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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.au23 Lisboa out. 2023  Epub 09-Out-2023

https://doi.org/10.15847/cct.29247 

ARTIGO ORIGINAL

Viver (n)um “bairro precário”. Problematização a partir de três trajectórias habitacionais

Living (in) a “precarious neighbourhood”. Questioning based on three housing trajectories

11Centro de Arquitectura, Urbanismo e Design, Universidade de Lisboa, Portugal. E-mail: jcarolino@outlook.pt


Resumo

O presente artigo parte de um desafio para tratar o tema da habitação, tendo por referência a população afrodescendente em Portugal. Não havendo uma delimitação absoluta, nem contabilização, dessa população, o que se sabe é que esta está sobre-representada entre os residentes de bairros marcados pela precariedade habitacional. O texto que se segue foca-se no hiato entre as vidas desses habitantes e as formas de conhecer e agir sobre as questões habitacionais que os afectam. Fá-lo cruzando o tema com a história e experiências de pessoas ligadas à Cova da Moura, bairro da Área Metropolitana de Lisboa predominantemente representado como um enclave migrante africano e associado a condições de precariedade habitacional. Considera três casos pessoais exemplificativos, que remetem para a vida de famílias ligadas a trânsitos que reúnem Cabo Verde e Portugal num mesmo quadro de experiência e referência. O artigo propõe-se ser útil para pensar formas mais democráticas de equacionar as questões relativas a bairros “alterizados” (othered) da Área Metropolitana de Lisboa e de imaginar caminhos para com elas lidar.

Palavras-chave: habitação; trajectórias habitacionais; migrantes cabo-verdianos; Cova da Moura; Amadora

Abstract

This article addresses the theme of housing for Afro-Portuguese populations, with a focus on Cova da Moura, a Lisbon neighbourhood often portrayed as an African migrant enclave and its housing precarity. It draws on three biographies that illustrate the life experiences of families with migrant trajectories that connect them to both Cape Verde and Portugal. The article aims to show the complexity of realities that are often simplistically considered as situations of linear poverty and disempowerment. In particular, it aims to contribute to more democratic ways of considering different issues regarding ‘othered’ neighbourhoods in the Lisbon Metropolitan Area and devising ways to address them.

Keywords: housing; housing trajectories; Cape-Verdean migrants; Cova da Moura; Amadora

Introdução

8 de Setembro de 2021. No âmbito da campanha para as eleições autárquicas, realiza-se na televisão pública, em horário nobre, o debate entre candidatos para a Câmara Municipal da Amadora. Após uma breve caracterização do concelho, o moderador lança a primeira questão, dirigida à presidente do executivo, que seria reeleita:

“Carla Tavares, começo por si. Há quatro anos (...) falava na continuação do trabalho que vinha de trás, nomeadamente, e estou a citá-la, ‘na erradicação1 dos bairros degradados’. Este continua a ser um tema central no debate na Amadora. Isso significa que falhou nessa tarefa?”2

Não apenas no arranque, mas também ao longo de todo o debate televisivo, a habitação ocupa lugar de grande destaque, traduzindo o modo como o tema voltou à agenda das preocupações públicas. Com ela, muito do tempo televisivo reservado aos candidatos versou sobre a questão dos chamados bairros degradados e, em particular, sobre o Bairro da Cova da Moura. Este facto não caiu bem a alguns participantes, que acabaram por protestar, afirmando que “a Amadora não é a Cova da Moura”. Tal afirmação tem um sentido particular, dada a forma como concelho e bairro constituem casos paradigmáticos na expansão de Lisboa.

O concelho da Amadora, o subúrbio/’dormitório’ mais emblemático de Lisboa nas décadas de 1960 e 1970 (Nunes, 2012, Gonçalves et al., 2015), conheceu o estigma do crescimento desordenado, efeito de uma acelerada e intensa transformação do território, do rápido loteamento e edificação nas áreas disponíveis e do surgimento e expansão de vários bairros clandestinos marcados pela precariedade. Nas últimas décadas foi alvo de um importante esforço de reconfiguração e valorização urbana, procurando distanciar-se da identidade anterior (Gonçalves et al., 2015).

Quanto ao Bairro da Cova da Moura, muito se escreveu já sobre ele (entre outros, Horta, 2008; Raposo, 2010; Ascensão, 2013; Wildemeersch e Lages, 2018; Jorge e Carolino, 2019). Contrariamente a bairros afins sujeitos a processos de invisibilização, a Cova da Moura goza de particular visibilidade, como patente no debate autárquico referido na abertura deste artigo. O bairro foi, ao longo dos anos, alvo de um processo de emblematização enquanto enclave migrante e espaço de desvio e resistência, ganhando protagonismo não apenas pela oposição à demolição do edificado e realojamento dos habitantes (Raposo, 2010); mas também pela luta contra a violência policial e pela política cultural desenvolvida ao longo de anos pela Associação Cultural Moinho da Juventude.3 Designado já como a “décima primeira ilha de Cabo Verde”, viu a sua identidade fortemente associada àquele arquipélago, sendo um alvo fortemente mediatizado dos processos de circunscrição e alterização (othering) das comunidades migrantes que participaram da transformação da capital portuguesa.

