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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão impressa ISSN 1645-0639versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.49 Lisboa jul. 2025  Epub 22-Jul-2025

https://doi.org/10.15847/cct.38707 

ARTIGO DE PESQUISA

A representação algorítmica da cidade contemporânea: Estratégias e táticas no enfrentamento da sociabilidade violenta

The algorithmic representation of the contemporary city: Strategies and tactics in confronting violent sociability

Ivaldo de Lima1 

1 Universidade Federal Fluminense, Brasil, ivaldogeo@gmail.com


Resumo

No artigo, abordamos o contexto atual da Cidade do Rio de Janeiro, marcado intensamente por uma sociabilidade violenta e letal. Acionamos uma triangulação analítica que inclui a situação de necropolítica e de brutalismo que caracteriza o urbicídio carioca; a condição existencial do territoriante em liminaridade que enfrenta a algoritmização da vida cotidiana; e o horizonte ético da justiça territorial que reacende a esperança de transformação do status quo. Essa triangulação nos leva à conclusão de que as injustiças territoriais agravadas pelo contexto de violência repercutem a ambiguidade da algoritmização do espaço urbano onde ocorrem, no decorrer do avanço do urbanismo plataformizado. Empiricamente, o uso de tecnologias de informação e comunicação, de que são exemplo os aplicativos Onde Tem Tiroteio e Fogo Cruzado, produz espaços liminares que definem a ação territorial de sujeitos sociais, em sua condição de territoriantes vinculados às redes digitalizadas. Por seu turno, estratégica e taticamente, a governança territorial e a governança informal, devidamente articuladas com a representação algorítmica da cidade, por meio de aplicativos de plataformas digitais, insinuam o desafio de superação do déficit ético rumo a uma cidadania urbana autônoma capaz de contribuir efetivamente para a garantia dos direitos humanos - direito à vida - e dos direitos urbanos, como os direitos à mobilidade, ao lazer e ao trabalho. Eticamente, vislumbram-se os sujeitos corporificados de direito enredados na arte de resolver - e salvar - a vida, cujo reconhecimento afirmativo do Outro, esse interlocutor válido e legítimo, se interpõe como atitude moral impositiva que visa à mitigação e/ou eliminação das persistentes opressões.

Palavras-chave: economia de plataforma; algoritmização do cotidiano; violência urbana; governança informal; justiça territorial; redes sociotécnicas

Abstract

In this article, we address the current context of the City of Rio de Janeiro, intensely marked by violent and lethal sociability. We activate an analytical triangulation that includes the situation of necropolitics and brutalism that characterizes Rio's urbicide; the existential condition of the territory in liminality that faces the algorithmization of everyday life; and the ethical horizon of territorial justice that rekindles hope for transforming the status quo. This triangulation leads us to the conclusion that territorial injustices aggravated by the context of violence reflect the ambiguity of the algorithmization of the urban space where they occur, amid the advancement of platform urbanism. Empirically, the use of information and communication technologies, with the examples of the Onde Tem Tiroteio and Fogo Cruzado applications, produces liminal spaces that define the territorial action of social subjects, in their condition as territories linked to digitalized networks. In turn, strategically and tactically, territorial governance and informal governance, duly articulated into algorithmic representation of the city, through digital platform applications, insinuate the challenge of overcoming the ethical deficit towards an autonomous urban citizenship capable of effectively contributing to guarantee human rights - the right to life - and urban rights, such as the rights to mobility, leisure and work. Ethically, we see the embodied subjects of law involved in the art of resolving - and saving - life, whose affirmative recognition of the Other, this valid and legitimate interlocutor, stands in the way of an imposing moral attitude aimed at mitigating and/or eliminating persistent oppressions.

Keywords: platform economy; algorithmization of everyday life; urban violence; informal governance; territorial justice; sociotechnical networks

“Haver leis para a associação de ideias, como para todas as operações do espírito, insulta a nossa indisciplina nativa.”

Fernando Pessoa (2019, p. 287)

Apresentação

Quando Carlos Nelson Ferreira dos Santos nos incitava a refletir sobre a cidade como um jogo de cartas, em livro homônimo, ele deflagrava uma provocação maiêutica, um modo peculiar de conceber o espaço urbano, associando ideias numa operação do espírito estimulada por nossa indisciplina nativa. Indagações derivadas desse modo criativo de pensar e sentir a cidade ecoam até os dias atuais. Que cartas se devem colocar em jogo para a decifração da cidade contemporânea? Quem são os jogadores? Quais são as regras, e principalmente, quais são os recursos e as jogadas desse jogo? Carlos Nelson nos dizia que, nas cidades, jamais serão encontradas distinções rígidas entre análises e sínteses, entre usos e trocas, sejam materiais ou simbólicas, de tal modo que “misturar tudo isso e usar passagens e liminaridades de forma ambígua faz parte das estratégias do cotidiano” (Santos, 1988, p. 45). Por outro ângulo, Regis de Morais admite que “em nenhum outro lugar a vida está sendo um jogo tão perigoso como nas grandes cidades [...] E ‘jogo’ é bem a expressão, pois que o elemento do ‘azar’ está muito presente nas angústias do cidadão” (Morais, 1985, p. 11).

O que acontece na cidade pode ser comparado ao desenrolar de um jogo de cartas. Então, só se aprende a jogar jogando, sentipensando cotidianamente a cidade, os seus jogos escolhidos ou impostos. “O jogo urbano se joga sobre um sítio determinado que é a sua ‘mesa’” (Santos, 1988, p. 50). “Mas, para que o jogo dê certo, é preciso que todos [governo, empresas e população] conheçam bem as cartas do baralho que está sendo usado e que sejam bem esclarecidas as regras para arrumá-las” (Idem, p. 51). Então, “só pode haver jogo limpo quando cada um souber o que são as suas cartas, o quanto valem e tiver domínio sobre as próprias jogadas” (Idem, ibidem). Sabe-se também que a possibilidade do jogo depende de estratégias e táticas praticadas. Em aditamento, quanto à natureza dos jogadores, para Manuel Delgado, não deveríamos nos referir aos urbanitas como meros habitantes da cidade, mas como praticantes do urbano1. Nesse sentido:

“Os praticantes da sociabilidade urbana (...) parecem experimentar certo prazer em tornar cada vez mais complexas as regras desse contrato social ocasional e constantemente renovado em que se comprometem, como se tornar a partida interminável ou demorar ao máximo a finalizar, mantendo-se o maior tempo possível em estado de jogo, constituíssem fontes de satisfação. Os jogadores são sempre conscientes, claro está, da possibilidade de mudar regras de seu jogo, assim como da possibilidade de substituí-lo por outro ou deixar de jogar.” (Delgado, 2008, pp. 14-15).

Neste artigo, buscamos respostas coordenadas, ainda que provisórias, para o problema da representação algorítmica concebida como uma condição de realização da vida urbana contemporânea, devido à imposição capitalista de uma economia de plataforma que, por seu turno, gera um urbanismo plataformizado - aquele animado pela ostensividade das empresas de plataforma (tais como Uber, Didi, Cabify, Airbnb, Rappi, Postemates, TaskRabbit, Microworkers, Zolvers, para citar algumas). Trata-se de um modo de vida urbano marcado pela capilarização das redes informáticas no território com destacado papel desempenhado pelo uso de plataformas virtuais. Uma análise da fluidez territorial característica desse urbanismo, no exemplo do uso de smartphones, encontra-se em Bertollo (2019). O algoritmo se interpõe insidiosamente no cotidiano das relações sociais de reprodução de cidadãos e cidadãs que jogam o jogo do espaço urbano, ou seja, que experimentam a cidade como o seu espaço existencial na luta legítima por direitos2. Contudo, “novas cartas” são criadas. Basta citar a imensa variedade de aplicativos digitais incorporada nas atividades e ações mais banais do dia a dia e os desafios definidos em filigrana: institucionalização dos sistemas algorítmicos (Mendonça et al., 2024), eliminação da discriminação algorítmica (Carloto, 2023), combate à necropolítica e ao racismo algorítmico (Silva, 2022), luta por justiça algorítmica (Ochigame, 2022), postulação de uma ética algorítmica (Torralba, 2022), crítica ao gerenciamento algorítmico do trabalho (Abílio, 2020), a uberização cappitalista do trabalho (Radetich, 2024) etc. Acima de tudo, está, pois, o direito humano à vida liberta da ostensividade algorítmica asfixiante.

