Introdução
Em São Tomé e Príncipe (STP), são faladas quatro línguas crioulas de base portuguesa, três autóctones (santome, lung’Ie e angolar) e o kabuverdianu, nativo da Alta Guiné, além do português, que é língua oficial desde 1975. O santome e o angolar são autóctones da Ilha de São Tomé e o lung’Ie é autócne da Ilha do Príncipe. Estas três línguas têm estatuto de línguas nacionais em STP e são o foco deste capítulo.
Neste ambiente multilíngue, contudo, não havia, até o início dos anos 2000, tentativas oficiais de normalização ortográfica dessas línguas nacionais. Em 2010, o Alfabeto Unificado para as Línguas Nativas de São Tomé e Príncipe (ALUSTP), apresentado por uma Comissão formada por acadêmicos e intelectuais, foi proposto e sancionado pelo Governo para se representar alfabeticamente as línguas santome, angolar e lung’Ie. Em síntese, o anteprojeto do ALUSTP propõe um sistema descolado da ortografia portuguesa, configurando-se um avanço em relação às ortografias lusitanizantes (Araujo & Agostinho, 2010). Somado à grafia oficial, desde 2009, o lung’Ie vem sendo ensinado nas escolas, devido, sobretudo, ao incentivo do Governo Regional do Príncipe à difusão da cultura principense (Agostinho, 2015). Com efeito, a inclusão do ensino de uma língua nacional como o lung’Ie no currículo das escolas na ilha do Príncipe revela uma relação de complementariedade com a oficialização da grafia, haja vista que o planejamento e a padronização linguística auxiliam no ensino do lung’Ie, trazendo novas publicações e materiais didáticos. Por conseguinte, as duas ações apontam para um caminho de preservação e difusão de línguas que, por muito tempo, estiveram restritas ao mundo da oralidade.
Nesse sentido, o presente capítulo1 tem como objetivo principal discutir as duas práticas linguísticas mencionadas, tendo em vista que ambas fazem parte de uma importante etapa para a efetivação de ações políticas em cenários multilígues. Ademais, abordaremos as línguas crioulas de STP sob a perspectiva histórica e linguística em conjunto com sua ortografia unificada.
Para tanto, este texto está dividido da seguinte maneira: na seção 1, apresentaremos a contextualização histórica; a seção 2 tratará das línguas crioulas de STP; a seção 3 trará discussões relacionadas ao uso do lung’Ie na escola e na mídia, uma vez que esta é a única das três línguas que faz parte do currículo escolar; a seção 4 trará o ALUSTP com exemplos nas três línguas e, na seção 5, teceremos algumas considerações finais.
1. Contextualização histórica
Antes da chegada dos portugueses, as ilhas São Tomé, Príncipe e Ano Bom, localizadas no Golfo da Guiné, eram desabitadas. Segundo Cardoso (2007), embora não se possa afirmar ao certo, as ilhas de São Tomé e Príncipe teriam sido descobertas pelos navegadores portugueses João de Santarém e Pedro Escobar, chegando a São Tomé em 21 de dezembro de 1470 e ao Príncipe em 17 de janeiro de 1471. Segundo Araujo et al. (2013), a data exata da chegada de europeus à Ilha de Ano Bom, hoje parte da Guiné Equatorial, é controversa. O ano da descoberta de Ano Bom é situado entre 1471 e 1501 por diferentes autores (Araujo et al. 2013).
O povoamento de São Tomé por portugueses, outros europeus e escravizado se deu através de uma ordem da coroa portuguesa e começou a ser contínuo a partir de 1493 (Cardoso, 2007). Segundo Libowicka-Węglarz (2012), a Ilha de São Tomé foi a primeira a ser povoada, entre os anos 1480 e 1493. O povoamento da Ilha do Príncipe, por sua vez, se iniciou em 1500 (Maurer, 2009), provavelmente a partir de São Tomé. Ainda segundo Libowicka-Węglarz, as ilhas do Príncipe e de Ano Bom foram povoadas através de São Tomé por portugueses e escravos africanos oriundos de São Tomé a partir de 1500 e de 1503, respectivamente.
