Fachadismo e Retenção de Fachada
A vertente de fachadismo relativa às operações de retenção de fachada no âmbito de obras de alteração de edificações procede à substituição de todo o interior de um edifício, construindo novos programas, com novas exigências legais, tecnológicas e ambientais, mantendo apenas o alçado exterior como mecanismo de preservação da imagem urbana, distinguindo-se de outras operações e tipos de fachadismo e de operações de conservações ou reabilitação menos transformadoras do edificado existente.
A importância das fachadas no espaço na cidade deriva do ordenamento do espaço comum e da representatividade social da edificação em si. A arquitetura, na tradição europeia, consolidou-se histórica e socialmente como instrumento de valorização civilizacional1 e a fachada desenvolveu-se como mecanismo de representação social e de mediação entre o espaço público e privado.
A definição tipológica seria desenvolvida pela prática e pela teoria2 e a definição de conformação da via pública adquiria contornos jurídicos através dos normativos de construção3, evoluindo como instrumento definidor de uma ordem, por exemplo na disposição das praças reais parisienses de seiscentos (p.e. Place des Vosges, c.1612), os arranjos cenográficos de John Wood no royal crescent (Bath, c.1767) ou no plano pombalino de reconstrução da Baixa da cidade de Lisboa após o grande terramoto de 1755.
As intervenções de (re)formulação de fachada acompanharam o processo de consolidação desta como instrumento de configuração e significação do espaço da cidade. Participando da metamorfose das cidades, soluções como os espaços hipostilos, em peristilo, lógia ou em pórtico da tradição grega e romana, assinalavam espaços de mediação e passagem entre o privado e o público. Estes mecanismos poderiam ser apostos a edifícios existentes construindo um cenário público.
O palazzo Rucellai (c1446, Leon Battista Alberti) reconstruia a fachada de um edifício privado, conferindo-lhe uma monumentalidade pública, ou o pallazo della Ragione de Vicenza (c1549, Andrea Palladio, figura 1) que apunha uma nova fachada unificadora sobre a construção gótica existente, substituindo a colapsada colunata de Tommaso Formenton. Edifícios privados e públicos transformavam a fábrica da cidade com a reconstrução das fachadas.
Admite-se que a reconversão de fachada antecede a situação inversa, de reconstrução total interna e de preservação da fachada. Os antecedentes para este último tipo de intervenção aparentam ser mais recentes e aplicam-se a edifícios especialmente simbólicos, vítimas de catástrofes e com uma representatividade histórica e social elevada.
Note-se o exemplo da igreja da Conceição Velha em Lisboa, cuja reconstrução após o sismo de 1755 encaixa a fachada manuelina num plano de alçado setecentista, construindo uma nova unidade que reaproveita material e simbolicamente uma fachada na sequência de uma catástrofe.
A especialização do conhecimento conduziria a uma progressiva sistematização do saber histórico e arqueológico, alimentando o debate sobre estilos e a teoria do restauro. O “restauro estilístico” 4 desenvolvido por Viollet-le-Duc inspiraria futuras ações de correção arquitetónica e teria forte impacto em Portugal.5 Vários exemplos de reposição histórica implicariam reconstrução de antigas morfologias com novas tecnologias,6 situação criticada pelas visões “moderna” e “científica” que defenderiam o critério de diferenciação entre antigo e novo, propondo intervenções intermédias.
Com a devastação da Segunda Grande Guerra mundial, o valor dos conjuntos urbanos e a importância da arquitetura comum ganham reconhecimento. Todavia o edificado comum manteria um valor difuso de acompanhamento e a própria Carta de Veneza de 1964 encarava o tecido edificado como um cenário urbano (Vaz, 2019). Sobre os centros urbanos recaía o paradoxo de uma perpétua mudança tecnológica e funcional do edificado, face a um crescente alargamento da conceção patrimonial ao centro histórico. Sociedade e disciplina oscilam entre a reconstrução histórica em casos pós-catástrofe e o positivismo desenvolvimentista, de forte pendor privado, que levaria a casos traumáticos de “bruxellisation”7.
Com os anos 1970 a ação em Portugal alinha-se com a discussão internacional, enquanto o período pós-revolucionário proporcionaria enormes transformações urbanas num clima de permissividade administrativa (Vaz, 2019). O desenvolvimento económico e a consolidação de uma cultura de massas estimularam uma urbanidade pós-industrial e o mercado imobiliário. Assiste-se a uma mercantilização da edificação e os estilos locais associam-se a uma valorização económica. Nos anos 1970 o termo fachadismo emerge no vocabulário da arquitetura e do planeamento urbano, referindo-se a ações de preservação histórica de fachadas ou a criação de réplicas, em “pastiche” e a construção de edificações essencialmente novas no seu interior8.
A designação é metafórica de uma atitude superficial, desvirtuada da verdade, refletindo uma controvérsia persistente acerca da validade e “moralidade” deste tipo de intervenção9.
Não obstante, a aceitação disciplinar ultrapassava este juízo de valor e a sua popularização respondia a uma tripla aceção: de ordem disciplinar, beneficiando de um enquadramento pós-moderno; de ordem urbana, disponibilizando um instrumento de manutenção de uma ideia de enquadramento urbano e de ordem socioeconómica, correspondendo a uma propensão social10.