Os constrangimentos derivados da algoritmização da vida cotidiana - caracterizada pelo uso virulento de plataformas virtuais e aplicativos digitais - enfrentados pelos usadores / praticantes / jogadores da cidade balizam a nossa questão central: quais são as circunstâncias sob as quais representações sociais são algoritmizadas para responder à sociabilidade violenta da metrópole sitiada? Tentamos decifrar as decorrências sociais de uma representação algorítmica do espaço urbano que incide nas ações dos cidadãos e altera as possibilidades da cidadania. De fato, tratamos da perspectiva de uma cidadania urbana que “introduz o direito à cidade” (Donzelot, 2012, p. 48). Para tanto, além de uma breve introdução, estruturamos o texto em três seções principais. Na primeira, discutimos o papel das redes nos espaços da cidade contemporânea. Na segunda, tratamos a “virada territorial”, abordando as capacidades governativas e os espaços liminares como recursos teórico-metodológicos que contextualizam a questão central. Na terceira seção, abordamos a “mudança existencial”, com enfoque mais direto no processo de algoritmização em curso e no espaço existencial violentado. Por fim, uma conclusão e uma perspectiva são enunciadas.

Uma premissa introdutória

O espaço urbano é produzido pela sociedade para que, nele, ela própria se reproduza; daí a luta pelo direito à cidade, recordando brevemente Henri Lefebvre. O filósofo também nos lembra:

“Um ‘ser humano’ não tem o espaço social diante e ao redor de si - o espaço de sua sociedade - como um quadro, um espetáculo ou um espelho. Sabe que tem um espaço e que está no espaço. Não desfruta apenas de uma visão, de uma contemplação ou de um espetáculo: atua e se situa no espaço como partícipe ativo. Nesse sentido, se situa numa série de envolturas que se implicam reciprocamente e cuja sequência explica a prática social.” (Lefebvre, 2013, p. 33. Grifos no original)

Partimos da premissa de que a questão urbana se reinventa na perspectiva da atuação ativa das envolturas e desenvolturas, das dobras e redobras da prática social dos cidadãos, na medida em que, em pontos específicos do espaço e do tempo, o direito à cidade justa é posto em xeque e condicionado por novas representações sociais. É assim que a produção do espaço urbano se nos interpõe: “quem vive, trabalha, se desloca e usa de muitas formas um espaço urbano está contribuindo para refazê-lo sem parar” (Santos, 1988, p. 55). Com isso, subtende-se que os direitos urbanos ininterruptamente tensionados podem ser considerados catalisadores da própria questão urbana. Uma questão que se atualiza pelo espraiamento da violência. Outrossim, uma questão que repercute o processo mais amplo de socialização capitalista pela qual ocorre a “transferência de recursos da população como um todo para algumas pessoas e firmas” (Santos, 1994, p. 122). E, nesse processo, quando a sociabilidade violenta se instaura, quando a letalidade se banaliza no cotidiano urbano, é desencadeada a luta social pelo direito à vida, incluindo aí a ação e a atividade de cada sujeito social na condição de territoriante3. Nesse sentido, a distinção entre ação e atividade nos parece crucial.

“A atividade reitera o que já existe, a percepção funcionalista do mundo, enquanto a ação descobre o que ainda não existe. Só há potencial libertário na ação, e não na atividade. Frequentemente, essa diferença não é reconhecida, fazendo com que o simples fato de se estar envolvido em múltiplas atividades seja tomado como sinônimo de autonomia do sujeito social. No entanto, na ativação da sociedade, possibilitada pelas novas tecnologias, cria um afã cego por mais atividade e mais consumo, que pode adiar a conquista de formas realmente libertárias de organização social.” (Ribeiro, 2011, p. 24).

Os sujeitos praticantes da sociabilidade urbana lidam com essa dialética entre ação e atividade. E mais, lidam com a interação pulsante entre os espaços de ação e de atividade. Então, esses sujeitos estão a lidar com “a socialização de diferentes experiências” implicando o esforço em prol de capacidades e ações coletivas que evitem a perda de autonomia cidadã (Dematteis, 2024, p. 72). Por seu turno, tais ações devem ter como horizonte a justiça, posto que “a injustiça vai em detrimento das possibilidades de atuar” (Portinaro, 2025, p. 19). Traduzido para o terreno, o espaço de ação representa o conjunto de locais em relação aos quais os indivíduos têm alguma familiaridade, pois nele se deslocam e atuam diariamente. Trata-se de um processo de territorialização posto em marcha pelo praticante urbano, isto é, pelo “ator sintagmático” (Raffestin, 1993). Assim, a sensação de insegurança em relação à cidade como um todo, por exemplo, pode ser explicada pela lógica inerente à construção dos espaços de ação, de acordo com Alexandre Magno Diniz.

“Por outro lado, o espaço de atividade representa o espaço no qual os indivíduos vivem o dia a dia, constituindo-se um recorte do espaço de ação com o qual o indivíduo interage com maior frequência. As vizinhanças fazem parte do espaço de atividade dos indivíduos, constituindo recortes espaciais de maior familiaridade para estes. Existe uma hierarquia de espaços de atividade para a maioria das pessoas, os quais tendem a aumentar em extensão espacial, partindo da unidade familiar, bairro, passando pelo local de trabalho e o espaço urbano de modo geral. À medida em que se move em direção aos níveis superiores da hierarquia espacial, a familiaridade com o espaço se torna menor.” (Diniz, 2007, p. 181)

Nessa territorialização dos espaços de ação e de atividade, sobretudo nos deslocamentos do local de moradia para o local de trabalho, novos recursos materiais ou simbólicos são acionados na interface das necessidades básicas e das representações sociais. Os algoritmos configurados como aplicativos digitais constituem, desse modo, um desses novos recursos, como novas cartas do jogo urbano que exigem táticas e estratégias específicas para serem jogadas. Por um lado, o processo de algoritmização da vida cotidiana expressa “o teor da atualização técnica do urbano que caracteriza a última modernidade” - conduzindo à “renovação técnica do urbano genérico” segundo Ana Clara Torres Ribeiro (2013, p. 245 e 261). Forma-se uma trama no jogo urbano, com jogadas marcadas pelo uso conjugado de dispositivos técnicos e territoriais. Por outro lado, em suas relações com o território, as redes jogam um papel crucial para a superação desse tensionamento gerado pela violência, concebendo-se a rede segundo um enfoque genético - como processo - e um enfoque atual - como dado da realidade -, de acordo com Milton Santos (1996, p. 209). Por fim, a justiça territorial interpõe-se como o horizonte ético buscado pelos jogadores constrangidos pela violência urbana.