Segundo Hagemeijer (2009), a ocupação de São Tomé e Príncipe passou por duas fases distintas. A primeira fase ocorreu nos séculos XV e XVI, a partir do cultivo e produção da cana-de-açúcar, e a segunda fase ocorreu nos séculos XIX e XX, a partir do ciclo do cacau e do café. A primeira fase de povoamento de São Tomé começou com a introdução da cana-de-açúcar no século XV pelos portugueses e por uma massa populacional africana das mais diversas origens e línguas, principalmente de regiões como o delta do Níger, onde são faladas línguas do grupo Edo, e do Congo e Angola, onde são faladas línguas Bantu (Christofoletti, 2013). É neste cenário multilíngue que surge uma língua emergencial, do contato entre os colonos e os escravos (Araujo et al. 2013, 29), que, expandida, deu origem ao Proto-crioulo do Golfo da Guiné (PGG) (cf. Ferraz 1979, Hagemeijer 2011, Bandeira, 2017).
Após o PGG ter sido formado, deu-se início à separação geográfica de seus falantes que, outrora escravizados e alojados em São Tomé, por um lado, são levados a regiões, como as ilhas de Ano Bom e do Príncipe, e, por outro, tornam-se foragidos dos engenhos e, ao formar quilombos, dão origem à comunidade dos Angolares em São Tomé (cf. Bandeira, 2017).
No que se refere à formação do lung’Ie, as levas de escravos, oriundas de São Tomé, transplantadas para o Princípe, eram, em sua maioria, falantes do protocrioulo (Hlibowicka-Weglarz, 2012). Com a separação e o posterior isolamento desses falantes, provocado pelo deslocamento para a Ilha do Príncipe, o protocrioulo passa por uma especiação, constituindo-se, anos depois, no lung’Ie. As ilhas de São Tomé e Princípe funcionaram como entreposto no tráfico de escravos, possuindo contratos a prazo com o rei de Portugal quanto ao abastecimento de escravos para a Mina e, logo depois, para Lisboa e para as sociedades coloniais das Américas (Hagemeijer, 1999; Hlibowicka-Weglarz, 2012). Em vista disso, soma-se ao contingente de escravos advindo de São Tomé um grande número de cativos do Delta do Níger (zona em que se falavam línguas edoídes) que teria sido transportado diretamente para a Ilha do Príncipe, sem passar por São Tomé. Adicionalmente, contrário a São Tomé que, a partir de 1520, recebeu um grande contingente de escravos do Congo e de Angola, o número de prisioneiros provenientes de zonas bantu com permanência fixa na Ilha do Príncipe foi restrito, posto que o ciclo do açúcar se desenvolveu, sobretudo, na ilha de São Tomé (Hagemeijer, 1999).
Entre os anos de 1493 e 1501, os portugueses descobriram a ilha de Ano Bom, até então inabitada, mantendo essa possessão até 1789. Evidências linguísticas apontam que as levas de escravos transplantados a Ano Bom passaram períodos em São Tomé, primeira ilha a ser habitada na região do Golfo da Guiné, ao ponto de levarem para a ilha de Ano Bom a língua falada naquela colônia, o protocrioulo (Araujo et al., 2013). Com o decorrer dos anos, em Ano Bom, a língua dos transplantados passa por uma especiação, consolidando-se, por conseguinte, numa nova língua, o fa d’Ambô. A manutenção das estruturas linguísticas do fa d’Ambô se deve, essencialmente, ao fato de que a especiação do PGG, tal qual como aconteceu com o lung’Ie, deu-se nos primeiros anos de habitação das ilhas do Ano Bom e do Princípe, séculos antes da transferência de domínio político de Ano Bom à Coroa espanhola (Ferraz, 1979).
Os indivíduos remanescentes na Ilha de São Tomé, ao lado do contingente africano, tiveram dois destinos: os membros do grupo étnico forro e os homens africanos (livres e não livres) permaneceram na capital, enquanto outros (incluindo forros e escravos) escaparam para formar quilombos, criando, assim, um novo grupo étnico, os angolares. O PGG, falado na capital, deu lugar, posteriormente, ao santome. Com a saída massiva dos colonizadores portugueses da capital, no início do século XVII, é possível supor que a evolução do santome tornou-se livre do modelo da língua portuguesa, contribuindo para sua extensão, o que explicaria também o índice de elementos de origem africana no seu léxico e na sua fonologia (Ferraz, 1979). Quanto ao segundo grupo, presume-se que, por volta dos séculos XVI, os já falantes de protocrioulo, na condição de escravos foragidos, afastaram-se da capital, indo em direção a locais inabitados, formando assim uma nova comunidade (Seibert, 2004). Posteriormente, com o isolamento e com aporte bantu, esse protocrioulo ramificou-se em uma nova língua, o angolar (cf. Hagemeijer, 2009, p. 5; Hlibowicka-Weglarz, 2012).