Deste modo, em condição pós-moderna e associado a uma mercantilização da edificação, emerge um tipo de intervenção que se vulgariza por fachadismo e que se cristaliza em duas grandes declinações operativas:
A construção nova que recorre a uma fachada de imagem antiga, desenvolvida como procedimento autossuficiente de enquadramento histórico e urbano;
A retenção/preservação das fachadas com a demolição integral do interior do edifício, desenvolvido com os mesmos objetivos de enquadramento.
Ambos os tipos pretendem uma valorização pelo significado da fachada e elaboram sobre o desenvolvimento e consolidação da noção de património cultural, representando a expansão popular destes conceitos e a sua incorporação na normativa e exploração pela indústria da construção.
Consideramos que uma identificação detalhada das declinações e contextos destes tipos simplificados está por sistematizar. Mais recentemente assiste-se em Lisboa e no Porto a uma hibridização de ambas as declinações em operações designadas de mansardização11, onde há uma transformação da morfologia das coberturas viabilizando o crescimento de pisos suplementares num desenho “harmonizado” com a fachada existente. Este artigo esboça uma aproximação, centrando-se no surgimento e desenvolvimento da última declinação: a retenção de fachada.
Estudos e debates sobre Fachadismo
O olhar da disciplina sobre a retenção de fachada é heterogéneo. Há uma extensa literatura sobre aspetos tecnológicos associados a metodologias de conservação e reconstrução de edifícios e de fachadas, mas menos entradas sobre a interpretação teórica.
Referência central é o livro Facadism de Jonathan Richards (1994), que propõe as primeiras definições teóricas do termo e elabora sobre as suas origens e motivações.
Relativamente ao debate em Portugal há uma problematização da falta de autenticidade, que é introduzida nos anos 1980 na imprensa generalista e especializada por autores como José Manuel Fernandes (1982) em editorial da Revista Arquitetura, Paulo Varela Gomes (1989) no jornal O Expresso, Alberto Castro Neves e António Maria Braga (1989) no jornal O Independente ou, na década de 1990, por José Aguiar (1994; 1995; 1998), acompanhando a dialética entre património e autenticidade clarificada por Choay (1982, p.11) e o debate internacional, onde a urgência de problematizar o desenvolvimento global do fachadismo e de avaliar as experiências e possibilidades de controlo dos centros das cidades levam o ICOMOS (International Council on Monuments and Sites) e a Direction de l'Architecture et du Patrimoine francesa a organizarem em 1999 o colóquio “Façadisme et identité urbaine” (ICOMOS, 2001).
Em Portugal, a experiência pioneira de conservação do centro histórico de Guimarães é retratada por Alexandra Gesta (1987, 1991, 2000) e José Aguiar (1998A). Manuel Graça Dias (1994) e Jorge Figueira (2014, 2017) e este com Pedro Baía e Paulo Varela Gomes (2012), contextualizam na cultura pós-moderna obras como a reconstrução da Casa dos Bicos (1983), de Manuel Vicente e José Daniel Santa-Rita ou a do Chiado de Álvaro Siza (1989).
As transformações urbanas a partir de 2010 trariam um novo impulso ao debate. Andreia Ribeiro (2013) aborda o fachadismo face ao reconhecimento do valor de conjunto dos edifícios correntes e Nuno Valentim Lopes (2015) aborda a divergência entre património e regulamentação, no caso de edifícios correntes, acentuando a desadequação do quadro regulamentar. Nassima Iles (2018) sintetiza a génese do fachadismo e toma Lisboa como caso de estudo.
Em 2017 o Jornal dos Arquitetos nº255 teria como tema as transformações urbanas em Lisboa e no Porto, reunindo um conjunto de artigos sobre o fachadismo e memória (Correia, 2017), o fenómeno da mansardização (Moura, 2017) ou a transformação tipológica e densificação (Bysmarck, 2017). No número seguinte do J.A., Paula Melâneo resume a retenção de fachada como uma aceção redutora do conceito de reabilitação, interligando-o com a massificação do turismo. O recrudescimento do debate apoia-se em casos de Lisboa e do Porto, todavia subsiste por realizar um estudo mais aprofundado sobre a retenção de fachada como tipologia e sobre o seu desenvolvimento específico em Lisboa.
Na imprensa generalista nacional e internacional, assiste-se à discussão em redor dos direitos edificatórios, para situações onde o recurso ao fachadismo esconde um aumento de área edificada ou a situações inversas, em que se evitou a reabilitação integral ou o fachadismo, construindo uma nova presença transformadora de relações urbanas existentes.
Antecedentes em Lisboa
A vertente de retenção de fachada é desenvolvida a partir da década de 1980 e acompanha a evolução de um ambiente disciplinar que aceita o “simulacro da operação”.12 Refletia igualmente uma desconfiança crescente perante as ações de demolição e substituição integral do edificado existente do centro da cidade, refletindo demolições traumáticas, como a que ocorreria entre 1983 e 1984 com o Cineteatro Monumental (figura 2).13
A experiência do Monumental antecedeu a intervenção de retenção de fachada do edifício Heron Castilho nº40, que seria a primeira experiência lisboeta com promoção comercial. Os efeitos traumáticos e impopulares desta demolição representam um momento de charneira na gestão administrativa e nos investimentos de reabilitação na cidade.