Abrimos um parêntese para sublinhar que violência urbana é termo genérico de limites mal definidos, encerra uma representação coletiva, uma categoria de entendimento do senso comum quase sempre referida à noção de crime e sem ter o mesmo significado para todos os habitantes da cidade. Todavia, nele, há um “núcleo de sentido: ameaças à integridade físico-pessoal e o patrimônio material representadas pela expansão de ações violentas em todas as áreas da cidade” (Silva, 2008a, p. 20). Luiz Antonio Machado da Silva sugere que “a representação da ‘violência urbana’ reconhece um padrão de sociabilidade” (2008b, p. 41). Para ele, a sociabilidade violenta “é uma noção típico-ideal que procura captar a especificidade de um complexo de condutas e o respectivo lugar simbólico e político a ele atribuído pela população urbana” (Idem, p 42). Por isso, priorizamos a expressão sociabilidade violenta referida a uma ordem social que submete os moradores de lugares específicos da cidade. “Na ‘sociabilidade violenta’, quem tem mais força usa os outros, assim como artefatos (armas, etc.), para impor sua vontade, sem considerar princípios éticos, deveres morais, afetos etc. [...] O núcleo da ‘sociabilidade violenta’ se localiza nas favelas” (2008a, pp. 21-22). Fechamos o parêntese.

É dado por certo que a tecno-utopia do ciberespaço corresponde à fluidificação generalizada da vida contemporânea. No rastro da revolução técnico-científica que informatiza a experiência humana imersa na world wide web, consubstancia-se a reticularização de atividades e ações, insinuam-se as territórios-rede. O espaço se arruma em rede, redesenhando-se graças à movimentação crescente; o advento do ciberespaço leva à (re)distribuição dinâmica das localizações e “a fluidificação introduz a paisagem mutante [...] à semelhança de uma tela impressionista” (Moreira, 2007, p. 99). É assim que o conceito moderno de rede, esse receptor epistêmico, permite conceber e realizar uma estrutura artificial de gestão do espaço e do tempo. A rede tornou-se um dispositivo eficaz para a organização espaço-temporal. Talvez por isso, Pierre Musso afirme que ela é “um vínculo invisível dos lugares visíveis” e “uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e cuja variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento” (Musso, 2004, pp. 21 e 31). No tocante às redes informáticas, fica clara a dialética estabelecida na condição social dos praticantes do urbano como sujeitos de vigilância e controle social por meio de aplicativos instalados em seus aparelhos de telefonia celular, que também estão sujeitos à vigilância e ao controle social viabilizados por esses mesmos meios tecnológicos - realizados tanto pelo hard quanto pelo software, gerando um knoware.

Logo, ser sujeito de e estar sujeito a novas formas de controle social é uma decorrência da implementação e difusão das redes que fluidificam o espaço-tempo. Nesse contexto geo-histórico, a noção de rede é onipresente e define sistemas de relações (redes sociais, de poder, de solidariedade, etc.). Advogando uma filosofia da rede, Pierre Musso entende que a rede pode ser construída porque ela se torna objeto pensado em sua relação com o espaço, ao mesmo tempo em que a rede se torna um conceito, uma representação do território e um artefato técnico para o enlaçamento do espaço-tempo. A rede é lugar visível e vínculo invisível, reitera o autor. Pierre Musso (2004), procurando decifrar os sentidos das redes, sentencia que elas são uma construção social, pois, embora a rede não constitua o sujeito da ação, ela expressa ou define a escala das ações sociais. Logo, a rede representa um dos recortes espaciais possíveis para compreender a ação social e a organização do espaço contemporâneo, por meio da fluidez, que não é meramente uma categoria técnica, mas sociotécnica, de acordo com Leila Dias (2005). Por isso, concordamos com Tamara Egler quando afirma que a rede sociotécnica “possibilita a emergência de um espaço de comunicação virtual de todos para todos - formas de conectividade que permitem que a qualquer momento possamos nos conectar a qualquer pessoa ou a um banco de dados” (Egler, 2015, p. 8).

A mudança territorial em face do urbicídio e o desafio às capacidades governativas

É imperioso começar por reconhecer que os termos governo, governabilidade e governança são capacidades governativas, sendo fundamental a clara distinção entre eles. Contudo, para a análise em pauta, é suficiente especificar a noção de governança. A partir disso, podem ser identificadas cinco características em comum para a governança: a) a governança implica um enfoque pluricêntrico; b) as redes jogam sempre um importante papel; c) os estudos se centram nos processos de governo mais que em suas estruturas; d) as relações entre atores sugerem riscos e incertezas específicas, tendendo à criação de instituições que os minimizem; e e) existe uma grande variedade de enfoques de caráter normativo.

No sistema sociopolítico, a governança consiste num modo de governar que: i) supera a exclusividade das instituições e atores estatais, na gestão dos assuntos públicos; ii) reconhece a pluralidade de atores sociais com possibilidade de intervir na gestão pública; iii) implica interdependência entre esses atores, de modo a incluir a sua cooperação e participação na adoção e decisões públicas e na assunção de responsabilidades. Então, como dizia Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1988), para que o jogo urbano dê certo, é preciso que todos - governo, população e empresas - conheçam as cartas do baralho. Destarte, chega-se ao âmago dessa noção, identificando-se os termos nucleares que a constituem, a saber: cooperação, compromisso, colaboração, interdependência, convênio, pactuação, coordenação, negociação e associação, dentre outros. Muitos desses termos estão explicitamente vinculados à governança territorial que transversaliza a vida cotidiana em cidades sitiadas pela sociabilidade violenta.

Em termos gerais, a governança territorial poderia ser definida como o processo de coordenação de atores visando desenvolver o capital social, intelectual, político e material e de coordenação do desenvolvimento territorial baseado na criação de coesão territorial sustentável em diferentes níveis. Numa definição mais operacional, a governança territorial pode ser vista como um modo organizacional da ação coletiva baseado em parcerias entre atores públicos e privados e coalizões orientadas para objetivos definidos em comum, consoante o geógrafo Joaquín Farinós (2015). Em nosso ponto de vista, concebemos a governança territorial como um processo estratégico de coordenação de ações políticas entre atores e agentes sociais visando à resolução compartilhada de questões comuns e à promoção da justiça territorial (Lima, 2014; 2019). Claramente, o papel das redes interfere nesse tipo de governança, pois o conceito de rede chama a atenção para as organizações ao mesmo tempo separadas e interdependentes em termos de recursos e interesses, bem como as conexões entre os atores. Essas conexões que variam de intensidade, normalização, padronização e frequência de interação, constituem as estruturas de uma rede, as “estruturas de governança” que refere Tanja Börzel (2008, p. 231).

Posto isto, cabe um desdobramento, uma alusão à governança informal, definida aqui como a coordenação política entre atores formalmente independentes; isto é, que não estão vinculados por uma relação hierárquica uns com os outros. Mais especificamente, governança informal ocorre sempre que esses atores se comprometem em atividades decisórias fora de uma estrutura formal de tomada de decisões, a qual fortalecerá o consenso com os objetivos políticos acordados pela coletividade através de meios legais. Um aspecto chave da governança informal é que a implementação política é descentralizada (Puetter, 2012). A interface da governança territorial com a governança informal é flagrante no contexto de clima de guerra civil vigente no Rio de Janeiro de hoje. A explicação da interface reside no comportamento induzido dos territoriantes à utilização de aplicativos voltados para a informação dos lugares da cidade onde estão a ocorrer tiroteios, ou seja, onde o risco de morte violenta e prematura é iminente. As variáveis básicas em jogo são o desejo de garantir a integridade corporal desses territoriantes e a sua consciência espacial em relação à cidade, como elementos decisivos na tomada da decisão. Assim, colocam-se em jogo os vetores da governança territorial e informal: i) o governo local responsável pela gestão institucional do espaço urbano, em especial as suas forças de segurança pública; ii) os sujeitos corporificados de direitos como praticantes da cidade; e iii) as empresas responsáveis pelos aplicativos digitais que informam, em tempo real, os locais em pé de guerra da cidade.