A segunda fase de povoamento de STP, a partir do século XIX, trouxe trabalhadores contratados de outros países africanos, sobretudo de Cabo Verde (Hagemeijer, 2009), o que contribuiu ainda mais para o plurilinguismo dessa sociedade. Posteriormente, outros grupos de falantes de kabuverdianu foram levados ao Príncipe devido à escassez de mão-de-obra local, relacionada a uma epidemia de doença do sono na ilha durante o início do século XX (Maurer, 2009).
Os dados referentes ao número atual de habitantes de São Tomé e Príncipe são, muitas vezes, díspares. Assim, a população de São Tomé e Príncipe pode variar de 100 mil a 200 mil habitantes, dependendo da fonte. A população da ilha do Príncipe varia entre 6 mil a 13 mil habitantes (Agostinho, 2015). Segundo Cardoso (2007), a população de São Tomé em 2000 era de 133.624 habitantes, enquanto a do Príncipe era de 6.036, somando 139.660 habitantes para todo o arquipélago. No entanto, o CIA Factbook estima que a população do arquipélago seja de 175.808, dado de julho de 2010 (Central Intelligence Agency, 2017). Segundo o Censo de 2011 (INE, 2012), o país tem 187.356 habitantes e a Região Autônoma do Príncipe possui 7.542 habitantes.
2. As línguas crioulas do Golfo da Guiné
Segundo Myers-Scotton (2002), são necessários alguns ingredientes sócio-históricos básicos para a formação de pidgins e crioulos: primeiramente, falantes de línguas ininteligíveis entre si devem ser colocados, lado a lado, num sistema plantation isolado. Com a necessidade de se comunicar, emerge uma língua franca, no entanto nenhuma das línguas dos escravos tem número de falantes suficiente para ser escolhida como tal, ou não há um grupo majoritário com prestígio suficiente para impor sua língua como franca. Dessa maneira, a outra opção seria a língua dos colonizadores, que contava com maior prestígio. Como os escravos não passavam muito tempo com os colonizadores, não tinham muitas oportunidades para adquirir a língua, ou seja, a transmissão era frequentemente irregular. Dessa forma, o objetivo era criar uma língua para ampliar a comunicação. Esses ingredientes, somados ao ambiente ‘ilha’ e à violência do sistema escravista, onde havia pouca chance de movimentação dos indivíduos, e às imposições linguísticas e culturais do colonizador, bem como à multiplicidade linguística e à criatividade dos falantes, tornaram STP um cenário perfeito para o surgimento de línguas crioulas (cf. Agostinho, 2015). Holm (1988) lembra que pidgins e crioulos não são versões erradas das línguas dos colonizadores, mas línguas novas.
Há quatro línguas crioulas autóctones e geneticamente relacionadas (Schuchardt, 1889, Günter, 1973, Ferraz, 1979, Maurer, 2009, Hagemeijer, 2009) no Golfo da Guiné: santome (ou forro), angolar, lung’Ie e fa d’Ambô. Atualmente, as três primeiras são faladas em São Tomé e Príncipe, e têm estatuto de línguas nacionais neste país, e a última é falada nas ilhas de Ano Bom e Bioko, na Guiné Equatorial. As quatro línguas, embora aparentadas, são atualmente ininteligíveis entre si. Além das três línguas crioulas nacionais, é falado o kabuverdianu, língua crioula de base portuguesa nativa de Cabo Verde, e o português, língua oficial. Além destas, ainda são faladas outras línguas como francês e inglês, ambas ensinadas nas escolas. Segundo Agostinho (2015), o kabuverdianu é falado por centenas de pessoas na Ilha do Príncipe, residentes, sobretudo, nas antigas roças coloniais ou em propriedades rurais isoladas.
