazer para promover a sua (re)aproximação à escola e familiarização com o espaço escolar.

Além dos alunos que se afastaram da escola durante a pandemia, passando cada vez mais a não a percecionar enquanto um espaço seu e no qual eles e os seus conhecimentos são valorizados e acolhidos, existem também os estudantes que entretanto abandonaram efetivamente a escola, sem a possibilidade do ensino presencial e sem a capacidade de aceder ao ensino digital. Muitos destes alunos já se encontrariam distantes do sistema escolar, configurando a pandemia o último impulso para dele saírem, ou então mantinham-se no sistema mas com tamanhas dificuldades e obstáculos que, com o surgimento de uma pandemia, potenciaram o abandono. Importa neste momento sinalizar estes estudantes e encontrar mecanismos para a sua reintegração nas escolas.

Uma parte da fonte do exacerbar de desigualdades durante o período pandémico, que consequentemente levou um conjunto de alunos ao abandono ou ao afastamento da escola, prende-se com o acesso à tecnologia. Num momento em que tudo passa para o digital, quem não tem as ferramentas necessárias e, como tal, não tem igual acesso aos conteúdos, às aulas e a material de apoio, encontra-se em desvantagem relativamente a quem, em sentido oposto, tem acesso a tudo isto. Se por vezes este fator poderá levar a um afastamento ou a um abandono da escola, também poderá resultar num aproveitamento menos proveitoso ou em pior assimilação dos conteúdos, embora se verifique a manutenção desses alunos no sistema escolar. De facto, e embora algumas consequências possam ser mais imediatas, só no longo prazo será possível apurar os efeitos da falta de acesso à tecnologia, sobretudo durante a pandemia, mas também no momento anterior e no momento subsequente, que se vive atualmente.

Para lá do acesso à tecnologia, é relevante frisar que se mantiveram as desigualdades existentes, uma vez que as desigualdades apuradas por Bourdieu e Passeron (1980 [1970]) não desapareceram durante a pandemia, antes pelo contrário, acentuaram-se, centralizando ainda mais, no decorrer deste período, a relevância dos capitais (Bourdieu, 2010 [1979]) na reprodução das desigualdades sociais por via da escola. Assim, desigualdades como as de linguagem (Bernstein, 1971) ou de se ser originário de famílias com diferentes capitais culturais continuam a ser estruturais na reprodução de desigualdades, tanto a curto como a longo prazo.

Conclusões

A pandemia parece, sobretudo, ter evidenciado algumas desigualdades na educação que há muito existiam e ficaram mais desencobertas com o momento extraordinário que se viveu (Martins, 2020; UNESCO, 2020; Tavares, 2022). Sabendo que é necessária cautela ao analisar um fenómeno da história tão recente, existem ainda assim algumas tendências que importa assinalar.

Quando se pensa nas consequências a curto prazo, existe uma principal que se parece evidenciar: embora as taxas de retenção e desistência tenham diminuído, estas aparentam manter-se distribuídas e hierarquizadas de igual forma, pelos mesmos grupos sociais e territórios, refletindo as mesmas desigualdades que se verificavam num momento pré-pandémico. De facto, a reprodução de desigualdades por via da escola (Bourdieu e Passeron, 1980 [1970]) parece manter-se semelhante também num momento de pandemia, na medida em que os dados aparentam evidenciar que a distribuição da taxa de retenção e desistência, aqui utilizada para medir o sucesso escolar, mantém a mesma distribuição desigual.

Relativamente às consequências a longo prazo, importa pensar nas que poderão advir da falta de um conjunto de processos e atividades que as gerações mais jovens foram privadas, ficando assim em desvantagem para com outras gerações, como a falta de interação, de atividades desportivas, atividades culturais, atividades cívicas ou a experimentação de relações afetivas e amorosas. A pandemia certamente afastou um conjunto de alunos e famílias da escola, tendo em alguns casos inclusive levado ao abandono, agudizando um conjunto de desigualdades sociais que não devem ser ignoradas quando se reflete e constroem políticas públicas. Pensar no acesso à tecnologia, na sua universalidade e em como poderá ser utilizada enquanto uma ferramenta de combate às desigualdades sociais poderá ser um começo de ponderação. Conclui-se, portanto, que a base estrutural das desigualdades não se modificou, apenas acentuou e delimitou as suas fronteiras.

Ao explorar empiricamente os dados acerca das taxas de retenção e desistência foi possível levantar algumas pistas sobre a manutenção da reprodução das desigualdades em educação, nomeadamente de um prisma territorial, ao analisar a evolução ao nível municipal, menos abordado de modo tão desagregado nos estudos desenvolvidos até ao momento. Por outro lado, este estudo cruza o sucesso escolar com variáveis estruturais de desigualdade, permitindo constatar como nos municípios em que existe uma estrutura mais desigual, esta repercutiu-se no sucesso escolar, uma vez que quão mais desigual é o município, mais insucesso se verificou, demonstrando também a multidimensionalidade das desigualdades.

Sendo este um momento próximo da pandemia iniciada em 2020, não existem ainda dados de fundo que permitam uma leitura evolutiva das consequências da pandemia. Apesar de algumas pistas, inclusive acerca dos ângulos de análise, terem sido evidenciadas no presente estudo, será interessante aprofundá-las com dados mais atualizados, nomeadamente acerca dos anos letivos seguintes, bem como através de uma exploração qualitativa que permita o aprofundamento da reflexão das consequências a longo prazo.

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1 Este gráfico diz respeito aos alunos tanto do ensino público como do ensino privado, e tem como universo todos os alunos inscritos no sistema de ensino em Portugal.

2Este gráfico diz respeito aos alunos apenas do ensino público e tem como universo todos os alunos inscritos no sistema de ensino em Portugal continental.

3Este gráfico diz respeito aos alunos apenas do ensino público e tem como universo todos os alunos inscritos no sistema de ensino em Portugal continental.

Recebido: 05 de Setembro de 2022; Aceito: 12 de Dezembro de 2022

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