O referido ambiente disciplinar pode ser inferido na intervenção “controversa e cenográfica”14 de reconstrução da Casa dos Bicos (1983), de Manuel Vicente e José Daniel Santa-Rita15, que Manuel Graça Dias diria ser a “mais forte aventura do pensamento pós-moderno Português”.16
Obra singularmente “pós-funcional”,17 constrói uma interpretação da fachada quinhentista original, repondo os dois pisos soçobrados no sismo de 1755, estendendo a métrica do aparelhado de pedra em ponta de diamante e erguendo janelas manuelinas em perfilados de ferro galvanizado. No interior e no tardoz elaborava em liberdade total, contradizendo hipóteses de pastiche e de autenticidade e de diferenciação entre novo-antigo.
Apesar desta autonomia sobre os modelos de patrimonialização, há um contraste claro entre a operação da fachada, reelaborando o arquétipo histórico e um interior novo e contrastante, que recusa a “metamorfose em continuidade” e opera uma dupla reconfiguração: do modelo da fachada e da tipologia interior. Do edifício original apenas restava a fachada e o projeto assenta na sua riqueza e complexidade e no seu enquadramento patrimonial específico, de monumento nacional. Não menos importante, a intervenção integrava um programa de recuperação de monumentos da frente ribeirinha da cidade.18
Esta singularidade individual, dada pelo reconhecimento histórico e plasmada num plano de fachada individual, seria alargada a um conjunto urbano, na solução para a reabilitação do Chiado, proposta por Álvaro Siza, na sequência do incêndio de agosto de 1988 (Figura 3).
Siza Vieira mantém e reconstrói criteriosamente as fachadas pombalinas. Propõe uma reconstrução “como talvez nunca tenha sido: redesenhado, ao nível da rua, nos seus ritmos pombalinos”,19 tomando como base desenhos e fotografias existentes.20 Os alçados idealizam a tipologia original, repondo ao nível do piso térreo o alinhamento vertical dos vãos e ganhando uma austeridade consonante com o modelo original. No tardoz, quando há uma reconfiguração do perímetro, é ensaiado um novo alçado cuja composição deriva dos princípios pombalinos, com marcação do piso térreo e alinhamentos de vãos de diferentes dimensões, conforme a hierarquia dos pisos, com métricas regulares sobre um pano de fundo rebocado.
Projeta-se uma arquitetura de continuidade e transformação, mas que preserva a imagem e matéria histórica pela manutenção e reconstrução das fachadas, adaptando em continuidade uma série de elementos dos alçados, como os vãos e as ferragens que, sendo novos, reelaboram o sistema pombalino. Recuperando e reelaborando o exterior, produz-se uma tipologia interior nova.
As fachadas eram o único elemento remanescente da catástrofe e a sua preservação e recriação preservam um valor histórico. A retificação dos interiores e dos espaços públicos, alargado aos interiores dos quarteirões, reformula condições de uso e o desempenho tecnológico e normativo. Quando o número de pisos aumentava, a fachada existente era prolongada, respeitando escrupulosamente os princípios do projeto de 1758, pelo que o princípio da integridade morfológica não era ultrapassado.
As derivações de retenção de fachada nem sempre cumpririam estes escrúpulos e o aumento de volumetria quebraria a integridade urbana salientando a dissimulação do fachadismo. Referimo-nos a situações onde a retenção de fachada funciona como capa de integração e de reabilitação, atenuando e mascarando uma transformação morfológica de grande impacto.
Em Lisboa estas operações seriam enquadradas no PDM de 199421, situação que conciliava reabilitação com densificação e nutria uma narrativa sobre o património que dificultaria operações de reedificação sem a preservação ou a recriação histórica da fachada22.
Esta situação, paradoxal, simplificava o que se entendia por património, comprometia a morfologia urbana existente e reprimia novas linguagens de arquitetura. Não sem ironia, a designação e a prática do fachadismo de manutenção de alçado simbolizma esta perda de qualidades morfológicas encenando a sua conservação.
Retenção de fachada em Lisboa
Apresentamos de seguida três casos paradigmáticos de retenção de fachada em Lisboa, correspondentes a distintas contextualizações deste fenómeno. Consideramos os edifícios documentos primordiais que articulam aspetos sociais, culturais, legais e tecnológicos. Enquadramo-los na normativa da edificação, que fixa posicionamentos entre técnica e cultura. Ou seja, aparecimento e evolução do termo fachada nos normativos acompanha a transformação da noção de património, refletindo valores éticos e compromissos entre agentes da urbanização.
Incidimos na observação na Avenida da Liberdade por ser o eixo estruturante da cidade burguesa, construída como a primeira avenida haussmaniana em 187923 e que se mantém como eixo urbano de prestígio na cidade.
As operações de retenção de fachada são assinaláveis a partir da segunda metade da década de 1980, acompanhando os anos da adesão à Comunidade Económica Europeia (1986) e de grande dinamização do mercado imobiliário. Neste cenário, centralidade e valor patrimonial ganham uma progressiva relevância económica, contextualizando a retenção de fachada. Desenvolvendo uma ideia simplificada de reabilitação arquitetónica e de integração urbana, que se adequa a um sistema urbano débil, do ponto de vista conceptual, industrial e, consequentemente, normativo.
Os primeiros casos de retenção de fachada que retratamos, o edifício na Rua Braamcamp e o antigo Teatro Éden de Cassiano Branco, intervenções de 1985 e 1990, são paradigmáticos de uma ideia de reabilitação, fomentada por sociedades coletivas com poder financeiro. A retenção da fachada permitiria conciliar a preservação patrimonial e novos programas e intensidades de uso.
A conciliação entre fatores socioeconómicos e a apetência pelo património era suportada pelo momento cultural vigente nos anos 1980, que reavivava elementos historicistas, combinados com materiais contemporâneos e industrializados, originando uma arquitetura descomprometida e em “complexidade e contradição” (Venturi, 1966).