O lung’Ie é falado majoritariamente na Ilha do Príncipe. O número de falantes nativos, dependendo da fonte, varia de 20 (Maurer, 2009) a 1300. Valkhoff (1966) mencionou ter tido dificuldade para encontrar falantes nativos desta língua, já em 1958. Günther (1973), por sua vez, aponta que o lung’Ie estaria em processo de extinção, sendo substituído pelo santome e pelo português. Segundo Araujo e Agostinho (2010), a mídia e a escolarização (fenômenos pós-independência) dão ao português um prestígio que não pode ser rivalizado, o que implica um abandono crescente das línguas nacionais.
Segundo Crystal (2000), os principais fatores indicativos para a classificação de uma língua em processo de extinção são o número de crianças que adquirem a língua como primeira, a atitude da comunidade face à língua em questão e, por fim, o grau de impacto de línguas maioritárias na comunidade linguística em questão (Crystal, 2000). O autor define três níveis de classificação para as línguas: segura, ameaçada e extinta. Além dessa tipologia, Michael Krauss (1992, p.4) acrescenta a classificação de moribunda para a língua que não está sendo mais aprendida como língua materna pelas crianças. Para Crystal (2000), essa nova categoria captura uma noção que vai além de um mero estágio de ameaça, porque tal classificação, baseada em uma analogia com as espécies de animais que são incapazes de se reproduzir, aborda a característica principal de línguas dessa categoria: a inviabilidade de uma transmissão intergeracional (cf. Agostinho et al., 2016).
Segundo Agostinho et al. (2016), de acordo com a tipologia de Crystal (2000), pode ser categorizado como uma língua ameaçada, devido à ausência de crianças a adquirindo como primeira língua, à atitude da comunidade que não tem buscado, majoritariamente, fazer uso regular do lung’Ie em todas as circunstâncias sociais, e, por fim, ao nível de impacto de outras línguas, principalmente o português, língua oficial e mais utilizada em todas as esferas sociais, e o kabuverdianu, já que há muitos falantes descendentes dos trabalhadores contratados que chegaram na ilha no final do século XIX e começo do XX.
Atualmente, existem mais falantes nativos de kabuverdianu no Príncipe do que falantes nativos de lung‘Ie, havendo, inclusive, inúmeros falantes monolíngues. Maurer (2009) afirma que, embora o Censo de 2001 (INE, 2001) tenha apontado que 16,3% da população da Ilha do Príncipe, aproximadamente mil pessoas, seriam falantes do lung’Ie, trata-se de um dado superestimado, a não ser que se considere o conhecimento passivo da língua como critério. Agostinho (2015) afirma que há, em média, apenas 200 falantes de lung’Ie na Ilha do Príncipe.
O santome é a língua crioula que possui maior número de falantes no país e a mais prestigiada. O Censo de 2011 (INE, 2012) não oferece dados sobre o bilinguismo ou o multilinguismo, porém afirma que cerca de 98,9% da população são-tomense fala o português (sem defini-lo como primeira língua, L1, ou como segunda língua, L2). Um total de 72,4% da população nacional falaria o santome e 2,4%, o lung’Ie. As línguas restantes (angolar, kabuverdianu, francês, inglês, entre outras) formam o grupo ‘outras línguas’, totalizando 12,8% do país. No caso do santome, os níveis de domínio da língua também variam, mas há claramente duas tendências em curso, observadas em trabalho de campo: o santome tem se tornado a língua crioula mais falada (mesmo pelos outros grupos minoritários) em São Tomé e Príncipe e, cada vez menos, as pessoas o aprendem como língua materna, papel desempenhado pelo português.
Os falantes do angolar, por seu turno, vivem, hoje, nas zonas do litoral de São Tomé, no distrito de Caué, entre Ribeira Afonso até Porto Alegre e, no litoral noroeste, a partir de Neves até Bindá, no distrito de Lembá, e ademais, próximos à cidade de São Tomé, existem pequenos grupos de falantes em São João da Vargem, Pantufo e Praia Melão (Ceita, 1991). Atualmente, de acordo com os resultados do último censo realizado no país, da população absoluta (173.015), 11.377 são falantes do angolar, representando uma parcela de cerca de 6% da população (INE, 2012).
O português é a língua oficial da República de São Tomé e Príncipe, empregada em todas as comunicações de Estado, na educa¬ção e na mídia. Segundo Araujo & Agostinho (2010), a norma portuguesa europeia é ensinada nas escolas e dominá-la é o objetivo do sistema escolar. Segundo os autores, o uso generalizado do português na mídia, na escolarização, no governo, bem como o uso das variantes reestruturadas que convivem com variantes próximas da ‘norma’ europeia não podem ser descartados do contexto sociolinguístico de STP. Em resumo, STP trata-se de um país multilíngue e que as línguas autóctones, bem como as outras línguas faladas no arquipélago constituem, ao lado do português, a complexa ecologia linguística do país.