Enfocamos aqui a ordem urbana em xeque devido à banalização da violência e dos constrangimentos dos espaços relacionais que são submetidos a realojamentos imponderáveis. Assim, pela ótica do geógrafo Angelo Turco (2010), a figura narrativa da liminaridade do espaço enfrenta atualmente processos de grande envergadura, dentre eles a informatização da vida cotidiana, uma espécie de digitalização das práticas diárias mediadas, agora, pelas tecnologias de informação e comunicação (TIC). Tudo isso numa tensão crescente entre hardware, software e knoware. Irrupção dos novos meios eletrônicos (media) em nossa cotidianidade. Em especial os aparelhos portáteis como os smartphones que interatuam para formar uma “rede das redes”. Em poucas palavras, uma extraordinária revolução tecnológica que em pouco tempo redesenhou o mundo da informação e da comunicação, até constituir tecnoespaços de relação (ciberespaços, ciberpaisagens) como uma problemática especificamente geográfica (Turco, 2010).

Essa informatização vincula-se ao que Alvin e Heidi Toffler (1981) chamaram de “Terceira Onda” correspondente à substituição do paradigma industrial vigente no século XX pelo informacional que anuncia o século XXI. Contudo, embora as redes joguem um papel crucial no novo paradigma, “na verdade, o que vem ocorrendo é uma convergência entre os dois processos de questionamento da matriz espacial moderna: a formação de uma sociedade informacional global em rede e uma revalorização de propriedades específicas dos lugares” (Duarte, 2002, p. 183). Guardada a distância da temática, lembramos que o terrorismo do século XXI se baseia amplamente no dispositivo das redes, um terrorismo na sociedade em rede concebido como uma guerra - netwar - em que uma multiplicidade de agentes atua coordenadamente, se auto-organizando de forma simultânea e tecnológica, consubstanciando a estratégia de swarming tão letal quanto espontânea (Ugarte, 2004, p. 82). Entretanto, nos reportamos à Cidade do Rio de Janeiro no contexto em que a informatização, a digitalização, a algoritmização, enfim, a virtualização das ações sociais lidam com as circunstâncias da beligerância e da militarização da questão urbana marcada por uma pujante e inaceitável letalidade.

Entrevemos nos contextos teórico-metodológico e empírico mencionados até aqui uma geografia política da cidade que se atualiza por meio da violência e do recurso à governança territorial e informal como apelo à manutenção da vida humana. Concluímos, preliminarmente, que há uma geografia política das governanças territoriais como um arcabouço teórico-metodológico elaborado para dar conta da análise crítica geral de configurações territoriais da governança - um modelo de análise aplicável. E mais: essa governança territorial pode se desdobrar e estar aliada à governança informal, nos termos explicitados há pouco. Por outro lado, há geografias políticas da governança territorial concernentes ao resultado da aplicação do referido arcabouço teórico-metodológico a contextos empíricos particulares. Desse modo, a questão central aqui enfocada evidencia o fato de que a especificidade dos lugares e da geografia política da governança territorial deriva, em muitos casos, de valores negativos, como pode ser a escalada da violência letal característica de cidades como o Rio de Janeiro. A tensão entre o global em rede e o local em área emerge deste enquadramento do uso das redes digitais como tática de sobrevivência nos lugares que experimentam situações similares a uma guerra civil, como parece ser o caso de favelas cariocas (Lima, 2016).

É nesse contexto urbicida que leva a cidade ao pânico, para usar a expressão paroxística de Paul Virilio4, a cidade sitiada, nos termos de Stephen Graham, ou a fobópole, a cidade dominada pelo medo da criminalidade violenta descrita por Marcelo Souza. Para ele, trata-se de uma “cidade em que grande parte de seus habitantes, presumivelmente, padece de estresse crônico por causa da violência, do medo da violência e da sensação de insegurança” (Souza, 2008, p. 40), e que, tais circunstâncias desmoralizam o planejamento e a gestão urbanos, pois na “era do medo generalizado”, “o aumento da criminalidade e da sensação de insegurança, ‘a deterioração do clima social’ (...) vêm, na prática, no quotidiano, minando as possibilidades formais do exercício de vários direitos” (Souza, 2008, p. 105). Insistimos em sublinhar que o mais elevado desses direitos é o direito à vida. E nunca é demais lembrar que o conceito de segurança pública aqui subsumido refere-se à “estabilização de expectativas positivas quanto à ordem púbica e à vigência da sociabilidade cooperativa” implicando duas esferas: i) fáctica, na qual os fenômenos são diretamente vividos e se contam por números, importando reduzir a quantidade de práticas violentas; e ii) intersubjetiva, relativa ao domínio das percepções coletivas, sensíveis a dinâmicas culturais e processos de comunicação particularmente complexos - nessa esfera, impõe-se reduzir o medo, a sensação de segurança e a instabilidade de expectativas (Soares, 2005, pp. 17-18).

De alguma maneira, o urbicídio é uma ameaça fática e intersubjetiva corrente na Cidade do Rio de Janeiro. Isso porque, os meios empregados pelos grupos - legais e extralegais - diretamente implicados na violência letal se assemelham àqueles inerentes às guerras, que são exercícios espaciais de conflito armado e suas vítimas coletivas. Na cidade ferida e insegura, na “guerra urbana”, a brutalidade do medo, os sofrimentos sociais, a vulnerabilização dos corpos, a politização do pranto, a banalização da morte e a indiferença em relação ao outro - esta última concebida como brutalismo ético - findam por caracterizar a situação de violência urbicida; “uma violência que atenta contra a cidade, que recai na integridade de seus corpos monumentais: casas, edificações públicas, ruas, praças, pontes e nas corporalidades que são constituintes do habitar urbano” (Aguirre Moreno et al., 2021, p. 28). Essa interpretação do espaço como cenário de guerra dá uma conotação violenta às cidades e, por isso, nas Ciências Humanas, nos anos 1990, tornou-se próprio e extensivo “o termo para descrever a violência aplicada a uma cidade em seu conjunto: urbicídio” (Idem, p. 19).

Seja qual for o rótulo que se escolha empregar, as circunstâncias criadas pelo medo e pela violência nas cidades incitam novas jogadas com novas cartas, exigindo renovadas interpretações do jogo. Adauto Novaes, identificando uma nova economia psíquica das formas do medo, admite que convivemos com “medos espalhados em cada gesto que fazemos - medos do outro, das balas perdidas, do sangue contaminado (...)” (Novaes, 2007, p. 11. Grifo nosso). É isso que parece se desenhar no Rio de Janeiro atual com a governança territorial e informal que aciona os aplicativos digitais, buscando neutralizar o risco da morte prematura provocada pelo “abandono organizado” dos sujeitos com medo em condição de vulnerabilidade condicionada por sua classe social, raça ou localização geográfica5. Os territórios praticados por esses sujeitos são uma variável decisiva no jogo de vida e morte no qual os seus corpos são mobilizados como peões na reprodução capitalista das relações sociais de produção, agora marcadas pela condição algorítmica que se reinventa como representação do espaço urbano violentado.