Estando estabelecida que é grande a visibilidade, mais do que a invisibilidade, da Cova da Moura, que efeito tem ela nas vidas dos seus habitantes?

O presente artigo lida com a questão habitacional e urbana enquanto esferas públicas de actuação que têm os seus próprios efeitos na forma como conhecemos e agimos sobre a realidade. Foca-se em três histórias de vida e trajectórias habitacionais de pessoas ligadas de formas diferentes ao Bairro da Cova da Moura, relacionando-as com os desenvolvimentos relativos à actuação pública e, em particular, ao modo de conhecer que lhe está associado. Ao fazê-lo, propõe-se dar conta de como o processo de delimitação do bairro enquanto “espaço outro”, nos moldes acimas identificados, alimenta um hiato significativo entre o olhar que orienta a res publica e as vidas de quem habita este território e outros de características afins. Argumentar-se-á que é sobre esses habitantes que cai o ónus de fazer coincidir as narrativas oficiais com as suas próprias circunstâncias, facto que tem consequências para si, designadamente ao instaurar situações de incumprimento ou ilegalidade (na ótica da política pública).

Este artigo junta-se a outros que problematizam a representação dominante da Cova da Moura como “um espaço descontínuo do resto da cidade, à margem da legalidade” (Almada, 2020, p. 37), desconhecido e receado por quem é “de fora”. Procura, adicionalmente, trazer elementos da realidade a que tal visibilidade não permite atender. Focando-se sobre três trajectórias habitacionais, em particular, o artigo propõe-se ser útil a formas mais democráticas de equacionar as questões relativas a bairros da Área Metropolitana de Lisboa cuja inscrição no imaginário público se faz pela sua alteridade.

O texto resultou de um desafio para tratar a questão do acesso à habitação por parte de populações mais vulneráveis, como é o caso de comunidades afrodescendentes com menores rendimentos. Fizemo-lo através do enfoque num caso que, como mostrámos de início, ganhou ao longo dos anos uma importância que o projecta para lá de si mesmo, apropriado pelo discurso público para fazer referência ao modo estigmatizante, rápido e desordenado como cresceu o Concelho da Amadora. Hoje, o concelho quer-se transformado, tendo para tal de erradicar (termo usado no debate autárquico) os núcleos e bairros de habitação precária.

Uma vez que em Portugal não se incluem dados étnico raciais no recenseamento da população, não dispomos de informação específica sobre a situação habitacional em que se encontra a população afrodescendente, um termo que por outro lado não deixa de suscitar debate quanto à sua delimitação.4 Existem, em alternativa, aproximações. É o caso da análise de dados relativos a migrantes, onde se encontra informação sobre naturalidade e residência, bem como sobre a situação habitacional. Por inferência, atendendo ao que se sabe sobre a evolução dos padrões habitacionais na Área Metropolitana de Lisboa, é possível concluir que os afrodescendentes tendem a ocupar “uma posição relativamente marginal no espaço urbano” (Taviani, 2019, p. 73), sendo predominante a localização de população migrante na periferia da AML, inicialmente na margem norte, seguindo-se o crescimento da sua importância na margem sul.5

O que se sabe com mais clareza, em contrapartida, é que, ao atendermos ao universo da população em situação de precariedade habitacional, os migrantes com origem nos PALOP e os seus descendentes estão entre as categorias de habitantes que aparecem sistematicamente sobre-representados em recenseamentos e estudos focados na segregação socio-espacial e em situações de maior precariedade (Malheiros e Vala, 2004). Tal tem sido explicado como consequência de dinâmicas económicas e sociodemográficas excludentes, das próprias redes de solidariedade entre migrantes, bem como pela exclusão socio-territorial resultante do racismo estrutural (Alves, 2022). Sendo muitas vezes referido e predominantemente conhecido como um enclave migrante, o Bairro da Cova da Moura aparece como caso paradigmático a este título. A argumentação é desenvolvida a partir de referências às vidas e às trajectórias habitacionais de três pessoas cujo perfil resulta exemplificativo a partir de pesquisa etnográfica. Atende especificamente à forma como as pessoas que o habitam - numa acepção lata do termo - procuram a melhor vida possível dentro de constrangimentos de tipo estrutural, numa cidade desigual (Weeks, 2013). Atendendo a que muito se escreveu já sobre o lugar em questão, pouco nos deteremos aqui sobre a contextualização de um bairro que nasceu da ocupação de solos rústicos e se consolidou como lugar de habitação no pós-25 de Abril. Remetemos o leitor para o que está já publicado (nomeadamente, Horta, 2008; Raposo, 2010; Ascensão, 2013; Wildemeersch e Lages, 2018; Jorge e Carolino, 2019).

1. Da casa em Portugal ao bairro “outro”

João R. chegou a Lisboa algum tempo após a independência em São Tomé e Príncipe. Não era a primeira vez que vinha a Portugal, à então metrópole colonial, por questões de saúde e de negócio. Com o 25 de Abril e a mudança de poder em São Tomé decidiu estabelecer-se no país. Viajou em 1977 com a intenção de, depois de organizar a vida, mandar vir os filhos e a esposa, que ficaram em São Tomé.