3. Línguas crioulas em uso: o caso do lung’Ie
Nesta seção, apresentaremos o caso do lung’Ie, uma vez que é a única das línguas crioulas de STP que é ensinada nas escolas do país. Segundo Agostinho (2015), lung’Ie é falado na Ilha do Príncipe por cerca de 200 pessoas com nível de competência variado, geralmente com mais de sessenta anos e não há falantes monolíngues. O ensino de lung’Ie está restrito às escolas da Região Autônoma do Príncipe.
É certo, todavia, apontar que o lung’Ie, como língua materna, possui uso muito restrito e está limitado à população da Ilha do Príncipe. No entanto, segundo Agostinho (2015), percebe-se um aumento de interesse em relação à cultura principense - o nome do gentílico será principense, exceto se se referir a um cabo-verdiano nascido na Ilha do Príncipe, portanto, principense é o nome do grupo étnico - e ao aprendizado do lung’Ie. Segundo a autora, alguns jovens têm um conhecimento passivo do lung’Ie, mas não têm competência linguística para falar; a língua não é, portanto, transmitida intergeracionalmente. Um dos motivos apontados pelos próprios habitantes da Ilha do Príncipe é a relutância que os pais apresentavam em transmitir a língua, pois pensavam que o aprendizado do lung’Ie atrapalharia o aprendizado do português (Agostinho, 2015). Quanto a este fato, Pinho (2008) argumenta que falantes de línguas minoritárias podem ter atitude positiva quanto à sua língua, mas podem não querer transmiti-la a seus filhos por razões como a dificuldade de aprendizado da língua majoritária, preconceito com o ‘sotaque’ e sentimento de inferioridade (cf. Agostinho et al. 2016). Segundo Agostinho et al. (2016), os locais contam que os pais e avós falavam em lung’Ie, mas as crianças sofriam abusos físicos e psicológicos se não respondessem em português. Como apontado por Agostinho (2015), mesmo entre os falantes inteiramente competentes em lung’Ie, a língua utilizada em seu cotidiano é predominantemente o português.
Além de fatores sociais, há uma razão histórica para o declínio do número de falantes do lung’Ie: no início do século XX, houve uma epidemia de doença do sono que dizimou a população nativa do Príncipe, restando apenas 300 pessoas (Günther, 1973). Sendo assim, devido à situação de depopulação e a escassez de mão-de-obra, foram levados para as roças - no português de São Tomé e Príncipe, as propriedades rurais agroindustriais coloniais são chamadas de ‘roças’, termo importado do Brasil Colonial - do Príncipe trabalhadores assalariados de outras regiões, principalmente de Cabo Verde (cf. Agostinho, 2015).
O estatuto político administrativo da Ilha do Príncipe foi aprovado pela Assembleia Nacional em 1994. A partir de então, a Ilha do Príncipe passou a ser uma Região Autônoma de STP. Sendo assim, nos últimos anos, tem havido uma forte associação entre ser principense e conhecer o lung’Ie (cf. Agostinho, 2015). Segundo Garrett (2008), mesmo que qualquer língua seja percebida por seus falantes como inferior em relação à língua oficial, ela pode servir também como um símbolo de sua identidade. Dessa forma, se de um lado o Governo Regional do Príncipe apoia essa ideia, o Governo Central se mostra menos entusiasmado em promover tal divisão. Segundo Devonish (2008), há dois tipos de motivações por trás do planejamento linguístico. A primeira é fazer com que a língua venha a ser ou continue sendo usada como expressão da identidade nacional de um povo, produzindo uma “língua nacional”. A segunda é fazer com que uma variedade da língua seja usada nas instituições do estado, tornando-se assim uma “língua oficial”. No caso do Príncipe, a motivação para a revitalização linguística do lung’Ie é a primeira (cf. Agostinho et al. 2016).