A mudança existencial em face da cidade violentada e o desafio dos algoritmos

“Onde há medo, há ameaças; e onde há ameaças está a violência.” Regis de Morais (1985, p. 16)

Sergio Adorno esclarece com precisão a etimologia do termo violência. Na síntese do autor, a palavra violência tem origem no verbo latino violare que significa tratar com violência, profanar, transgredir. Faz referência ao verbo vis: força, rigor, potência, emprego de força física em intensidade, qualidade e essência. Na tradição grega clássica, violência significa desvio pelo emprego da força extrema. Hoje, é termo polissêmico que designa fatos e ações humanas que se opõem, questionam ou perturbam a paz ou a ordem social reconhecida como legítima. Seu uso corrente compreende o emprego de força brutal, desmedida, que não respeita limites ou regras convencionadas. Sob esta perspectiva, atos violentos estão associados ao mundo das percepções coletivas e das representações (Adorno, 2015, p. 72).

Podemos nos referir a uma contrageografia da cidade violentada. Isso significa fazer referência à escrita de táticas dentro de estratégias criadas para superar as circunstâncias sob as quais sujeitos são ameaçados e/ou vitimados pela morte prematura. Essas táticas e estratégias, cada vez mais vinculadas aos recursos da tecnologia digital, desenham novos contornos no espaço vivido de centenas de milhar de cidadãos e cidadãs em metrópoles como o Rio de Janeiro. Reportamo-nos ao abandono dos excluídos ao plano das relações sociais imediatas submetidas à violência cotidiana, uma vez que “as tradicionais estratégias de violência do pobre urbano brasileiro têm suportado, cada vez com maior intensidade, confrontos e/ou subordinações ao universo da criminalidade” (Ribeiro, 1996, p. 54). Os novos entornos e contornos das geografias existenciais são definidos, então, como um corolário da evitação da violência cuja ocorrência, efetivamente, é mais frequente em algumas porções da cidade do que em outras.

É claro que um aspecto desse redesenho do espaço vivido não está imune às representações estigmatizantes que alimentam a narrativa da favela como lugar pobre e perigoso a par de um marketing veiculador de uma sociedade da abundância. Luiz Antonio Machado da Silva admite que, muito embora a violência urbana seja uma característica geral da configuração social das cidades brasileiras, e “que abrange, portanto, todo o seu território, é mais ou menos consensual que ela afeta mais direta e profundamente as áreas desfavorecidas, sobretudo as favelas” (Silva, 2016, p. 207). Nesse ponto, Thainã Medeiros é lapidar no tocante à representação social das favelas como um lugar que deve ser evitado a qualquer custo; “as pessoas que lá circulam são relegadas a um lugar de suspeitas - qualquer coisa que acontecer na favela é justificável em nome de bem maior contra o inimigo poderoso. Dessa forma, colocamos os sujeitos ‘matáveis’ de um lado e os ‘protegidos’ de outro” (Medeiros, 2018, p. 34). Assim, entrevemos uma geografia da violência discriminada por Tina Hilgers e Laura Macdonald:

“Acreditamos que a intersecção entre identidade individual e a coletiva, as configurações políticas e sociais de poder, as instituições políticas, as características econômicas e a história em nível local, regional e nacional, constituem a diferença de níveis e das características da violência de um lugar para o outro.” (Hilgers & Macdonald, 2017, pp. 28-29)

Edson Teles registra que o processo de (inter)subjetivação da violência converte os lugares da vida cotidiana em ambientes inabitáveis ou impeditivos da coabitação, na medida em que o outro, insider daqueles lugares, se torna o inimigo potencial. E esse contexto de violência produz vítimas endêmicas: “jovens negros e pobres nas periferias, em especial a mulher negra. Esta é a principal estrutura da violência: o binômio racismo e machismo. É a síntese de uma sociedade bélica” (Teles, 2018, p. 24). No rastro dessa sociedade beligerante, Adriana Vianna chama a atenção para a responsabilidade e a participação das instituições policiais no universo das mortes violentas, “na gestão da vida e da morte, bem como no governo de territórios físicos e existenciais”, como parte do que denomina de “necrogovernança” (Vianna, 2018, pp. 36-37). Logo, a cidade perigosa é, em suma, a imagem de um espaço urbano repleto de agenciamentos convertidos em dispositivos reguladores, a partir do risco, do perigo, da apreensão, da ameaça, enfim, do medo da violência letal. Como driblar tais dispositivos? Está em curso uma nova economia psíquica presidida pelo medo e mediada pelas tecnologias digitais? Com que tipo de medo estamos a lidar? Como enfrentá-lo numa época em que se afirma o capitalismo de plataforma, essa fase do modo de produção caracterizada pela algoritmização da vida cotidiana? Enfim, como desempenhar o papel de territoriante em face da algoritmização do território?

Repercutimos duas informações básicas de Adauto Novaes: i) “a zona de sombra criada pelo medo é parte da vida social e política”; e ii) “o medo é o resultado da sensação permanente da fragilidade do homem (medo da morte) diante de um perigo difuso” (Novaes, 2007, pp. 9 e 13). Nessa frágil zona, se inscrevem os movimentos da vida cotidiana, passíveis de serem interpretados por uma “fenomenologia vagamente existencial” que “liga o espaço e o tempo e as energias que se espalham aqui e lá: os ritmos” (Lefebvre, 2021, p. 71). Trata-se dos corpos inscritos nas dobras dos espaços liminares e suas ritmações (Lima, 2023). A cidade sempre foi uma máquina reguladora de idiorritmos: por meio de dispositivos físicos e espaciais, jurídicos e institucionais converteu sistematicamente os diferentes idiorritmos em relações espaciais, econômicas e sociais articuladas, com frequência muito complexas. O que muda ao longo da história da cidade é o sentido e o papel regulador de cada dispositivo, seguindo a reflexão de Bernardo Secchi (2015). Daí o debate sobre o medo dirigido na cidade que resulta de representações sociais forjadas e orientadas hegemonicamente. Uma dialética entre o medo dirigido e o medo espontâneo ressignifica o cotidiano das metrópoles, conforme indicávamos há vinte anos (Lima, 2005). Contudo, na Cidade do Rio de Janeiro do tempo presente, a equação que enquadra a socialização violenta e o medo, tanto dirigido quanto espontâneo, provoca uma transformação existencial que faz, desfaz e refaz os entornos e contornos dos idiorritmos dos territoriantes.

Damos por certo que o espaço geográfico é, em essência, um espaço existencial e, nele, os lugares são porções do mesmo imbuídas de significados, de emoções e de sentimentos, como adverte Joan Nogué (2009). Nesse sentido, a cidade é um indutor existencial e o desejo de viver com humanidade é o principal argumento político dos corpos nela inscritos. Reforçamos que existência é uma palavra de conotação espacial, já que deriva de ex-sistere (colocar-se fora de). Existir é atuar para encontrar os (bons) lugares próprios, segundo Michel Lussault (2015). Acrescentaríamos: os lugares próprios, seguros, bons e justos. Por seu turno, a experiência existencial de se rebelar diante de uma situação desumana ou injusta é chamada também de indignação ética, de acordo com J. Sung e J. Silva (2017). Essa indignação é potencializada pela indiferença em relação ao outro que, numa sociabilidade violenta, é reduzido a uma vida destituída de humanidade: são vidas matáveis em decorrência de uma insensibilidade moral. Mas o contrário dessa experiência existencial marcada por necropolíticas e brutalismos (Mbembe, 2018; 2021) seria uma sociabilidade regida pelo reconhecimento do outro como um sujeito válido e legítimo cuja vida importa. Parece claro que o reconhecimento do outro aqui significa, antes de tudo, o reconhecimento da importância da vida do outro. Logo, “a palavra ‘reconhecimento’ designa muito melhor a constituição mútua das liberdades (seu verdadeiro nascimento, em suma), ao superar a violência” (Calvez, 1997, p. 19).