A sua escolha não foi ditada pela necessidade. Originário de Santo Antão, em Cabo Verde, fora muito jovem trabalhar para uma roça em São Tomé e Príncipe. Naquele país, o facto de ter alguma escolaridade e a sorte de tecer relações favoráveis proporcionaram uma transição para o comércio, onde veio a enriquecer consideravelmente.

Depois da independência, e ao planear mudar-se para Portugal, encontrou modo de transferir para este país parte da riqueza acumulada. Ao chegar a Lisboa, João R. vinha em busca de quantias que adiantara a dezenas de pessoas, custeando-lhes as passagens para Portugal. Foi em busca desses dinheiros que, em 1977, foi dar à Cova da Moura, onde encontrou uma comadre, que lhe sugeriu que construísse ali a sua casa e o pôs em contacto com um português que estava na posse de terra localizada na vizinhança da sua própria casa. João R. instalou-se, assim, na Rua Principal e iniciou o processo de construção do que viria a ser um edifício de 3 pisos.

João R. orgulha-se de que a sua casa se encontre entre as que estão bem construídas. Descreve com prazer os cuidados que dedicou a assegurar uma construção “como deve ser”: tendo entregado a obra a um pedreiro experiente, um vizinho madeirense, atribuiu a si mesmo a missão de acompanhar construções em curso no conjunto residencial da Reboleira (Nunes, s.d.), de onde “tirava ideias”, que vinha depois aplicar na construção da própria casa. Tal ilustra uma relação ambicionada entre o seu próprio projecto pessoal e a modernidade que associara à capital portuguesa. A construção da sua casa constitui uma das instâncias por via das quais João R. se dá a conhecer. Numa leitura sensível a hierarquias locais, distancia-se daqueles que executam o trabalho e, mais ainda, dos que constroem, na sua visão, “sem regras”.

Chegado numa fase de plena construção, cedo conheceu Ilídio C., que viria a ser o dirigente da Comissão de Moradores do Bairro da Cova da Moura e político activamente envolvido no poder local (Horta, 2008). João R. fará parte da Comissão na fase em que esta é mais activa, enquanto a mediadora privilegiada entre habitantes e o poder público, em arranjos informais que possibilitaram a primeira construção de infraestruturas (água, saneamento, alcatroamento e acesso à rede de eletricidade) (Jorge e Carolino, 2019). É, então, grande a convicção de que o bairro caminha para a legalização, propiciada pela interlocução cultivada com o poder público.

As circunstâncias narradas não se revestem, no final da década de 1980, de um carácter excepcional. Era então dominante a preocupação abertamente sociopolítica com a questão do então chamados clandestinos, sendo a ênfase posta na habitação e no acesso à cidade, como dimensões de cidadania (Hibou, 2011). A colaboração do poder autárquico com organizações locais no esforço de melhoria das condições de vida nestes bairros era parte de um ambiente institucional de certa porosidade entre legalidade e ilegalidade (Holston apud Hibou, 2011). Expressivamente, no caso da Cova da Moura, uma das últimas áreas do bairro a ser ocupada com construções foi objecto de loteamento informal6, que terá sido realizado com o conhecimento aquiescente da Junta de Freguesia (Jorge e Carolino, 2019). De acordo com testemunhas locais, houve, também, dinheiros públicos atribuídos a famílias sem habitação, na sequência de uma candidatura para construir na Cova da Moura.7 O próprio Estado chegou a promover processos de realojamento de algumas famílias em habitações disponíveis no bairro.

Relatos relativos a essa época dão conta da convicção de que se caminhava para a integração do bairro emergente no resto da cidade, nomeadamente com vista à sua legalização:

“Desde o início se falava na legalização do bairro. Aliás, eu não vinha para cá morar se isso na altura não estivesse falado. Nós vivíamos noutro bairro e, na altura, os meus pais tinham muitos amigos em Angola que vieram morar para aqui, que moram aqui. Na altura essas pessoas disseram ao meu pai que o bairro ia ser legalizado, estava em fase de legalização, por aí fora. E nasceu a vinda para cá, foi por causa disso. Nós viemos com a ideia de que o bairro ia ser legalizado. Se não, não tínhamos vindo, não era?” (Entrevista a dirigente associativo, Fevereiro de 2012)

Os primeiros estudos sobre o bairro (em 1977 e 1983) cedo identificam e estabilizam tipologias construtivas, que serão posteriormente adoptadas de forma acrítica, na interpretação da diversidade material e sociocultural do bairro. Atenta à não correspondência entre o observado e a legislação em vigor, uma visão dicotómica do construído sobrepõe-se ao entendimento da variedade. Leituras de ênfase normativa fixam, igualmente, a natureza dos ocupantes:

“(...) de um modo geral, ‘retornados’ das ex-colónias, que até aí viviam em pensões a expensas do IARN”, surgindo “um pouco mais tarde (...) o grande contingente de população cabo-verdiana imigrante, atualmente residente no bairro.” (Craveiro et al, 1983, p.15)

Estas dicotomias, de que o bairro não mais se libertará, descartam ambivalências e experiências como a de João R., cabo-verdiano abastado interessado em fazer parte da construção de um bairro legal, que fizesse jus à modernidade ambicionada. A oposição retornados (portugueses) versus imigrantes servirá, nos anos seguintes, a narrativa de uma crescente africanização e, com ela, a crescente atribuição de alteridade e desordem ao enclave migrante. Ao longo da década de 1990 e após ela, vai-se consolidando a visão do Bairro da Cova da Moura como área dotada de um estatuto especial, que a separa inequivocamente da sua envolvente e do território a que pertence, como bem expresso no debate autárquico com que iniciei o argumento.