O planejamento linguístico das línguas crioulas é, em geral, problemático, devido primeiramente a questões relativas à oficialização, manutenção, codificação e padronização destas línguas, que aparecem em contextos multilíngues e de diglossia. Além disso, essas línguas, com raras exceções2, não contam com uma tradição escrita, o que dificulta a padronização a partir de um modelo pré-existente e aumenta a possibilidade de grafias autorais. A situação do Príncipe é particular pelo convívio do lung’Ie como membro minoritário em um ambiente com falantes de outras línguas crioulas (cf. Araujo & Agostinho, 2015), e pelo perigo de extinção da língua.
Uma das questões que surgem no processo de padronização das línguas crioulas é a dificuldade de passar do crioulo para a língua lexificadora com competência em ambas (Appel & Verhoeven, 1995), mas, no caso do Príncipe, o problema é justamente o oposto, ou seja, passar da língua lexificadora para o crioulo, já que praticamente todos os nativos falam português (cf. Agostinho, 2015). Meyn (1983 apudGarrett, 2008) questiona se aprender a língua dominante não-crioula não significaria colocar a identidade cultural e histórica do falante do crioulo em perigo.
Segundo Appel & Verhoeven (1995), a política linguística se manifesta em dois principais domínios: na educação e na mídia. Podemos, então, analisar o caso do Príncipe em cada um destes domínios (cf. Agostinho, 2015). A escola e o sistema de ensino são considerados por Severing & Weijer (2008) como o canal mais eficiente na área de planejamento linguístico. Dessa forma, é possível observar como a escola e o sistema de ensino têm influenciado no planejamento linguístico da Ilha do Príncipe. Desde 2009, a língua vem sendo ensinada nas escolas da Região Autônoma do Príncipe, resultado do incentivo à cultura principense pelo Governo Regional do Príncipe, sendo a única língua crioula ensinada nas escolas em STP (Agostinho, 2015). No entanto, não há professores treinados para lecionar a língua, nem material didático. Os professores são os principenses mais idosos, que ainda têm conhecimento ativo da língua. A cada quinzena, os professores se reúnem para programar as aulas, porém a discussão é muitas vezes pautada na ortografia, já que o lung’Ie ainda não tinha uma ortografia padrão até 2010, e a discussão sobre a escolha entre uma escrita fonética ou etimológica ainda não havia sido resolvida.
Com a implementação ALUSTP, que estará em período experimental até 2018, todos os instrumentos linguísticos passarão a utilizar a mesma grafia padronizada. No entanto, apesar de sua implementação, o acordo ortográfico continua desconhecido pela maioria dos principenses, inclusive para os professores de lung’Ie (Agostinho et al. 2016). Auroux (1992) sugere que, “com a imprensa e a estandardização, a ortografia se torna um problema, às vezes acidamente discutido”. Em geral, os professores de lung’Ie ensinam somente listas de palavras, e não há aulas de estruturas linguísticas ou conversação e, apesar dos encontros quinzenais, cada professor define sozinho de que forma e com quais materiais ministrará suas aulas (Agostinho, 2015). A falta de instrumentos linguísticos é, portanto, uma grande dificuldade para o aprendizado do lung’Ie nas escolas, já que estes instrumentos permitem notadamente uma maior estabilidade na metodologia de ensino (Auroux, 1998).
Segundo Agostinho et al. (2016), o lung’Ie era ensinado desde a pré-escola (a crianças de 3 a 5 anos) até a 11ª classe (equivalente ao 2o ano do ensino médio no Brasil) de 2009 a 2014, sendo, contudo, uma disciplina optativa. A partir de 2016, as aulas a partir da 5ª classe passam a ser obrigatórias, tendo nota por presença e atividades. Atualmente, há nove professores, de 24 a 64 anos, sendo um deles não alfabetizado. Os professores lecionam cerca de 14 horas/aula por mês e recebem cerca de €20 por mês (apenas nos meses de aula) sem auxílio alimentação e transporte (Agostinho et al. 2016).
No que diz respeito à mídia, a televisão local tem três canais abertos, sendo um são-tomense (Televisão São-tomense, TVS), que não tem programação 24h) e dois portugueses (Rádio e Televisão Portuguesa- RTP e RTP África), todos transmitidos em português (Agostinho, 2015). O canal são-tomense exibe alguns programas em santome, mas não em lung’Ie e videoclipes nacionais com músicas em forro e algumas em lung’Ie. Cerca de duas vezes por semana são transmitidos programas de rádio em lung’Ie, na Rádio Regional do Príncipe. Os programas consistem em conversas informais sobre a língua, sobre a vida no Príncipe, sobre política, apresentações musicais, lições sobre a língua, traduções para o lung’Ie, entre outros. Os ouvintes podem telefonar para a produção do programa radiofônico e tirar dúvidas sobre a língua durante as transmissões (Agostinho, 2015). No entanto, os programas não são reprisados por não haver memória suficiente para a gravação dos mesmos. Além disso, há transmissões de músicas em lung’Ie, mas a maioria da programação musical é em português, kabuverdianu e santome (Agostinho, 2015).