Tudo indica assim que a sociedade bélica reforça a vida instrumentalizada, desumanizada. Para Milton Santos, a combinação atual entre a violência do dinheiro e a violência da informação, associadas à produção de uma visão desordenada do mundo; a perplexidade diante do presente e do futuro; um impulso para ações imediatas que dispensam a reflexão, essa cegueira que reforça as tendências à aceitação de uma existência instrumentalizada (Santos, 2002, p. 151). Isso nos leva à necessidade de vislumbrar a vida urbana por meio da “reflexão da condição humana”, essa face dos veios trabalhados tanto pela sociologia quanto pela geografia (Ribeiro, 2012a, p. 38). Lidar com essas violências finda por se constituir na imposição de mecanismos e dispositivos para a manutenção da vida cotidiana. Defendemos a posição irredutível de que os sujeitos subalternizados e assolados pela sociabilidade violenta urbana devem ter direito à voz em defesa de uma vida digna. Trata-se de subscrever a “rebelião do coro” que clama por uma educação política desses sujeitos sociais concretos, que deseja “reivindicar e potenciar os conteúdos políticos da cotidianidade de todos os setores oprimidos”, ou seja, o coro quer falar! (Nun, 2015, p. 109).

Reconhecemos que a cena urbana comporta a existência de múltiplas e desiguais representações da realidade social, articuláveis a estratégias e táticas de sobrevivência. Rechaçamos a compreensão unilateral da violência, ou seja, apenas aquela que constitui ameaça potencial às classes média e alta. Admite-se o par dialético risco-segurança i) como parâmetro da avaliação imediata da vida social e da elaboração de projetos sociais; ii) como âmbitos efetivos da vida social e das expectativas coletivas, altamente expressivos de qualidades culturais da vida urbana atual; e iii) novo âmbito expressivo da racionalização das relações sociais, segundo Ana Clara Torres Ribeiro (2013). E ainda: a tecnologia não é neutra, por mais que se apresente como flexível e multiuso, e a liberdade não emana diretamente da técnica. Daí a relevância política da articulação teórica entre técnica e ação. “Se existe uma relação, que gostaria de denominar genética, entre técnica e espaço, existe uma relação, igualmente genética, entre tempo e ação.” (Ribeiro, 2012b, p. 245)

No contexto geral de uma economia capitalista de plataformas, nos deparamos com a gestão algorítmica do território. Na literatura especializada, encontra-se uma miríade de termos muito expressivos concernentes a essa economia: “capitalismo de plataformas, gig economy, uberização do trabalho, capitalismo eletrônico-informático, economia virtual, capitalismo conectivo, capitalismo digital, siliconização do mundo, época do tecno-imperialismo, do infotrabalho, do cibertariado ou ciberproletariado” aos quais Natalia Radetich acrescenta “cappitalismo”, lembrando que app é apócope do termo anglo-saxônico application referente a aplicações ou programas para dispositivos móveis, sobretudo smartphones (Radetich, 2024, p. 12). Desse modo, identificamos alguns aspectos e indagações marcantes, tais como: 1. As plataformas digitais tornam-se fundamentais para a extração e interação de dados (inclusive georreferenciados...). Imbricam-se plataformas digitais e territoriais; 2. Os algoritmos são, de fato, estabilizadores de confiança, garantias práticas e simbólicas, dispondo-se de avaliações justas e precisas, livres de subjetividade, erro ou tentativas de influência? (Gillespie, 2018); 3. A algoritmização da vida cotidiana expande-se e todos os riscos que lhe são intrínsecos agudizam-se em resultado da digitalização do uso do território; 4. A gestão algorítmica do território torna-se uma realidade imposta pelo uso algorítmico do território. Logo, poder-se-iam cogitar as territorialidades algorítmicas? Os dispositivos digitais coadunam com dispositivos espaciais?

Um dispositivo espacial legítimo concerne a “agenciamentos espaciais que possuem um caráter normativo e prescritivo marcado: constituem as formas de organização do espaço, portadoras intrinsecamente de modelos de boas práticas sociais”, nas palavras de Michel Lussault (2003, p. 266). Logo, esboçamos algumas ilações sobre esses dispositivos. Em primeiro lugar, depreende-se que formas, funções, estruturas e processos podem se converter em dispositivos reguladores da vida no espaço, ou seja, que os dispositivos espaciais são o resultado de uma conversão intencional. Tal intencionalidade pode ser orientada para o bem-estar ou a opressão, dependendo das cartas e das jogadas que o territoriante disponha. Assim, o que faz com que uma rua seja considerada arriscada? Uma esquina perigosa? Uma praça intimidadora? Um quarteirão ameaçador? Uma favela território inimigo? Em segundo lugar, como esse tipo de dispositivo encerra em si mesmo uma forma de organização do espaço, pode-se considerar que a ação territorial, como uma modalidade do comportamento social, está condicionada por tais modos organizativos. E, por adição, esse comportamento se vê obrigado à governança territorial e informal que lhe possa entrever o horizonte de garantia do direito à vida digna. Em outro lugar, num exemplo aplicado à atitude antigeopolítica (Lima, 2024), analisamos como a algoritimização da vida urbana condiciona a renovação de movimentos sociais vinculados aos ciclotrabalhadores (Lima, 2025).

Pelo exposto, as circunstâncias aludidas até esta altura do artigo parecem se materializar no uso de aplicativos ou dispositivos digitais que se transmutam em dispositivos espaciais. Estamos a falar nomeadamente dos aplicativos Onde tem Tiroteio, criado no Rio de Janeiro, 2016, e em São Paulo, 2018, e de Fogo Cruzado, disponível no Rio de Janeiro desde 2016, e em Pernambuco desde 2019. Os objetivos desses aplicativos são registrar a incidência de tiroteios bem como a prevalência de violência armada e retirar os cidadãos das rotas de risco e perigo, tais como assaltos em grupo, balas perdidas, falsas blitzes. O uso de ambos pelos praticantes da cidade permite a esses usuários o acesso à informação estratégica, em tempo real, dos pontos do espaço urbano onde está a ocorrer algum tipo de disparo de arma de fogo, comumente inserido numa troca de tiros entre grupos legais e paralegais envolvidos em rivalidades pela imposição de uma certa “ordem”. Assim, com base na informação estratégica, desenham-se táticas para o enfrentamento da (des)ordem urbana. Essa “ordem”, de fato, coaduna com as intencionalidades díspares de cada grupo, e.g., traficantes varejistas, milicianos, forças policiais e criminosos comuns, definidoras de táticas e estratégias. Por isso, cidadãos e cidadãs que praticam a metrópole se veem instados a definir as suas ações táticas que respondam às intencionalidades no enfrentamento da sociabilidade violenta na qual se imiscuem diariamente. Estaríamos, como sugerem Antonio Casilli e Julian Posada (2019), diante de um “paradigma da plataforma” que convence pela suposta eficácia protetora da intermediação dos algoritmos na vida cotidiana?

A representação “não consiste numa duplicação mental da coisa, pelo contrário, gera-se um relacionamento com outrem em que a coisa cumpre uma função mediadora” (Giannotti apudRidenti, 2001, p. 86). É precisamente com base na sua condição mediadora entre os sujeitos e o território que tratamos a “coisa” denominada algoritmo. No contexto beligerante da cidade sitiada, as representações sociais, incluindo aí a valorização e desvalorização dos lugares, a percepção da ameaça, do risco e do perigo, estão condicionadas pelo uso desses aplicativos digitais, o qual, por seu turno, leva à ambígua representação algorítmica da cidade contemporânea. Como sabemos que a priori toda a representação social não se pode caracterizar como boa ou má, tal ambiguidade reside no fato de que há o lado positivo e o negativo encerrados nas condições concretas a que se expõem os usuários dos aplicativos/ usadores do espaço metropolitano. O lado positivo encerra a probabilidade de o uso dos aplicativos digitais desempenhar o papel preventivo contra a violência letal, uma vez que fornecem informação estratégica para a proteção dos corpos em seu deslocamento pela cidade. Aqui, recuperamos, de novo, a ponderação de Carlos Nelson Ferreira dos Santos: “usar passagens e liminaridades de forma ambígua faz parte das estratégias do cotidiano” (Santos, 1988, p. 45).