2. Um enclave migrante?

Na sua pesquisa etnográfica com peixeiras cabo-verdianas na lota de Lisboa, Fikes (2009) dá conta de como, a partir da década de 1990, os encontros e desencontros quotidianos entre pessoas com práticas laborais e de consumo comuns serão cada vez mais mediados por novas regulações, que as redefinem em dois tipos distintos de sujeitos. Os raides policiais sobre as peixeiras que vendem na rua, e que passam a ser um episódio familiar no quotidiano lisboeta do Cais do Sodré, exemplificam de forma paradigmática a nova realidade. Ao longo das décadas de 1980 e 1990 - à medida que Portugal se volta para a Europa - estabelece-se com firmeza uma nova dicotomia, a dicotomia cidadão/migrante que introduzirá alterações importantes nas percepções e comportamentos. Fikes dá conta de como novos dispositivos institucionais levam os indivíduos a repensar-se e valorizar-se enquanto auto-responsáveis pela obediência à Lei. Nesse processo erigem distâncias entre si próprios e aqueles que passam a estar sujeitos a fenómenos de ilegalização, do outro lado da fronteira traçada pelas regulações em diferentes esferas da vida em sociedade (Fikes, 2009, p. 153). A lei da nacionalidade de 1981, que deixa de reconhecer como portugueses os filhos de migrantes “em situação irregular” (sem autorização de residência) é disso um bom exemplo.

Como argumenta a mesma autora, tal acontece num processo relacional em que “(h)abitar a cidadania enquanto categoria social acontece por causa de, e não apesar de, alteridades tais como a do estatuto migrante” (2009, p. 163). Esta problematização encontra eco no processo de ilegalização dos bairros clandestinos (Castela, p. 2011). Nas experiências relatadas por habitantes da Cova da Moura, o aprofundar da alteridade não é apenas de sentido repressivo. Uma certa romantização da diferença cultural leva a que na nova Lisboa europeia, revelada a si mesma em acontecimentos como a Expo 98, haja lugar para acolher e celebrar a diferença. Por ocasião da Expo 98, os grupos culturais Finka Pé (batuque) e Kola San Jon, ligados à Associação Cultural Moinho da Juventude, participam no grande acontecimento urbano mostrando a sua cultura - não enquanto portugueses ou lisboetas, mas enquanto cabo-verdianos.

Para quem reside ou de outro modo habita o bairro, a Cova da Moura não se lê e vive a partir da dicotomia projectada pelo poder público8, sendo antes um lugar multifacetado, parte de uma ampla rede de lugares e relações, na cidade metropolitana e para além dela. Vejamos a experiência de Celeste, que aqui exemplifica experiências comuns entre quem frequenta assiduamente a Cova da Moura, sem lá morar. À semelhança do que estamos habituados a considerar para outras zonas da cidade, menos demarcadas e singularizadas pela atenção ao que as distingue, a vida desenrola-se em diferentes planos.

Celeste veio para Portugal em 2000, quando a sua mãe, chegada há alguns meses, lhe conseguiu um contrato de trabalho. Trabalhou sete anos como interna (vivendo em casa da patroa) e cedo procurou comprar uma casa para si, contando com o apoio da sua empregadora. Forçada a adiar o projecto por uns anos, começou, entretanto, a trabalhar como cozinheira num conhecido local turístico do centro de Lisboa. Alugou então uma casa perto da mãe, não muito longe da Cova da Moura. Quando a mãe emigrou para o Luxemburgo, ficou responsável pela casa dela, mudando-se para lá com o filho mais velho.

Quando conheci Celeste, ela passava grande parte do seu tempo de lazer na Cova da Moura, bairro que frequenta desde que chegou a Portugal, por visitar amiúde uma irmã de sua mãe que aí construiu casa há vários anos. Era ali que vivia o seu namorado, por isso dividia os dias entre a casa da mãe, onde residia, a Baixa lisboeta, onde trabalha até hoje como responsável de cozinha, e o bairro, que não ficava longe de casa.

Ao nascerem os seus filhos mais novos, Celeste retomou o sonho de ter habitação própria. A situação profissional estável e uma rede de relações favorável permitiram-lhe aceder a crédito bancário e adquirir um apartamento. Mudou-se então para a Margem Sul com o agora seu companheiro, mas não deixou de frequentar a Cova da Moura. Tornou-se então mais evidente como a rede de amizades, que cultivou no bairro ao longo dos anos, proporcionava recursos que se revelaram cruciais quando se tornou difícil conciliar o trabalho com o cuidado dos filhos. Nos primeiros anos, em vez de circular directamente entre o centro de Lisboa e a Margem Sul, Celeste passava pela Cova da Moura, onde as crianças ficavam não apenas na ama e jardim de infância, mas também com as madrinhas e outras amigas, quando fosse necessário deixá-las até mais tarde.

