Introdução
A Organização Mundial de Saúde (OMS), em revisão de 2002, define Cuidados Paliativos como “Uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameaçam a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual” (ANCP Brasil 2009).
Os Cuidados Paliativos são indicados para todos os pacientes com doença ameaçadora da continuidade da vida, por qualquer diagnóstico, com qualquer prognóstico ou idade e a qualquer momento da doença em que eles tenham expectativas ou necessidades não atendidas.
Ao longo da evolução da doença, a intensidade dos Cuidados Paliativos é variável, sendo que o foco e os objetivos vão, progressivamente, transitando de uma ênfase em tratamentos modificadores da doença até abordagens com intenção exclusivamente paliativas, ou seja, de controle de sintomas que impactam na qualidade de vida.
A prática dos Cuidados Paliativos baseia-se no controle impecável dos sintomas de natureza física, psicológica, social e espiritual (Maciel 2009). Os princípios do controle destes sintomas se baseiam em (Neto 2006):
- Avaliar antes de tratar - Explicar as causas dos sintomas - Não esperar que um doente se queixe - Adotar uma estratégia terapêutica mista - Monitorizar os sintomas - Reavaliar regularmente as medidas terapêuticas - Cuidar dos detalhes - Estar disponível
Objetivo
Este trabalho objetiva descrever o desenvolvimento de um aplicativo móvel, multiplataforma, de referência em Cuidados Paliativos.
Método
Estudo descritivo sobre o desenvolvimento de um aplicativo móvel para avaliação e assistência aos pacientes que estão em Cuidados Paliativos.
O aplicativo, denominado “Cuidados Paliativos”, foi desenvolvido em 2016 e publicado, no Google Play1, no dia 02 de fevereiro 2017, pelo Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. O projeto contou com uma equipe multidisciplinar para levantamento dos requisitos de software, elaboração da fundamentação teórica, análise do cotidiano dos profissionais atuantes na área e melhores práticas de usabilidade e disponibilização das informações.
As tecnologias, Angular JS e Ionic, empregadas no desenvolvimento, foram direcionadas para plataforma móvel utilizando ferramentas para a construção de aplicativos híbridos, no intuito de possibilitar que seja utilizado em diferentes sistemas operacionais (Android, IOS e Windows Fone) (Prezotto and Boniati 2014). Para as interfaces foram utilizadas as tecnologias: Bootstrap, jQuery e JavaScript. O banco de dados escolhido foi o CouchDB, por permitir a criação e manuseio de dados off-line com sincronismo nativo.
Para a gestão e planejamento do projeto foi utilizada a metodologia Scrum, considerada uma metodologia ágil, pois propõe a divisão do projeto em ciclos, normalmente, mensais ou semanais, mas não superiores a 30 dias, chamados de sprints. Cada sprint representa uma parte do projeto, previamente definida, a ser desenvolvida no período. Além disso, a metodologia sugere reuniões rápidas e diárias entre os interessados para avaliar o andamento do projeto e as dificuldades encontradas. Desta forma, o processo de desenvolvimento se torna interativo e dinâmico, propiciando mais agilidade e entregas parciais (Ferreira et al. 2005).
Foi realizada uma extensa pesquisa sobre as indicações preconizadas pelos centros de referência em Cuidados Paliativos. Os dados mais recentes demonstram a relevância de capacitar os profissionais de saúde envolvidos no cuidado do paciente em Cuidados Paliativos quanto ao uso das escalas PPS (Palliative Performance Scale) (Maciel and Carvalho 2009) e ESAS (Edmonton Symptom Assesment System) (Monteiro 2012), que auxiliam na avaliação da performance física do paciente e no manejo de sintomas. A performance física está associada ao prognóstico das doenças oncológicas e o manejo de sintomas está diretamente relacionado à qualidade de vida do paciente e a qualidade da assistência oferecida.
A Escala de Performance Paliativa (PPS) é uma ferramenta utilizada em situações de elegibilidade para os Cuidados Paliativos, pois permite a avaliação da funcionalidade atual do paciente e a compreensão da trajetória de sua doença de base. O escore total varia de 100%, que significa máxima atividade funcional, até 0%, indicando morte (Maida et al. 2008).
A escala ESAS, Edmonton Symptom Assesment System, é uma ferramenta utilizada em Cuidados Paliativos para quantificar os principais sintomas apresentados pelo paciente com o objetivo de orientar o melhor tratamento e melhorar a qualidade de vida. É composta por nove sintomas cardinais, sendo eles: dor, cansaço, náuseas, falta de apetite, tristeza, sonolência, dispneia, bem-estar e ansiedade; e um ou mais sintomas que podem ser vivenciados pelo paciente. A escala varia de 0 (zero) a 10 (dez) sendo zero a ausência de sintomas e 10 o sintoma em sua maior intensidade.