O lado negativo da representação algorítmica reside na inevitabilidade da inserção de cidadãos e cidadãs em redes de governança territorial e informal que atestam o colapso da segurança pública, ou seja, perde-se de vista que a inserção das pessoas nos sistemas algorítmicos das redes sociais deveria obedecer a escolhas cidadãs e não a imposições “institucionais”. Ricardo Fabrino Mendonça (2024) adverte que “pensar os algoritmos como instituições ajuda a compreender como eles se desenvolvem, como os atores nesse universo se comportam e, por consequência, como democratizá-los. Olhar para esses sistemas com as lentes institucionais é muito útil para dotar de sentido o que é opaco, pensar sobre o funcionamento de regras e formas de governança”. Ao fim e ao cabo, a ambiguidade dessa representação social deriva dos desafios interpostos aos cidadãos pela algoritmização do território, esta concebida como o processo no qual condicionantes representados por aplicativos digitais tornam-se impositivos à condução da vida cotidiana.

Por fim, com base nos dados do aplicativo Fogo Cruzado, apresentamos o cartograma (Figura 1) em que são sinalizadas as mortes violentas e prematuras de praticantes da cidade do Rio de Janeiro. Uma análise expedita da espacialidade das ocorrências letais nos revela a flagrante situação de injustiça territorial. Essa situação é atestada pelo número proporcionalmente muito mais elevado de mortes em lugares da cidade onde se concentram os segmentos empobrecidos, com predominância de população preta e parda, para não falarmos dos dados adicionais de que são jovens os que compõem a maioria estatística de mortos. Os bairros populares da área suburbana da cidade, das Zonas Oeste e Norte, bem como as favelas e seus entornos imediatos, constituem, assim, a face geográfica da injustiça, o lado obscuro da espacialidade do racismo sistêmico e, por fim, a dimensão territorial algoritmizada da violência letal na Cidade do Rio de Janeiro. De acordo com Liliana Manzano Chávez, esses lugares urbanos passam da categoria “vulnerável”, que expressa uma condição de potência, para aquela de “vulnerabilizado” que trata de uma realidade marcada pelo delito e pela violência; logo, a autora se refere a eles como “bairros críticos” levando em conta as estratégias de intervenção baseadas no papel das comunidades e distinguindo os atos de violência - anônima, representada, sociocultural e sociopolítica - dos estados de violência - social que gera pobreza e desigualdade (Manzano Chávez, 2009, pp. 37 e 79). Outrossim, na área metropolitana fluminense, chama-nos a atenção os elevados índices de mortes na Baixada Fluminense e no Leste Metropolitano em comparação à capital, reforçando em escala ampliada o contexto de injustiça territorial provocado pela socialização violenta, que deveria ser mitigado e/ou eliminado.

Com base na análise da Figura 1, tornam-se flagrantes as disparidades socioespaciais da Cidade do Rio de Janeiro consoante a sua estrutura interna. Isso significa dizer que a cidade apresenta uma geografia marcadamente desigual, principalmente devido às relações sociais de produção e reprodução que, escapando a dicotomias, revela a “cidade dos ricos e dos pobres” tratada por Bernardo Secchi. Em outras palavras, no Rio de Janeiro, capital do estado homônimo, concentra-se a riqueza material e simbólica no setor urbano denominado Zona Sul. Nesta parte da cidade, localizam-se bairros cujo conteúdo social e arquitetônico é mais refinado que em outros setores, como a Área Central e seus bairros populares, a Zona Norte, a Zona Oeste e a ampla periferia que lhes corresponde. Aqui fazemos uma ressalva de que o termo periferia não se aplica a um conceito descritivo geométrico, mas sim a um conceito crítico geográfico, pois, como salientava Milton Santos, para a geografia urbana, “a periferia está no polo” uma vez que “participaria do funcionamento dos custos de reprodução no centro” (Santos, 1994, p. 91) e também na medida em que muitas favelas se situam nas áreas mais refinadas e valorizadas da cidade, pois “o empobrecimento da periferia provoca a formação de uma verdadeira periferia dentro do polo” (Santos, 1979, p. 65. Grifo no original). Esse parece ser o caso da Zona Sul do Rio de Janeiro, eivada de favelas, bastando citar a favela da Rocinha, com mais de 72 mil moradores, segundo o censo demográfico do IBGE de 2022, encravada na encosta entre os luxuosos bairros de São Conrado e Gávea. Santos ainda nos recorda que, nas paisagens urbanas latino-americanas, embora os bairros dos ricos e da alta classe média, formados por casas isoladas ou prédios de apartamentos contrastando com as favelas, “a dosagem não é a mesma, e as favelas podem se apresentar diferentemente, seja no seu aspecto externo, seja quanto aos equipamentos domésticos de que dispõem. Pode-se então, falar de ‘favelas’ e de semifavelas” (Santos, 1982, p. 45).

Portanto, a Zona Sul da capital reúne bairros conhecidos internacionalmente por suas amenidades, verdadeiros polos atrativos turísticos que buscam justificar o label marketing de Cidade Maravilhosa. São eles: Copacabana, Ipanema, Leblon e Leme, com suas praias famosas. Confrontados com a realidade dos atos violentos, nesses bairros registram-se os menores quantitativos de mortes provocadas por tiroteios e as assim chamadas “balas perdidas” - projéteis disparados de armas de fogo durante os tiroteios - que ceifam vidas de territoriantes em seus deslocamentos diários. Do ponto de vista territorial, o que chama a atenção é o contraste entre os quantitativos reduzidos na Zona Sul em comparação aos setores da Zona Oeste e do Centro, contudo, ainda mais contrastante é o mais elevado quantitativo de mortes registrado no Leste Metropolitano, onde se localizam cidades importantes como Niterói - que foi capital do Estado do Rio de Janeiro - e São Gonçalo - a segunda maior cidade do estado em termos demográficos. Seguindo os passos da análise, a Baixada Fluminense, vasta periferia metropolitana, onde se destacam cidades de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis e Belfort Roxo, muito populosas e detentoras de altos índices de pobreza, a sociabilidade violenta é contundente, comprovada pelo número elevado de mortes.

No Diário do Rio (2022), publicou-se uma “geografia do mal” cartografada no Rio de Janeiro, revelando a brutalidade de injustiças territoriais por meio das quais os bairros vulnerabilizados pela pobreza e desigualdades são também os mais violentos, reforçando a análise que apresentámos com base na Figura 1. Nessa “geografia do mal”, alguns bairros da Zona Oeste, como Campo Grande, Paciência e Bangu, seriam dominados por ações da“narcomilícia”, enquanto outros trechos, como Taquara, Freguesia e Jacarepaguá, são descritos como área de atuação da chamada “milícia raiz”. No Recreio dos Bandeirantes e na Barra da Tijuca a sonegação lidera como principal delito. Já na Zona Norte, alguns bairros como Irajá e Madureira seriam alvo de assaltos. Outras localidades como Méier e parte da Grande Tijuca estariam entregues ao tráfico de drogas. Na Ilha do Governador, o maior problema fica por conta da dupla“assalto + sequestro”. Um dos exemplos que mais chamam a atenção nessa geografia do crime é o fato da Zona Sul carioca, assim como o Jardim Oceânico, serem conhecidos pela prática de“injúria racial”. Trata-se da geografia de uma sociabilidade violenta que desenha a injustiça territorial amplamente mediatizada pela representação algorítmica do jogo urbano que nos propusemos apresentar.