O fenómeno da retenção de fachada emerge como produto de contexto, oferecendo uma resposta eficaz a uma combinação de interesses económicos, culturais e sociais.
O PDM da cidade de 1994, o primeiro instrumento de planeamento da cidade após Abril de 1974, integraria um inventário de edifícios e conjuntos edificados com interesse histórico, arqueológico e/ou ambiental, assim como a áreas de potencial valor arqueológico, indo ao encontro das recomendações internacionais (CEE; ICOMOS e UNESCO) de identificação e preservação de edifícios com valor cultural. Este Inventário Municipal do Património24 classificava diversos imóveis, aos quais o PDM colocava condicionantes para demolição, mudança de uso e ampliação25, reconhecendo a importância da homogeneidade e identidade arquitetónica, conforme recomendações das cartas internacionais, desde a Carta de Veneza 1964.
Nas “Áreas Históricas Habitacionais” o PDM colocava a possibilidade de alterar ou de ampliar os edifícios existentes26, permitindo a demolição total do interior em edifícios não classificados. A ampliação era sujeita à oferta de estacionamento27, condicionando os processos de transformação integral das tipologias existentes.
Com o final do século XX e passagem para XXI, sobremodo após os investimentos culturais e urbanísticos da Lisboa 94 e da Expo’98, os processos de recentrificação da cidade intensificam-se, esta ganha um dinamismo sempre acrescido e o turismo urbano explode. No centro, assiste-se a um continuo desenvolvimento de operações de transformação híbrida do edificado, demolindo interiores e mantendo limites.
Este fenómeno persiste, contra as recomendações das cartas de património e contrariando um posicionamento disciplinar, que se consolida com o final do século, que entende a retenção de fachada como prática equivoca de reabilitação urbana (Aguiar 1994; 1995; 1998 ou Melâneo, 2017).
Os instrumentos de planeamento e gestão urbana municipal, como o Plano de Urbanização da Avenida da Liberdade e Zona Envolvente de 2009 (PUALZE) e o novo PDM de 2012, persistiam na possibilidade da operação de retenção de fachada, facilitando a recorrência no caso concreto da Avenida da Liberdade, assumindo a feição de um fachadismo de carácter normativo.28
PUALZE e PDM cristalizam um desejo de densificação, de um crescer para dentro, mediante o aumento do volume construído. A retenção de fachada surge como um mecanismo de compensação: uma máscara de identidade.
A imposição regulamentar da manutenção da fachada coloca dilemas adicionais à arquitetura, tornando ilegítimas operações que escapam à lógica fachadista, porque contradizem as expectativas sociais normativa. O discurso e o impacto do fachadismo ganha contornos mais complexos e a sua problematização cresce como tema de debate na cidade, como exemplifica a polémica em redor do projeto de Eduardo Souto de Moura para a praça das Flores29.
Casos Paradigmáticos (1985 e 2010)
Edifício Héron 40 (1985)
Entre os anos 1980 e 90 a área urbana de Lisboa vivenciou um forte crescimento periférico, predominante em habitação multifamiliar e ausente de planeamento morfológico. Esta dinâmica contrastava com o imobilismo do centro histórico, onde várias circunstâncias, como o envelhecimento das estruturas edificadas, associado a um sistema de rendas controladas, a um escasso valor social articulado à centralidade habitacional ou a falta de cultura de manutenção e reabilitação, não proporcionavam uma alternativa à pressão demográfica, condicionando-a aos limites periféricos.
Os investimentos em infraestrutura urbana privilegiam os sistemas viários de interligação com a periferia. A habitação periférica expandia e desenvolvia uma tipologia emblemática em cul-de-sac: a habitação de “placa”, com uma sequência normalizada de átrio a servir uma sala comum, acima dos 30 m2 e cozinha; seguindo-se um segundo átrio que articula as habitações e sanitários.
Com os PDMs da década de noventa o estacionamento é integrado, auxiliando ainda mais a compartimentação métrica da tipologia e refletindo um crescente fascínio pelo automóvel como objeto de desejo, inserido nos esquematismos de uma sociedade de consumo embrionária.
No centro, estes modelos contrastavam com o abandono do espaço público e do edificado. A estigmatização da construção pré-betão associava-se à ausência de exemplos de reabilitação, levando a uma naturalidade da remodelação integral com manutenção de fachadas30. O incremento da densidade aumentava a atratividade económica da operação, situação encorajada pelo congelamento dos espaços centrais.
O primeiro edifício objeto de operação de fachadismo de manutenção de fachada, com um aumento da área de construção, seria o Edifício Heron 40 na Rua Castilho, originalmente da autoria de Manuel Joaquim Norte Júnior e que teria projeto de remodelação dos arquitetos Henrique Tavares Chicó, Francisco Conceição Silva, J. Pedro Conceição Silva em 1985 31. Na memória descritiva do projeto de licenciamento os autores referiam: “(…) O reconhecimento da importância do centro histórico ou tradicional liga-se assim ao reconhecimento da importância do ambiente urbano de qualidade inexistente no subúrbio” (Chicó et al., 1985, p.13), contestando um valor qualitativo de urbanidade para o centro face ao subúrbio.