Segundo Agostinho (2015), foi possível observar que o interesse em aprender o lung’Ie tem crescido. Além das aulas na escola e programas de rádio, há um encontro semanal que ocorre no Centro Cultural do Príncipe chamado palixa na lung’Ie ‘conversar em lung’Ie’, onde se elege um tema sobre o qual os presentes deverão discorrer em lung’Ie. O encontro é promovido pelo Governo Regional do Príncipe e é, muitas vezes, transmitido pela Rádio Regional do Príncipe (Agostinho, 2015).
Para Orlandi (2009), a língua é parte da identidade pessoal do falante além de ser patrimônio histórico da humanidade, uma vez que a perda de uma língua equivale à perda da cultura. No mesmo sentido, Fishman (2006) coloca que as línguas minoritárias deveriam ser consideradas como recursos naturais de uma nação e que são imprescindíveis para seu enriquecimento linguístico e cultural (cf. Agostinho et al. 2016). Segundo Agostinho et al. (2016), estas preocupações existem entre os professores de lung’Ie e na camada jovem da população do Príncipe, apesar de os jovens não falarem a língua. As autoras observam que a língua é tida para os alunos como uma forma de se distanciar de São Tomé e de outros países e como afirmação de sua identidade.
Dessa forma, é possível dizer que o planejamento e a padronização da língua, por meio de instrumentos linguísticos, preencherá uma lacuna no ensino do lung’Ie, abrindo caminho para novas publicações e materiais didáticos, bem como colaborando com o crescente interesse pela língua e para a sua promoção como língua nacional de São Tome e Príncipe (Agostinho, 2015).
4. Ortografia unificada
Nesta seção, apresentaremos o Alfabeto Unificado para as Línguas Nativas de São Tomé e Príncipe (ALUSTP). Segundo Araujo & Agostinho (2010), “o anteprojeto do Alfabeto Unificado para as Línguas Nativas de São Tomé e Príncipe, apresentado ao Governo de STP por uma Comissão formada por acadêmicos e intelectuais3, é uma proposta para se representar alfabeticamente as línguas santome, angolar e lung’Ie4. A Comissão, no preâmbulo do anteprojeto do Decreto, declara que, embora as línguas sejam mutuamente ininteligíveis, partilham um número substancial de propriedades lexicais e gramaticais, justificando, assim, uma ortografia unificada. Portanto, os cognatos lexicais, juntamente com o compartilhamento de propriedades gramaticais, justificam a adoção de um alfabeto unificado. O alfabeto adotado é de base fonético-fonológica, em detrimento de um alfabeto lusitanizado, pois o léxico de origem portuguesa sofreu ‘profundas alterações fonológicas’, há grande porcentagem de cognatos compartilhados pelas três línguas e não há tradição escrita” (cf. Agostinho, 2015).
Não apresentaremos aqui a descrição fonológica de cada uma das línguas por não ser esse o objetivo deste texto. Para detalhes sobre os sistemas fonológicos destas línguas, conferir Agostinho (2015, 2016) e Bandeira (2017).
4.1. Grafia das vogais
Serão apresentados os fonemas vocálicos seguidos de seus grafemas e de exemplos em sílaba tônica e átona.
* Segundo Agostinho (2015), estes pronomes podem ser pronomes livres em função de interface sintática-discursiva, sendo nestes casos topicalizados, muito similar à expressão de tópico com pronome resumptivo, que aparece em várias línguas do mundo e pronomes também são usados como pronomes isolados e em construções clivadas.