Conclusão

Buscámos oferecer uma análise crítica e atualizada sobre a violência urbana no Rio de Janeiro, explorando fundamentalmente a interseção entre tecnologia, necropolítica e justiça territorial. Esboçamos uma abordagem inovadora ao integrar a algoritmização da vida cotidiana, destacando aplicativos como Onde Tem Tiroteio e Fogo Cruzado, ferramentas de sobrevivência sociopolítica em um contexto de violência estrutural a fim de compreender a discricionaridade do urbicídio. Admitindo-se a sociabilidade violenta e a desigualdade territorial como questões prementes do Brasil urbano, prosseguimos com uma discussão sobre como a tecnologia influencia a governança e a vida cotidiana em áreas de conflito na metrópole em tela. A análise dos aplicativos como dispositivos de mediação entre os cidadãos e o território assumiu uma principalidade, destacando tanto seu potencial protetivo quanto os riscos de uma representação algorítmica ambígua, que pode reforçar desigualdades sociopolíticas, estigmas e estereótipos, além de diversos tipos de opressão. Ao final, reconhecemos a urgência de propostas concretas para a promoção da justiça territorial, incluindo políticas públicas ou ações coletivas que enfrentem o déficit ético apontado no texto. Essas propostas devem ser alinhadas com as "táticas" mencionadas no título, como a criação de redes comunitárias de monitoramento e a promoção de políticas de transparência algorítmica, que visem mitigar os efeitos negativos da representação algorítmica e fortalecer a autonomia dos cidadãos. Desenhamos por agora uma finalização estruturada em tópicos executivos. Assim, na metrópole carioca sitiada pela violência pública:

I. Eticamente, vislumbram-se os sujeitos corporificados de direito enredados na arte de resolver - e salvar - a vida, cujo reconhecimento afirmativo do Outro, esse interlocutor válido e legítimo, se interpõe como atitude moral impositiva que visa a mitigação e/ou eliminação das opressões. Especificamente, aborda-se o urbicídio como um problema ético que exige um horizonte de esperança para a sua superação. Nesse sentido, a justiça e a felicidade configuram tal horizonte no “jogo de cartas” da cidade contemporânea;

II. Teoricamente, as redes sociotécnicas se afirmam cada vez mais como receptores epistêmicos indissociáveis da produção do espaço urbano, especialmente vinculadas ao processo de territorialização dos sujeitos sociais em contexto de sociabilidade violenta num urbanismo plataformizado. Concebidas como um dado ou processo, isto é, num enforque genético ou atual, segundo Milton Santos, as redes reforçam a tendência de atualização técnica ou a “renovação técnica do urbano genérico”, nos dizeres de Ana Clara Torres Ribeiro (2013);

III. Metodologicamente, identifica-se a triangulação de análise que inclui: i) situação de sociabilidade violenta - necropolítica, de brutalismo; ii) condição existencial do territoriante em liminaridade; e iii) horizonte ético da justiça territorial. Essa triangulação nos leva à conclusão de que as injustiças territoriais agravadas pelo contexto de violência resultam na algoritmização do espaço urbano onde ocorrem. Por seu turno, os cidadãos e as cidadãs, especialmente aqueles e aquelas em idade economicamente ativa, enfrentam a obrigação de se tornarem usuários de aplicativos que lhes viabilizem a existência;

IV. Empiricamente, o uso de TIC, com o exemplo dos aplicativos Onde Tem Tiroteio e Fogo Cruzado, produz espaços liminares que definem a ação territorial de sujeitos sociais, em sua condição de territoriantes vinculados a redes digitalizadas. Essa liminaridade espacial abriga em suas dobras e redobras os corpos que se deslocam pela cidade, cotidianamente, sob o risco de morte aleatória, evidenciando, assim, a necessidade de definição de táticas dentro de estratégias governativas, neste caso, direcioinadas para o governo do território e o enfrentamento da ambiguidade da representação algorítmica;

V. Por fim, estratégica e taticamente, a governança territorial e informal, devidamente articuladas num cenário de representação algorítmica da cidade, por meio de aplicativos de plataformas digitais, insinuam o desafio existencial de superação do déficit ético rumo a uma cidadania urbana autônoma capaz de contribuir efetivamente para a garantia dos direitos humanos - direito à vida - e dos direitos urbanos, como os direitos à mobilidade, ao lazer e ao trabalho, visando à justiça territorial.

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1 O autor distingue os conceitos de cidade e urbano, afirmando que a cidade é um grande assentamento de construções estáveis, habitado por numerosa e densa população e o urbano é um estilo de vida marcado pela proliferação de tramas relacionais deslocalizadas e precárias. Por isso, ele defende uma antropologia urbana - antropologia do urbano -, “uma antropologia do instável, do não estruturado, não porque esteja desestruturado, mas sim por estar se estruturando, criando protoestruturas que finalmente serão abortadas. Uma antropologia não do ordenado nem do desordenado, mas do que é surpreendido no momento justo de ordenar-se” (Delgado, 2008, p. 12. Grifo no original).

2“Os direitos são aqui tomados como práticas, discursos e valores que afetam o modo como desigualdades e diferenças são figuradas no cenário público, como interesses se expressam e os conflitos se realizam. (...) Os direitos dizem respeito antes de aias nada ao modo como as relações sociais se estruturam” (Telles, 1994, p. 91). Concordamos amplamente com essa concepção de direito acatada por Vera da Silva Telles, que ultrapassa os limites inscritos na lei e nas instituições. Acrescentando que se deve atentar ao modo como desigualdades e diferenças são figuradas no cenário público, bem como elas são territorialmente configuradas.

3O territoriante não é apenas o residente de um lugar; também é usuário de outros lugares, visitante - intensivo ou extensivo - de outros lugares; ele estabelece sua relação com o espaço metropolitano a partir de um critério de mobilidade - os lugares onde desenvolve atividades - mais que a partir de um critério de densidade - o lugar que estatisticamente o fixa ao espaço segundo onde se localize sua residência principal; ele é habitante de geografias variáveis, em cidades com geometria variável. O territoriante o é entre lugares mais que habitante de um lugar. (Muñoz, 2010, pp. 26-28).

4A "cidade do pânico" não é apenas uma metáfora, mas uma forma de descrever a experiência urbana em que a velocidade e a tecnologia se tornam elementos constitutivos da vida cotidiana, moldando a nossa percepção do espaço e do tempo. Virilio (2011) sugere que a cidade, outrora vista como um centro de segurança e ordem, agora se torna um espaço de risco e vulnerabilidade, onde o pânico se torna uma experiência comum. Ele analisa como a velocidade da informação, a ubiquidade dos meios de comunicação e a exposição a eventos traumáticos, como guerras e acidentes, contribuem para a sensação de pânico e desorientação na sociedade contemporânea.

5A interpretação de Ruth Wilson Gilmore sobre a opressão impingida aos sujeitos encarcerados é muito oportuna para deciframos, por analogia, o racismo que interdigita as circunstâncias letais que degradam o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. Lembramos que, para a autora, “racismo é a produção e exploração extralegal ou sancionada pelo estado da vulnerabilidade de um grupo específico à morte prematura” (Gilmore, 2024, p. 334).

Recebido: 02 de Novembro de 2024; Aceito: 05 de Julho de 2025

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