Invocavam uma ideia de contextualismo na operação proposta, não identificada de fachadismo, em que a preservação da fachada permitia a preservação de imagem da cidade:
“Surge assim a atitude contextualista, reconhecendo a esterilidade dos ambientes urbanos recém-criados. Atitude talvez nostálgica de recuperação ou reconversão de edifícios, monumentos e outros testemunhos arquitetónicos, com o objetivo de não deixar apagar uma parte visível da história da cidade. Atitude que deverá ser, em primeira mão, a criação do diálogo entre duas épocas arquitetónicas, ou seja, a articulação de uma linguagem de entendimento da outra, mais antiga, nesta procurando a imaginação do discurso arquitetónico a formular. No caso presente temos um projeto do Norte Júnior, menos elaborado que o do seu célebre palacete na Av. Fontes Pereira de Melo, mas muito equilibrado, vencendo com subtileza o desnível das Ruas Castilho e Braamcamp e encontrando o seu momento mais importante no troço central da fachada, encimado por escultura alada hoje desaparecida. (…) Criaremos assim outra fachada que entenda e reverencie os momentos mais importantes da fachada desenhada por Norte Júnior, explicitando a nova situação que a irá animar: o programa já não será só habitacional, mas comercial, e de escritórios. A fachada será agarrada piso a piso por lajes de betão, portanto a função do seu embasamento não fará mais sentido (abri-lo-emos por troços, estabelecendo, ao nível do centro comercial, uma mais estreita relação com a rua). Reconstruiremos o arco onde durante décadas se sentava a figura alada e restaurá-la-emos. Cuidaremos da ornamentação, hoje desgastada pelo tempo, e tentaremos dar à fachada a sua cor original. A nova fachada nascerá da antiga, e a antiga carregá-la-á de novos significados. (…) (Chicó et al., 1985, p.14)
Nesta narrativa, novo e antigo valorizam-se mutuamente e novo “cuida” do antigo. Este novo materializa-se em grandes superfícies envidraçadas que se alojam à fachada existente em contraste absoluto, configurando uma presença totalmente díspar da precedente e onde a mediação fracassa face à preponderância da nova volumetria. Acima da cornija da fachada de Norte Júnior, nasciam 6 pisos destinados a escritórios, cujo interior não é revelado ao exterior. Três arcos de volta perfeita materializados em vidro, tornam-se côncavos e rematam os alçados com as ruas Castilho e Braamcamp, compondo um diálogo abstrato. O novo corpo edificado aloja-se ao existente e o que resta da anterior matéria edificada é um plano vertical periférico, memória da antiga frontaria, transformada em substância de um jogo de contrastes, com a utilidade acrescida de identificar uma qualidade material e simbólica histórica (Figura 4).
Esta metodologia seria paliativa para a continuidade do que restava do edifício de Norte Júnior, face ao valor arquitetónico do edificio original, aparentemente era a “hipótese do momento”, conforme referia o diretor de serviços de licenciamento municipais em nota ao Instituto Português do Património Cultural (IPPC), constante do processo de licenciamento:
(…) O projeto tem em vista recuperar o edifício existente e simultaneamente encontrar uma solução que permita aos construtores alojar os ocupantes. A volumetria e a solução arquitetónica são, pois, consequência desta situação particular em que se procura um compromisso entre a rentabilidade do empreendimento e a possibilidade de conservação da fachada. Caso não seja aprovada esta proposta o prédio só terá uma solução, que é a sua demolição, em face ao seu estado de degradação, uma vez que esta Câmara não poderá vir a comportar a recuperação do imóvel. (…)32
A decisão de preservar as fachadas conciliava-se com o imóvel ser classificado pelo IPPC e corrigia um estudo anterior que previa a sua demolição, conforme refere o ofício da CML datado de 17/7/1985 (processo nº 2712/OB/1985), referindo que “o estudo está, porém, ultrapassado devido ao facto de o imóvel ter sido classificado pelo IPPC como de interesse público impondo-se por isso a sua conservação em lugar da demolição prevista no estudo.” A possibilidade do restauro ou reabilitação da tipologia original não era colocada dada o estado de conservação que supostamente o inviabilizava economicamente. Argumento e solução inauguram uma metodologia e a obra seria pioneira pela resposta à dialética entre a realidade do valor cultural e a dos custos associados à reabilitação. O projeto seria publicado em revistas da época e numa destas33, com a obra na capa, se afirma que ser “Uma Recuperação Exemplar” (Figura 5).
À época da construção deste edifício os instrumentos de gestão urbanísticas não estavam consolidados, o PDM seria promulgado em 1994 e esta obra viria a ser pioneira da interpretação da fachada por meio simbólico, independente de qualquer função estrutural e sobreponível por uma nova construção de máxima intervenção, que se mascarava atrás da frontaria original. Significativamente, em 2008 o Conselho Consultivo do IPPAR viria a retirar a classificação patrimonial do edifício34.
No cruzamento da rua Braamcamp com a rua Castilho confrontam-se o Heron-Castilho, o Edifício Castil (figura 6), projeto do atelier Conceição Silva (1968-1974, primeiro centro comercial de Lisboa) e o “Franjinhas”, de Nuno Teotónio Pereira e João Braula Reis (1966-1969, prémio Valmor 1971). Obras polémicas e contrastantes com a envolvente imediata. As três classificadas conjuntamente como obras de interesse público entre 2006 e 2008,35 sendo a classificação retirada ao Heron logo em 2008. As mais antigas oferecem programas comerciais nos pisos térreos, prolongando o espaço da cidade para o interior. Aumentam cérceas e volumetrias, afirmam linguagens contemporâneas e polémicas que resistiram ao tempo. A miscenização fachadista do Heron tem origem na classificação da fachada, mas o processo de retenção levaria a perda da classificação de interesse público, revelando o mal-estar provocado por esta metodologia.