A nasalização é indicada com <m> ou <n> precedido da vogal. Em casos de espalhamento de nasalidade da consoante nasal em onset para a vogal precedente, não é preciso marcação, como em:
• lung’Ie: kandja [kɐ̃djɐ] ‘candeeiro’
O espalhamento é opcional, como podemos observar em:
• lung’Ie: mana [mɐ̃nɐ] ou [manɐ] ‘irmã’
• lung’Ie: mama [mɐ̃mɐ] ou [mamɐ] ‘seio’
A distinção entre vogais médias /e, o/ e /ε, ɔ/ antes de consoante nasal é neutralizada na ortografia:
Há apenas um caso excepcional, no qual o segmento da consoante nasal foi apagado historicamente, mas o traço de nasalidade foi mantido na pronúncia e na ortografia. Usaremos, de acordo com o ALUSTP, um til <~> para marcar este traço.
• lung’Ie: ũa [ũɐ] ‘um’
Vogais longas5 serão representadas pela sequência de duas vogais idênticas.
4.2. Grafia das consoantes
Serão apresentados os fonemas consonantais seguidos de seus grafemas e de exemplos.
* Segundo Agostinho (2016), para alguns falantes, os alofones [t] e [t] estão em distribuição complementar: o alofone [t] ocorre diante da vogal alta anterior /i/ ou de aproximante palatal /j/, enquanto [t] ocorre nos demais casos. Para outros falantes, há um caso de variação livre diante de [i], [ɪ] ou [j] em sílabas tônica, pré-tônica e átona não final, onde tanto [t] como [t] podem ocorrer; e um caso de distribuição complementar diante de [i], [ɪ] ou [j] em sílaba átona final, contexto em que [tʃ] é obrigatório antes de [ɪ, j]. Segundo a autora, a palatalização de /t/ é obrigatória em sílabas átonas finais e opcional em sílaba tônica ou pré-tônica (AGOSTINHO 2016). Diferentemente do lung’Ie e do angolar, em santome, as consoantes africadas /t/ e /d/ são fonemas, como se pode observar no seguinte par mínimo: / t/ [mta] ‘perseguir’ e /t/ [mta] ‘montar, entrar em transe’. As africadas /t/ e /d/ realizam-se foneticamente como [t] e [d] em todos os contextos vocálicos, não apenas diante de [i] como [mid] ‘mezinha’ e em [tada] ‘tipo de acampamento’, contudo a maior frequência é diante de [i] (BANDEIRA 2017).
** Em angolar, diante de /i/ ou /j/, a consoante fricativa interdental surda // pode se realizar como [s] ou [].
*** Em angolar, diante de /i/ ou /j/, a consoante fricativa interdental surda // pode se realizar como [z] ou [].
As nasais em coda silábica são representadas como <m>, antes de <p> e <b>, e <n>, antes das demais consoantes:
As nasais silábicas são representadas como <m>, antes de <p> e <b>, e <n>, antes das demais consoantes.
O acento fonológico e o tom não são marcados na grafia do ALUSTP.
Conclusão
A falta de desenvolvimento e de implementação de políticas linguísticas como o estabelecimento de grafias oficiais para as línguas nacionais africanas leva a um silenciamento patente dos seus falantes, posto que os mesmos não podem se expressar em todas as esferas sociais de uso da língua. A mudança dessa situação somente pode ser viabilizada pelo reconhecimento oficial das suas línguas, garantindo voz aos seus falantes.
Sendo assim, advogamos aqui por uma política linguística, nos termos de Webb (2009), que inclua os falantes e os mais velhos como parte essencial de sua execução e não que haja imposição, como foi feito com o português em STP no início do século XIX (cf. Agostinho, 2015; Agostinho et al. 2016). Segundo Agostinho et al. (2016), no que diz respeito à criação de materiais linguísticos, é importante que os autores enfatizem a contribuição dos falantes em sua elaboração. No caso das aulas e dos encontros, segundo os autores, é interessante ter os mais velhos como centro da discussão e como professores, mas há a necessidade de acompanhamento de especialistas junto a eles. Dessa forma, a aceitação da população em geral será mais ampla em relação à ortografia, aos instrumentos linguísticos e às aulas na escola (cf. Agostinho et al. 2016).
As ações como as desenvolvidas em STP apontam para a importância do conhecimento mais extenso das línguas nacionais por meio do trabalho de descrição e documentação linguística, sendo, por conseguinte, etapas essenciais para a efetivação de ações de política em cenários multilíngues. Portanto, deve ser o norte para o direcionamento de novas políticas linguísticas em países como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial e Cabo-Verde, cuja maioria da população apresenta as línguas nacionais como primeira língua.