A experiência de Celeste dá conta de como se foi desenhando e tornando possível um percurso habitacional, cuja viabilidade passou por mobilizar redes de relações. A casa constituiu um sonho acalentado desde há muito, garante de autonomia, de um maior controlo face a imponderáveis e de maior realização pessoal (“fazer as coisas a meu jeito”). É, vale a pena dizê-lo, um recurso importante também no sentido em que, através dela, a sua detentora pode apoiar outros nos seus percursos. Quando a casa o permite, é possível encontrar-se não apenas o agregado familiar que a habita em permanência, ou faz dela a sua moradia de referência, mas também familiares, amigos e outras relações, que com ela contam nos seus trânsitos.9 Gradualmente, Celeste foi precisando de recorrer menos às suas amigas para assegurar o cuidado dos filhos. No entanto, a Cova da Moura permaneceu, até hoje, um lugar de convivência e lazer ao fim-de-semana, para rever amigas e família, almoçar ou jantar e frequentar os lugares de música ao vivo.10

Enquanto lugar de relações, história e identidade (Augé, apudJorge e Carolino, 2019) o Bairro da Cova da Moura faz parte da vida de Celeste, não apenas pelo tipo de convivência que ali encontra, actualizando a ligação afectiva a Cabo Verde, mas também pelo tipo de recursos que proporciona. Não é, no entanto, a experiência de um enclave: os seus horizontes de significado convocam São Vicente e a cidade do Mindelo11, mas tal faz parte de estar em Lisboa sem que se imponham dissonâncias.

A espacialidade translocal que caracteriza a Cova da Moura é parte das relações através das quais as pessoas tecem proximidades à distância (Lobo, 2012), unindo num mesmo universo de sentidos, e de práticas, diferentes geografias, que vão desde Lisboa a outros países na Europa e, através do Atlântico, até Cabo Verde, o Brasil e os Estados Unidos. Não se trata uma espacialidade que subtraia quem a protagoniza ao aqui-e-agora da cidade vivida. Podemos experimentá-lo participando tanto numa noite de música ao vivo no bairro quanto do concerto de Gil Semedo, um conhecido artista cabo-verdiano que celebra 30 anos de carreira no Coliseu dos Recreios.

Há um desencontro entre tais experiências espaciais e relacionais, vividas no bairro e para além dele, e as narrativas que informam políticas de ênfase territorial, nas quais a identificação de uma realidade “outra”, estranha à Lisboa “comum”, vai a par da sua caracterização como realidade “problemática”, que urge “resolver” ou, na linguagem retomada um tanto anacronicamente pelo debate autárquico introduzido no início deste artigo, uma realidade a erradicar. Consideremos, de seguida, a mais recente política de habitação, atendendo à experiência de alguém que se inclui num dos “públicos-alvo” definidos. Vejamos como tal se opera e com que efeitos.

3. Ser e aparecer. Vencendo o hiato

Como já está bem explicado noutros textos do volume em que este artigo se inclui, a segunda década de 2000 vê surgir em Portugal uma “nova geração de políticas de habitação”, que inclui, entre outros, o Programa “Primeiro Direito” (Jorge, 2022). No que concerne bairros e famílias em situação de maior precariedade, o Programa Primeiro Direito apresentou-se como uma boa notícia. Na Cova da Moura, ele gerou mesmo uma renovada esperança, levando a sua Comissão de Bairro a procurar perceber junto do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) e da Câmara Municipal da Amadora de que forma este novo programa poderia relançar a dinâmica conseguida com a anterior Iniciativa Bairros Críticos (Raposo, 2010; Jorge e Carolino, 2019).

Uma peça essencial à execução do Programa Primeiro Direito é a elaboração, por cada autarquia, de uma Estratégia Local de Habitação (Jorge, 2022). Na sua ELH, a Câmara Municipal da Amadora identifica a “persistência de núcleos e bairros de construção precária e ilegal, funcionalmente desadequados”, que considera “o principal fator (...) de grandes assimetrias territoriais no que respeita à qualidade residencial e do habitat, propiciando a manutenção de situações de pobreza e de segregação territorial.” (Câmara Municipal da Amadora, 2021, p. 14). Não obstante as orientações inovadoras de que o Programa Primeiro Direito se reivindica, a autarquia da Amadora continua a ter como principal prioridade a eliminação ou erradicação de núcleos e bairros de habitação precária e ilegal e a prever a necessidade de soluções de realojamento de grande dimensão. Quanto à Cova da Moura, é considerada “(...) um dos bairros de habitação precária e ocupação ilegal mais notórios da Área Metropolitana de Lisboa, de grande singularidade devido à sua dimensão e grau de consolidação” (2021, p. 16., sendo todas as famílias aí residentes (cerca de 1600 famílias) contabilizadas como estando “em situação de habitação indigna”. Reforçando esta visão simplista, linear, de um bairro caracterizado por grande diversidade de situações, a ELH dá ainda enfaticamente conta de que 26% dos pedidos de habitação que chegaram à Câmara Municipal da Amadora são provenientes do Bairro da Cova da Moura. Patrícia, que reside na Cova da Moura há quase três décadas, é uma das habitantes que fez chegar à autarquia um pedido de habitação. Atendamos ao seu caso.