O Teatro Éden (1990)
Com a entrada na última década de novecentos há uma reorganização da oferta comercial e cultural da cidade face ao impacto das grandes superfícies comerciais. Estes novos edifícios reproduziam no seu interior a própria cidade, oferecendo estacionamento, ruas interiores climatizadas e uma enorme variedade e densidade de oferta. Em Lisboa, estruturas como o Centro Comercial das Amoreiras (Tomás Taveira, 1985) marcariam uma época, integrando um vasto programa comercial, complementado com oferta de restauração e cinema. O shopping surgia como uma atividade sociocultural do urbanita pós-industrial e pressionava a obsolescência de espaços convencionais de cinema, como o Cineteatro Éden.
A própria atividade cultural é integrada na lógica do consumo e estas novas grandes estruturas alojam-se na periferia do centro, junto às grandes vias de transporte automóvel e ao longo dos canais pendulares do grande movimento diário entre casa e trabalho, alcançando deste modo uma larga maioria, porquanto refletem a falta de soluções do próprio centro histórico.
O Teatro projetado por Cassiano Branco entre 1929-193036 era um edifício emblemático da cidade e da Praça dos Restauradores. Em 1989 o programa de cineteatro já não era o mais atrativo para este local e a sua atualização colocava em causa o valor patrimonial do edifício. O projeto de alteração seria desenvolvido pelos arquitetos Frederico Valsassina e G. Pancreach entre 1990-1995 e a solução encontrada seria a manutenção da imagem base da fachada, alterando-se o seu interior, com um novo programa de hotelaria, deixando apenas a presença do átrio principal e escadarias originais de acesso às salas do cineteatro.
Não obstante o edifício estar classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1983, a proteção não foi suficiente para viabilizar a sua manutenção ou uma atualização funcional mais consentânea com a base edificada histórica. Mais uma vez estávamos num período antecessor à implementação do PDM de 1994 e face à alegada decadência física e funcional, juntou-se a ausência de perspetivas de aquisição pública do imóvel, tendo sido permitida a demolição praticamente integral do interior.
O projeto trataria de conciliar um apart-hotel com a fachada histórica do cineteatro, desenvolvendo o novo programa acima da cota do grande átrio e com uma volumetria em forma de semicírculo, aproveitando a profundidade existente e desmaterializando os antigos grandes planos para afixação da publicidade dos espetáculos em vazios, que permitem a revelação do novo programa em plano recuado (Figura 7).
Esta conjugação coloca em paralelo os dois momentos edificados históricos e concede uma maior complexidade à operação de retenção de fachada. Não obstante esta promessa de maior cumplicidade entre ambos os momentos edificados, o resultado seria a mumificação do antigo átrio, sem funcionalidade compatível, enquanto a fachada existente se manteria como um filtro simbólico do fachadismo como intervenção de compromisso literalmente cenográfico.
Por detrás da fachada o novo programa adaptou-se e acomodou-se, mantendo-se escuso atrás de um filtro de relevância histórica. No caso do Éden a operação de fachadismo recria uma situação de cidade-teatro e a nova construção se aloja dentro dos limites de uma fachada original, como boca de cena, o novo programa como o espaço interno do palco e a cidade como proscénio. Residindo aqui uma possibilidade de redenção arquitetónica, através do gesto teatral.
No Heron Castilho, 5 anos antes, a classificação da fachada, aliada ao aumento da área de pavimentos e ao desejo por um novo programa funcional e tecnológico originaram uma solução de convergência entre uma reminiscência da fachada de Norte Júnior e o edifício “espelhado” de uma modernidade nos anos 1970-1980. No Éden, as circunstâncias repetem-se, mas o incremento de área realiza-se pela densificação dos espaços vazios internos. Em ambos os casos, a classificação patrimonial acaba por se resumir ao elemento fachada, permitindo transformações internas radicais e a construção de uma nova totalidade que integra uma simplificação da fachada pré-existente, dando origem a uma nova forma de edificação.
Rosa Araújo 4 a 10 (2008)
No final da primeira década de 2000 a empresa Eurowindsor - Sociedade Imobiliária Lda, adquiriu os 3 imóveis na Rua Rosa Araújo com a intenção de os emparcelar num futuro hotel. Os edifícios pertenciam à “Lista dos imóveis e Conjuntos Edificados do Inventário Municipal do Património” do PDM de 1994 conforme o código 14.69 desse documento e estavam contidos na área do eminente PUALZE, o qual, embora ainda não estivesse em vigor à data, estabelecia uma base de influência para a apreciação pela CML e pelo Instituto Português do Património (IPPAR).
O projeto de arquitetura seria desenvolvido por Frederico Valsassina e proporia uma reconfiguração interior totalmente nova, viabilizando 98 quartos e um programa complementar exigente.37 Seria autorizado o nivelamento das cérceas pela moda da frente edificada do lado do arruamento onde se integra o novo edifício, limitada ao art.º 59º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), relativamente à linha reta de 45 graus do arruamento oposto.
Argumentando que as tipologias existentes forneciam uma difícil adaptação ao novo programa e de as modernas exigências de segurança colidirem com as características do sistema estrutural dos edifícios existentes, a apreciação o projeto aceitaria a manutenção da fachada e a intenção de ampliação, exigindo, no entanto, o recuo do volume da ampliação face ao plano da fachada existente.