Foi evidenciada a importância de se utilizar estratégias pré-definidas para comunicação de más notícias aos pacientes e familiares, sendo uma delas o acrônimo “PREPARED” (Clayer 2007).
A usabilidade é um importante fator para melhorar a interação do usuário com o aplicativo. Diversos fatores contextuais e ambientais contribuem ou dificultam a utilização do mesmo (Gonçalves 2014). Segundo a norma ISO/IEC 250102, a usabilidade considera aspectos sobre quão fácil um sistema pode ser usado, como aprendizado, operabilidade, estética, entre outros.
Todas as interfaces foram criadas a fim de aperfeiçoar a experiência do usuário e garantir maior usabilidade, fatores fundamentais qualidade e competitividade do aplicativo (Rivero and Conte 2014). Para isso, foram utilizados elementos gráficos, com o cuidado de não poluir a interface, mas com o objetivo de apresentar o conteúdo do aplicativo de forma agradável, por meio de cores, gráficos e imagens.
Resultados
O desenvolvimento do aplicativo resultou em uma ferramenta de apoio aos profissionais de saúde que necessitam avaliar e obter orientações a respeito do estado de saúde do seu paciente em Cuidados Paliativos. O aplicativo consiste em duas funcionalidades teóricas e três funcionalidades práticas, tendo uma funcionalidade em fase final de desenvolvimento. As funcionalidades desenvolvidas e publicadas podem ser vistas na Figura 1.
Funcionalidades teóricas
As funcionalidades teóricas têm como objetivo apresentar os conceitos que permeiam os Cuidados Paliativos, com base nas melhores referências na literatura.
I. “O que são cuidados paliativos?”
Contém a definição de Cuidados Paliativos e links que podem ser acessados para esclarecimento de dúvidas e outros conceitos específicos.
II. “Como comunicar más notícias?”
Apresenta, de forma objetiva e prática, as orientações para a comunicação de más notícias aos pacientes e familiares. Má notícia é definida como: “Qualquer informação que, de forma adversa, afeta gravemente a visão de um indivíduo sobre o seu futuro”3.
É utilizado o acrônimo “PREPARED”, com detalhamento de cada item, para facilitar a memorização da melhor maneira de executar esta tarefa.
Funcionalidades práticas:
As funcionalidades práticas são dinâmicas e demandam a interação do usuário com o aplicativo para a obtenção de um resultado ou orientação.
III. Cálculo do PPS
Nesta funcionalidade, os cinco quesitos do PPS são apresentados para serem avaliados e respondidos conforme opções que variam de acordo com a gravidade. Os quesitos são: 1) Deambulação; 2) Atividade e evidência da doença; 3) Autocuidado; 4) Ingestão e 5) Nível da consciência.
A forma de apresentação dos quesitos e suas opções de resposta podem ser vistas na Figura 2.
As cores foram utilizadas para ilustrar a gravidade das opções de respostas, com a finalidade de reforçar o conteúdo descrito e tornar a escolha mais evidente. As cores utilizadas são:
- Verde: indica um nível estável.
- Amarelo: indica um nível transitório, com a necessidade de alguns cuidados.
- Vermelho: indica um nível crítico, com a necessidade de que alguém assuma seus cuidados.
- Cinza: indica a morte do paciente, sem a necessidade de continuidade no preenchimento. O escore se torna 0%.
Na parte superior é exibida a pontuação atual (a partir das opções selecionadas) em uma barra de progresso compatível com o sistema de cores descrito acima. As opções de resposta são dispostas conforme a ordem de gravidade e a resposta de um quesito interfere na pontuação do quesito seguinte.
Ao final, é exibida a pontuação total e as orientações a respeito do cuidado preconizado com base no resultado obtido, conforme Quadro 1.
Valor do PPS | Orientação |
Acima de 70% | O PPS entre 100 e 70% indica que o paciente está estável e necessita de número reduzido de cuidados e auxílio para a realização das atividades básicas de vida diária. |
Entre 40% e 60% | O paciente com PPS entre 60 e 40% apresenta uma condição transitória, em que a demanda por cuidados e auxílio cresce e já existem evidências da progressão da doença. Nessa condição é necessário considerar os aspectos psicológicos, sociais e econômicos, bem como as mudanças físicas experimentadas pelo indivíduo, prevenindo prejuízo no relacionamento entre o paciente e sua família. |
Abaixo ou igual a 30% | O paciente com PPS ≤ 30% se encontra no estágio avançado, com a capacidade funcional seriamente comprometida e necessitando que alguém assuma seus cuidados. Nesse caso é importante preparar o paciente e sua família para a proximidade da morte, com o objetivo de resolver assuntos pendentes, como por exemplo, elaboração de testamentos, custódia de filhos, e outros. |
Igual a 0% | Os cuidados com o paciente terminaram, portanto é necessário intensificar o suporte aos familiares e cuidadores envolvidos. |
Em todas as classificações existe a necessidade de gerenciamento intensivo dos sintomas e das demandas que o paciente e a sua família apresentem.