Patrícia reside, com os seus filhos, num primeiro andar de três assoalhadas, pelo qual paga uma renda de 250€. “Pediu uma casa à Câmara” há algum tempo e tem esperanças de que 2023 traga boas notícias quanto a este assunto, porque soube que outras pessoas que fizeram o pedido estão a receber casas na Linha de Sintra.

Sentamo-nos para conversar, junto da sua bebé que dorme. Pergunto-lhe porque resolveu pedir uma casa à Câmara e Patrícia explica-me que a rua onde mora é muito barulhenta. Há também a questão do sr. Joaquim, morador no segundo andar, que para aceder à sua casa tem de entrar pela porta de Patrícia e percorrer o corredor, até às escadas que o conduzem ao segundo andar. A minha entrevistada sente que não pode estar à vontade na sua própria casa. A relação com sr. Joaquim é cordial, quase familiar, mas Patrícia sente falta de maior privacidade.

A nossa conversa orienta-se para as circunstâncias que a trouxeram ao bairro. Quando veio de Cabo Verde com a mãe, ficaram alojadas em casa do seu tio (irmão da mãe), na Margem Sul. Este não pôde, no entanto, mantê-las muito tempo na sua própria casa e acabaram por ver-se na circunstância de precisar de encontrar rapidamente onde ficar. O futuro companheiro da mãe conseguiu que familiares seus lhes alugassem um quarto, no mesmo edifício em que agora habita. Algum tempo depois conheceu Manuel, numa festa em casa dos seus senhorios. Apaixonou-se e já não regressou com a mãe à Margem Sul, onde esta alugou uma casa para si. Foi morar com Manuel, que arrendava uma casa no bairro. Tiveram duas filhas e, numa situação de maior estabilidade, Patrícia conseguiu trazer a filha mais velha de Cabo Verde. Mudaram para uma casa maior, também na Cova da Moura. Separaram-se alguns anos depois, altura em que Patrícia regressou ao edifício onde morara inicialmente, alugando agora todo o primeiro andar à família do seu padrasto.

Pensando em todos os anos que se passaram, constatamos rindo a que ponto a Cova da Moura exerce uma forte atracção. “Aqui todos se conhecem, quando saio à rua começo logo a encontrar pessoas”, diz-me Patrícia. Retomo, depois, a questão inicial: “Se conseguisses uma casa nas mesmas condições, exactamente, preferias que a casa fosse aqui, no bairro, ou noutro lugar?” Desta vez, Patrícia, no ânimo da nossa conversa, diz com vivacidade: “Aqui, claro! Aqui estamos perto de tudo, do Centro de Saúde, da escola, da farmácia, do supermercado, da Junta de Freguesia, dos transportes!” As suas palavras contrastam com os dias em que, mais aborrecida, afirma enfaticamente que quer sair do Bairro, ir viver noutro lugar. Explica-me depois que aqui nunca conseguirá uma renda como a que pagará pela casa “dada pela Câmara”. Patrícia ficou desempregada na altura da crise pandémica, quando a pastelaria onde trabalhava fechou. A sua filha mais nova tem meses e, portanto, para já, mantém-se em casa, gerindo criteriosamente um orçamento familiar limitado, para o qual são fundamentais as prestações sociais destinadas a apoiá-la na condição de mãe que habita só, com filhos menores a seu cargo.12

O caso de Patrícia mostra-nos que o que podemos ler como um dado objectivo, quanto à vontade expressa pelo pedido formulado de uma casa, assenta numa reflexão sobre recursos e constrangimentos. Para aceder a uma casa e garantir uma renda comportável, Patrícia adequa-se ao que se lhe apresenta como viável. A forma como se organiza a questão pública dita os termos da questão: embora a minha entrevistada não tenha uma resposta única e permanente - descontextualizada - para a questão da casa, os procedimentos públicos adoptados para conhecer têm os seus próprios efeitos. No caso da Cova da Moura, a vontade dos moradores tem sido auscultada e interpretada, ao longo dos anos, a partir de uma escolha relativamente linear entre ficar no bairro ou partir, prescindindo de um conhecimento mais aprofundado sobre as situações vividas. Facilmente vislumbramos os limites de uma “cultura do inquérito”,13 que faz apelo à racionalidade do indivíduo como consumidor14, não abarcando o caracter multifacetado e ambivalente de escolhas realizadas de forma contextualizada. A referência, feita pela ELH-Amadora, aos pedidos de habitação que chegaram ao município, ilustra expressivamente como ligar as medidas do poder público à “vontade dos moradores”.