Na negociação da aprovação foram ainda impostos princípios de concordância da nova edificação com os lotes adjacentes, designadamente “o alinhamento do plano da fachada principal do corpo superior pelo plano de fachada do confinante a poente - balanço das palas de sombreamento, o alinhamento máximo da fachada tardoz do conjunto pela profundidade pré-existente do edifício nº 8 a 10, nos pisos correspondentes ao volume pré-existente”, e ainda, “a garantia da concordância da empena com o edifício confinante a nascente, quer nos pisos correspondentes ao volume pré-existente quer à ampliação.”38 Estas exigências seriam colocadas pelo IPPAR e por Manuel Fernandes de Sá, autor do PUALZE, em 2008.
A proposta fazia ainda alusão à necessidade de resposta ao recente diploma sobre as condições de acessibilidades a pessoas com mobilidade condicionada (D.L. nº163 de 8 de agosto de 2006). Estas determinações, em conjunto com a necessidade de providenciar estacionamento, obrigariam a uma intervenção profunda e contrastante com a tipologia edificada existente. Neste cenário, a opção pela retenção da fachada era defendida na memória do projeto nos seguintes termos: “acentua-se o conforto entre o existente e o proposto conseguindo uma clareza na adaptação do programa ao conjunto. Cria-se uma espacialidade que se adapta às contingências definidas pelas formas actuais de “habitar” promovendo a revitalização dos edifícios e dando um novo enquadramento ao passado.”39
Esta argumentação sustenta que a revitalização dos edifícios se faria pela demolição integral do seu interior e que se justificava a manutenção simples da fachada, situação que foi comunicada como um processo de “revitalização” de um edifício existente. Este enquadramento confirmava o papel da antiga fachada como um elemento cenográfico. No entanto, a mesma fachada é transformada pela colocação de novos elementos, como por exemplo novos vãos, e com o acrescento de mais pisos.
O projeto desenvolvia um novo uso e aumentava a intensidade de ocupação, ampliando a área de construção inicial e densificando internamente a cidade (Figuras 8 e 9). A resposta às imposições de capacidade interna de estacionamento conduziria à construção de múltiplas caves, suscitando um tipo de operação de edificação que é tecnologicamente contrária ao tipo original, conduzindo a uma transformação total do interior, aumentando volume também sob o solo.
A esta imposição somavam-se as outras exigências regulamentares: as condições de acessibilidade a pessoas com mobilidade condicionada (2006), o regulamento das características de comportamento térmico dos edifícios (2006) e os regulamentos técnicos de segurança estrutural e contra incêndios (2008). A normativa impunha um conjunto de critérios de dimensionamento e compartimentação arquitetónicas que se tornaram difíceis de cumprir em edifícios existentes, independentemente do valor patrimonial ou da integração em conjunto de valor patrimonial.40 Aumentava a sensação de obsolescência das estruturas edificadas existentes e também os custos, de projeto e obra, das operações de reabilitação. Situação que condicionaria drasticamente os programas de reaproveitamento de edifícios existentes.
A soma de exigências urbanísticas e funcionais complexifica o contexto que havia enquadrado as operações do Heron Castilho e do Cineteatro Éden. Ao mesmo tempo, a recentrificação e o consequente aumento do valor do património edificado, alargou a conceção de valor patrimonial, conduzindo a interesses divergentes. O fachadismo é reforçado como solução de compromisso, que viabiliza uma aparente conciliação, de uma marca de unidade morfológica e arquitetónica, com uma refuncionalização e densificação desejadas.
Discussão e conclusões
“(…) o fachadismo não é apenas um fenómeno da requalificação das nossas cidades, mas o princípio de toda a política actual: dar ao passado a forma que nunca teve, para ocultar a verdadeira forma do presente.(…)”41
A perda tornou-se implausível. As operações de retenção de fachada, que se iniciaram em meados dos anos 1980, normalizaram-se e proliferaram-se para o resto da cidade dita histórica.
O fachadismo de retenção de fachada é ubíquo e capta o tempo que destrói, tornando-se igualmente memória e amnésia. A memória reduz-se a uma capa superficial, torna-se fachada e apenas aqueles que sofreram demolição, serão quotidianamente relembrados. Perturbadoramente, mistura e oculta significados, elabora sobre aparências e simplifica a noção de património. É uma ferramenta de reabilitação que permite qualquer coisa em qualquer lugar, desde que haja fachada para parasitar. Contornando a “bruxelização” geraram-se “frankensteins”42.
Emergindo destes paradoxos e incongruências, que glosam o duplo significado de fachadismo como operação de aparências, este artigo propõe uma revisitação histórica e analítica do contexto e evolução desta tipologia de intervenção. A técnica de retenção de fachada é uma variante do fachadismo que no caso da cidade de Lisboa seria utilizada a partir da segunda metade da década de 1980.
Propomos quatro razões fundamentais para a disseminação da retenção de fachada:
Uma concomitância com a cultura pós-moderna, de reação à abstração e aos cânones linguísticos e de verdade material do moderno. A critica ao moderno advém igualmente de uma revalorização do individual e do patrimonial. Situação explorada em práticas eruditas e polémicas como a casa dos Bicos ou a reconstrução do Chiado, após o incêndio de 1988.