IV. Escala ESAS
Para propiciar a melhor utilização da funcionalidade, combinamos no aplicativo a escala ESAS com a escala EVA (escala visual analógica) para a avaliação de cada sintoma.
A escala EVA, é originalmente utilizada para avaliação de dor, associa a intensidade do sintoma de forma numérica (de zero a 10) com a escala de gradação de cores (que varia da cor azul, como melhor situação possível, até a cor vermelha, que indica a maior intensidade do sintoma avaliado), com a escala de expressões faciais, que representa a fisionomia do paciente perante o sintoma e com a escala de níveis de sintomas, que agrupa as intensidades em “Leve”, “Moderada” e “Intensa”.
Os dados podem ser preenchidos pelo paciente, pelo profissional de saúde e/ou pelo cuidador (Monteiro 2012), conforme Figura 3.
O usuário ao ser apresentado a essa escala pode selecionar a representação com a qual mais se identifica e/ou tem habilidade para utilizar, reduzindo assim o fator escolaridade como uma barreira à estratificação adequada dos sintomas (Thomas 2011).
O aplicativo possui uma funcionalidade em fase final de desenvolvimento não publicada ainda, para auxiliar profissionais de saúde na identificação de pacientes com necessidade de Cuidados Paliativos.
Esta funcionalidade consiste em um questionário sobre o estado atual de saúde do paciente, a presença de indicadores clínicos (doenças diagnosticadas previamente) e sinais de declínio ou aumento das necessidades de cuidados.
O questionário foi construído pela equipe científica do projeto, com base em revisão na literatura recente, para oferecer ao usuário facilidade de uso, suporte à decisão e informações completas sobre os Cuidados Paliativos.
As respostas têm formato múltipla escolha e guiam os profissionais ao longo do preenchimento. Novas perguntas são exibidas à medida que o usuário avança as etapas do questionário até a sua finalização. O resultado final será mediante indicação ou não dos Cuidados Paliativos, conforme Quadro 2.
Cuidados paliativos são indicados | Cuidados paliativos não são indicados |
Seu paciente tem indicação de iniciar os Cuidados Paliativos. Valor do PPS: xxx Existem sintomas que prejudicam a qualidade de vida do paciente. Priorize manejá-los. (São exibidas orientações sobre cada sinal/sintoma do paciente, informados ao longo do questionário) | Seu paciente ainda não tem indicação de iniciar os Cuidados Paliativos. Sugerimos que você continue o acompanhamento e reavalie periodicamente o paciente. |
Discussão
A utilização de aparelhos móveis por profissionais de saúde é bastante elevada, atingindo até 85% dos profissionais, segundo revisão de Garritty e colaboradores (Garritty and El Emam 2006).
Estudos robustos evidenciam que profissionais com acesso à educação continuada ou a ferramentas de referência, podem prestar melhor assistência à saúde (Whittaker et al. 2016).
Em 2 de junho de 2017, o aplicativo possui a nota 4,8 (sendo 5,0 a nota máxima) no Google Play e mais de 2.400 downloads, número que pode ser ampliado com a implementação de novas funcionalidades. Além disso, atualmente possui destaque entre os aplicativos ligados a área de saúde e é o primeiro lugar nas pesquisas sobre aplicativos para Cuidados Paliativos4.
A boa adesão ao aplicativo pode ser associada à facilidade de uso e pelo suporte às melhores práticas dos Cuidados Paliativos dentro e fora do ambiente hospitalar5. Entretanto, a sua usabilidade, do ponto de vista dos usuários, será avaliada em um trabalho futuro.
Conclusão
O aplicativo “Cuidados Paliativos” é um instrumento que pode auxiliar os profissionais da área de saúde a avaliarem de maneira prática e rápida o controle dos sintomas e da condição funcional do paciente por meio das escalas ESAS e PPS. Este aplicativo também pode apoiar profissionais de saúde na comunicação de más notícias, tarefa rotineira neste contexto, mas que exige habilidade e treinamento específico.
Ao auxiliar no reconhecimento dos sinais e sintomas apresentados pelos pacientes portadores de doença ameaçadora da continuidade da vida e capacitar o profissional de saúde a comunicar notícias ruins, o aplicativo tem o potencial de promover alívio ao sofrimento e agregar qualidade à vida e ao processo de morrer.
A expansão do conteúdo está programada para aumentar a utilidade do aplicativo, tendo como objetivo a inserção de funcionalidades para o próprio paciente, assim como o registro de seus dados para o monitoramento e visualização da progressão do seu quadro clínico dentro do conceito atual de empoderamento da saúde.