Há a considerar, igualmente, o hiato entre as noções de família e habitação plasmadas nos documentos oficiais - o modelo conjugal clássico em face do qual a monoparentalidade aparece como um desvio - e a relativa fluidez conjugal e familiar que caracteriza a vida contemporânea e que se cruza, neste caso, com a tendência para a matrifocalidade documentada por Lobo (2012) em Cabo Verde. Quando recenseamentos vários põem em evidência o grande número de agregados domésticos exclusivamente compostos por mães e filhos, tal hiato é interpretado como um testemunho de situações de risco e desempoderamento; interpretação que se distancia da força atribuída, em Cabo Verde, ao papel da mãe. Sem negar o quanto pode ser difícil a vida de mães que se responsabilizam sozinhas por criar os seus filhos (não é esse o debate que pretendo aqui fazer), há que ter em atenção que tal normatividade é, sem si mesma, criadora de realidade, induzindo processos de subjectivação que são, em si mesmos, desempoderadores.

Há ainda a considerar que as práticas de conhecimento e registo em que se apoia a autarquia, neste caso, podem levar a uma pressão sobre as famílias para que se organizem e se mantenham da forma que melhor propicia o acesso à desejada habitação.15 O ocorrido durante despejos efectuados pela autarquia da Amadora noutros bairros em demolição documenta eloquentemente este aspecto. Entre as famílias que viram as suas casas demolidas, várias não acederam a alternativas reais de habitação por não terem sido inscritas pelo recenseamento realizado em 1993 no âmbito do Programa Especial de Realojamento, ou porque o seu perfil se alterou (Alves, 2022). Em face deste tipo de consequências, torna-se de bom senso ocultar o hiato entre as circunstâncias vividas e as que o aparelho público reconhece como legítimas.

4. Questões para concluir. A realidade habitacional vivida

Mais do que documentar as difíceis condições de vida de muitos habitantes da Cova da Moura, cujo acesso ao mercado de trabalho se limita amiúde ao segmento secundário, precário e pouco qualificado, este texto procurou explorar as aprendizagens resultantes de um olhar mais detalhado sobre as vidas de quem habita e frequenta o bairro. Considerou, adicionalmente, as suas implicações para um debate sobre as formas de conhecer que preparam programas e acções levados a cabo pelo poder público.

Fê-lo tendo por ponto de partida a questão da habitação precária e o desafio de tratar o tema tendo por referência, especificamente, a população portuguesa afrodescendente. Sem pretensões de tratar de forma cabal um universo e questão de difícil delimitação, deteve-se sobre um lugar retratado predominantemente como uma realidade “outra”, um enclave migrante na Área Metropolitana de Lisboa.

Uma leitura da recente “Estratégia Local de Habitação da Amadora - 1º Direito”, mostra como a Cova da Moura e seus habitantes continuam a ser retratados pelo prisma unilinear da precariedade e da ausência de conformidade ao estipulado na Lei. Adicionalmente, num tempo em que a auscultação e a participação são aspectos valorizados na intervenção pública, o tipo de procedimentos adoptados para conhecer a vontade dos moradores aprisiona os visados em tomadas de posição reificadas, incapazes de dar conta da complexidade e ambivalência que subjaz aos dados registados. Resulta daqui um hiato entre as representações que informam programas e intervenções públicas e a realidade vivida pelo cidadão comum. A partir de uma indagação sobre trajectórias habitacionais de pessoas ligadas à Cova da Moura, dando atenção ao papel que o bairro tem nas suas vidas, procurou-se documentar melhor esse hiato.

Identificámos um desencontro entre a evolução ocorrida no modo como “a questão da Cova da Moura” se equaciona e a racionalidade que informou e informa a agência de moradores. A análise do primeiro caso levou-nos à consideração de uma época em que a continuidade, mais do que oposição, relacionava modos formais e informais de produzir cidade (Roy, 2005), permitindo uma maior “porosidade” entre o domínio da Lei e o das práticas. A experiência do primeiro entrevistado, João R., dá conta do investimento feito, pelos moradores, na construção de um bairro que se queria parte da cidade envolvente, seja por via do empenho pessoal na construção da própria casa, seja na constituição de uma Comissão de Moradores que zelasse por boas práticas à escala colectiva. Ao longo da década de 1980, no entanto, para o poder público “a questão da Cova da Moura” foi-se transformando numa questão mais estritamente técnica, relativa ao cumprimento de determinados parâmetros e normas. Esta é uma das instâncias que vai aprofundando um hiato entre a classe média urbana cidadã e os “outros” - os migrantes africanos ou os grupos-alvo em risco de pobreza, para mencionar apenas algumas categorias de identificação.

Perdem reconhecimento as experiências de um bairro que se integra, em continuidade, numa rede de práticas e relações translocais, que atravessam e relacionam não apenas diferentes lugares da cidade, mas também lugares de diferentes países, unidos por uma história comum que perde protagonismo. Considerando vidas familiarizadas com a migração, demos conta de como ter ou aceder a uma casa faz parte dos recursos que se mobilizam de forma flexível, compondo a melhor qualidade de vida possível. Tais dinâmicas contrastam com as representações unidimensionais e fixas que o poder público faz dos seus “grupos-alvo”. São, mesmo, por ele recusadas: quando vistas, encerram os seus protagonistas em situações de incumprimento, que podem ter consequências graves.