Como efeito colateral do avanço de disposições normativas essencialmente técnicas e higienistas que minimizam e simplificam as implicações culturais. Referimo-nos ao resumo da proteção patrimonial ao imóvel em bom estado de conservação, conduzindo em múltiplas demolições de interiores, mantendo como reminiscência patrimonial apenas a frontaria edificada, sendo, no entanto, mesma essa alterada em elementos considerados secundários, como vãos ou planos de cobertura. Esta redução seria alimentada por sucessivas disposições normativas, fossem as disposições relativas ao urbanismo, à construção e aos programas funcionais, cujas exigências de segurança e de parâmetros funcionais complementares, desde o estacionamento a áreas funcionais interiores, levantaria barreiras intransponíveis para a manutenção de tipologias edificadas pré-existentes.
Decorrente de um reconhecimento progressivo do valor patrimonial da cidade antiga como um todo, cujo reconhecimento corre paralelo ao alargamento da conceção cultural de património, situação exemplificada na intervenção de Álvaro Siza no Chiado. Este valor cultural transforma-se, também progressivamente, em valor económico, mediante a carga simbólica social que o valor patrimonial lhe confere, cuja intensidade crescerá proporcionalmente ao regresso do investimento ao centro da cidade, sobretudo após a década de 1990 e o exemplo da Expo’98, culminando com o grande desenvolvimento do turismo e da marca Lisboa no circuito do turismo urbano internacional.
O pragmatismo social e económico da resposta. A retenção de fachada, beneficia do momento cultural, do enquadramento legal e de uma apetência social, operando sobre uma ideia superficial de património, alcança uma cascata de benefícios, conciliando o valor simbólico deste com o conforto de uma casa nova, dotada de estacionamento privado, construída em “placa de betão” e com tipologias estandardizadas que permitem áreas úteis generosas. Mais ainda, a simplificação da noção de património flexibiliza a gestão urbana e liberta a normativa da construção para a universalização das imposições de nova construção. O resumo do valor e da integração urbana à superficialidade da fachada apazigua operações de densificação, onde a retenção fachadista permite um aparente compromisso entre a ambição de preservação da cidade histórica e a vontade de maximização imobiliária. Situação que num primeiro cenário de expansão suburbana e de estagnação do centro histórico se afigurava socialmente aceitável.
Neste contexto, assiste-se como que a um duplo jogo ilusório e autofágico, em que um entendimento limitado do valor patrimonial alimenta intervenções de fachada que funcionam como uma capa superficial que oculta uma desvirtuação morfológica da cidade.
A consagração da retenção de fachada pela gestão urbana da cidade ocorre a partir do PDM de 1994, quando se definem zonas históricas e valores patrimoniais sem imposição de manutenção para além da fachada, aliada ao condicionamento da densificação do existente à disponibilização de estacionamento interno, situação que naturalizava a solução de retenção, especialmente em reconversões funcionais mais profundas.
Se entendermos a cidade como uma metáfora da democracia (Borja, 2009), este fachadismo de retenção pode ser interpretado como a solução pragmática, de concertação de interesses, que resulta de um posicionamento de múltiplas circunstâncias.
Ao mesmo tempo, resulta ambígua e insuficiente, derivada dos equívocos e simplificações que a suportam e dos resultados morfológicos que produz. Sobretudo quando generalizada e densificada, a forma urbana e arquitetónica é naturalmente ambígua e corresponde à duplicidade da própria estrutura conceptual de suporte. Com a passagem do século o reconhecimento desta ambivalência e insuficiência aparenta ter crescido. Mas o fenómeno persiste, porque as condições culturais, sociais e económicas se mantêm.
Entre os anos 1980 e o momento atual o enquadramento destas operações em Lisboa evoluiu e não necessariamente num sentido de clarificação dos problemas apontados. Propomos, provisoriamente, dois momentos cronológicos que justificam esta asserção:
Um fachadismo pré-normativo, que se inicia em meados dos anos 1980 e que antecede a publicação do PDM de 1994. Neste momento, a retenção de fachada acontece em casos singulares e deriva de uma experimentação disciplinar, que elabora com uma liberdade pós-moderna sobre as condições da construção e sobre a noção de património. Estas experiências apresentam uma aparente convergência entre a imagem da cidade histórica e a regeneração tipológica e tecnológica.
Um fachadismo pós-normativo, que se desenvolve a partir do PDM de 1994 e que terá vários desenvolvimentos, que acompanham a cristalização do sistema normativo da construção e da urbanização no seu todo. O fachadismo torna-se desejável para operações de reabilitação no centro histórico, dado que os requisitos para alteração funcional e aumento de densidade conduzem à demolição do interior e à preservação da frontaria.
Entre os efeitos deste fenómeno temos vindo a destacar que a simplificação da noção de património não apenas confere uma falsa sensação de manutenção de qualidades morfológicas, nomeadamente em situações de densificação, como resulta numa menor consciência da parte da própria macroestrutura do quadro normativo, em que a preponderância do modelo de nova construção conduz, de modo mais ou menos indireto, à inevitabilidade da retenção de fachada.
O fenómeno persiste e as situações de nova construção, semioculta atrás do plano de fachada existente, estabelece uma relação simbiótica de hospedeiro e parasita que lhe confere uma conotação perturbadora. Por outro lado, ao mesmo tempo, este fazer institui uma tipologia e oferece declinações morfológicas, que surgem de circunstâncias particulares de cada operação e da qualidade da arquitetura. O estudo detalhado e qualitativo desta nova tipologia urbana está ainda no início.