É às famílias e indivíduos que vêem as suas vidas envolvidas por tais teias de referências desadequadas, que cabe vencer o hiato. Mas poderia ser de outro modo, através de uma melhor aproximação à vida tal como vivida pelos cidadãos a quem as medidas de política pública se dirigem - possibilidade que interpela a colaboração entre governação e a academia mais humanista.

Agradecimentos

A autora agradece aos dois revisores anónimos as leituras críticas e contribuições, que tornaram este artigo melhor. O texto deve também a conversas com Joana Pestana Lages, Sílvia Jorge, Alcides Lopes, Nelson Delgado e Nelson Santos e, claro, a “Patrícia”, “Celeste” (nomes fictícios), João Rocha e outros habitantes da Cova da Moura que têm partilhado comigo as suas visões e experiências. A todos agradeço muito. O conteúdo apresentado é da exclusiva responsabilidade da autora. Este artigo foi realizado no âmbito do projeto ‘Care(4)Housing. A care through design approach to address housing precarity’, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), PTDC/ART-DAQ/0181/2021.

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1 Este artigo recorre ao itálico para introduzir expressões utilizadas pelos documentos ou pessoas em referência. O caso da Cova da Moura mostra que o recurso a categorias baseadas na classificação sumária da situação construtiva/habitacional dos bairros designados como degradados/precários/clandestinos (etc.) encobre significativa diversidade. Cf. Ascensão (2013) para uma abordagem processual da abstração tecnicista que subjaz a tais classificações.

3Que conduziu, entre outros aspectos, à patrimonialização da Festa de Kola San Jon, que em 2013 passou a integrar o Inventário Nacional de Património Cultural Imaterial. https://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imaterial/inventario-nacional-do-pci/lista-do-inventario-nacional-do-patrimonio-cultural-imaterial/

4Em Gomes (2019) distingue-se entre pessoas afrodescendentes (nascidos em Portugal) e pessoas migrantes (nascidas no continente africano). Neste artigo não se segue esse caminho e o esforço de delimitação assim proposto, que dá mal conta da continuidade existente entre ambas as categorias, como no caso de pessoas nascidas em países africanos que viveram uma parte muito significativa da sua vida em Portugal, sendo e sentindo-se cidadãos portugueses. Considera-se o termo no seu sentido mais lato, que abrange tanto pessoas nascidas no continente africano quanto em Portugal.

5Esta abordagem não deixa, no entanto, de revelar-se insatisfatória, seja porque não permite tomar em consideração os afrodescendentes que, sendo cidadãos portugueses nascidos no país, escapam por inteiro a estatísticas focadas na migração, seja porque uma atenção mais detalhada rapidamente revela a inadequação de pensarmos a categoria “afrodescendentes” como totalidade homogénea.

6Isto é, sem ser objecto de licenciamento por parte da autarquia.

7Apoios destinados a portugueses vindos de África no quadro dos processos de descolonização, via IARN - Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais.

8E os media, que não são objecto deste artigo mas que concorrem, de forma crucial, para a formação e reprodução da imagem pública do bairro.

9Por exemplo, para passar uma temporada em Portugal em tratamentos, ao abrigo do acordo de cooperação no domínio da saúde. Num outro exemplo, enquanto um estudante cabo-verdiano frequenta uma universidade portuguesa ou quando, chegada a Portugal, uma pessoa precisa de um primeiro lugar a partir do qual organizar a sua estadia.

10Relato composto a partir do trabalho de campo e entrevista realizada em Novembro de 2022

11Ilha de São Vicente, em Cabo Verde e a sua capital, a cidade do Mindelo. Há habitantes da Cova da Moura ligados a outras ilhas do arquipélago, com destaque para Santiago.

12Relato composto a partir do trabalho de campo e entrevista realizada em Novembro de 2022.

13“Pooling culture”, que se tornou particularmente poderosa a partir dos finais do século XX, associada à ideia de que as ciências sociais podem ajudar a predizer de que modo os grupos-alvo responderão a determinado cenário. Ser capaz de “medir” o que se antecipa, entendendo o público-alvo através de indicadores quantificáveis, está muito associado à procura de um desenho de medidas/políticas necessárias baseado em princípios de transparência (“accountability”) do poder público (Macnaghten e Urry 1999: 76-78).

14Subsidiária da ideia do sujeito racional que preside à lei da oferta e da procura.

15Da mesma forma, se a dificuldade em encontrar uma casa, num contexto de escassez habitacional, se impõe como um pesado constrangimento, as casas existentes no âmbito de uma determinada rede de relações são, também elas, um recurso ampliador de possibilidades. Aqui, o desencontro é grande com a lógica normativa veiculada por programas e outros dispositivos de apoio social, orientadora para a conformidade entre tipologias familiares-padrão e tipologias habitacionais e promotora do entendimento da não conformidade como forma grave de desvio.

Recebido: 17 de Janeiro de 2023; Aceito: 21 de Agosto de 2023

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