Introdução
A gravidez indesejada permanece um desafio na sociedade atual e a tecnologia da informação pode oferecer soluções inovadoras para dar suporte às políticas públicas de planejamento familiar. As gestações planeadas são aquelas que ocorrem no momento desejado ou a qualquer altura, para as mulheres que são indiferentes ao tempo da gravidez (Logan et al. 2007). Nascimentos não planeados estão associados a resultados neonatais adversos, tais como baixo peso ao nascer, parto prematuro, além das complicações durante a gravidez e para o futuro da criança (Finer and Kost 2011). É um dos indicadores mais importantes da saúde reprodutiva de uma população (Finer and Kost 2011).
Ajudar as mulheres a planear a gravidez requer uma abordagem abrangente e clara dos riscos reais inerentes a cada método contraceptivo e de se considerar como as mulheres percebem esses riscos sobre si mesmas (Frost, Singh, and Finer 2007). Neste sentido, o planejamento familiar é um conjunto de ações e recursos oferecidos para ajudar uma família a ter os filhos que desejar, envolvendo a oferta de métodos contraceptivos e medidas de suporte para livre escolha e sua manutenção (Brasil 2006). No Brasil, o tal planejamento integra o conjunto de direitos sexuais e reprodutivos, sem a imposição de nenhum método anticoncepcional ou do número de crianças que um cidadão deseja ter (Brasil 2006).
No entanto, a escolha de um método específico e a motivação para usá-lo ou abandoná-lo é uma questão complexa. Até o momento não há como aferir a intensidade da motivação para o uso de contraceptivos, apenas é assumido que algumas mulheres estão mais interessadas em adotar a contracepção do que outras (Kuang, Ross, and Madsen 2014). É especialmente importante o papel dos profissionais de saúde e dos pais para incentivar o uso regular de preservativos. Especialmente a influência das mães sobre as filhas na formação da intenção positiva para o uso do preservativo, de forma correta e no momento certo, assim como o papel do médico nesta orientação (Reis 2009). As decisões que as mulheres tomam sobre planejamento familiar refletem uma variedade de influências, incluindo informações disponíveis na mídia, acesso a métodos e serviços de saúde, além de influências culturais, religiosas e sociais, padrões socioeconômicos e comunitários (Valdés, Alarcon, and Munoz 2013).
A tecnologia móvel tornou-se um potencial a ser explorado na educação de adultos. Acredita-se que sua utilização possa apoiar a educação do cidadão, dada sua presença marcante no cotidiano, independentemente da classe social (Kavanaugh, Lindberg, and Frost 2012). Os adultos precisam de métodos de aprendizagem diferentes daqueles usados para crianças, evitando-se que o processo de ensino se torne tedioso e para superar as crenças e inibições negativas prévias (Knowles 1973). É fato que para eles, a necessidade de conhecimento está diretamente ligada à sua aplicação na solução de problemas cotidianos (Knowles 1973). Adultos são motivados internamente e auto-dirigidos para aprender, mas trazem experiências de vida que devem ser respeitadas (Lichtenstein 2016).
Os jogos são atividades com valor educacional intrínsecos, capazes de estimular a atenção, enquanto motivam o jogador através de competição e cooperação. Os jogos educativos proporcionam uma contribuição relevante para o aprendizado e para disseminar informações (Calisto, Barbosa, and Silva 2010). Jogos sérios têm sido empregados para treinamento em educação, ciência e nas atividades laborais (Derryberry 2007). Eles são intencionalmente feitos para aprender, uma vez que têm grande potencial para suportar experiências de aprendizagem imersivas, um passo crucial para a aprendizagem (Bizzocchi and Paras 2005). As aplicações (App) para dispositivos móveis vêm criando novas oportunidades de alcançar populações, que eram em grande parte inacessíveis através de canais de cuidados de saúde tradicionais (Fischer 2001).
Dada a questão desafiadora da gravidez indesejada em nossa sociedade, o alcance da tecnologia móvel carregando a estratégia de um jogo sério, o estudo teve como objetivo avaliar o impacto de uma App sobre planejamento familiar na disseminação de conceitos sobre o tema.
Metodologia
Trata-se de um estudo interdisciplinar entre as ciências da saúde e da computação, de natureza exploratória e aplicada, apresentando o desenvolvimento, disseminação e retorno dos utilizadores sobre uma App para dispositivos móveis. Do ponto de vista epidemiológico foi um estudo de seguimento de coorte prospectiva, dado que acompanhou-se o desempenho dos jogadores antes e após sua utilização. O estudo foi aprovado no Comitê de Ética e Pesquisa da UFMG sob o número C.A.A.E. 48435815.2.0000.5149.
A abordagem científica decorreu-se em etapas: a primeira foi a revisão de literatura científica sobre o tema planejamento familiar, com foco nas melhores práticas em saúde. Em seguida, a estratégia do jogo sério foi elaborada partindo-se de desafios contendo situações-problema, associados ao cotidiano de casais heterosexuais. Tais desafios foram validados quanto a relevância e linguagem utilizada nos textos, por usuários voluntários, valendo-se de grupos focais coordenados por médicos ginecologistas. Uma lista de situações fictícias previamente preparadas, com formato voltado predominantemente para o público feminino, buscou abranger contextos diversos de forma a permitir a introdução de conteúdos relativos aos métodos contraceptivos disponíveis no país, assim como estratégias para as tomadas de decisão em conjunto, pelo casal, ou individual. Além disto, todo conteúdo técnico-científico foi revisado por especialistas, professores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
Como estratégia, o jogo apresentou dezesseis situações do cotidiano dos casais acerca de contracepção (Figura 1). Para cada uma, quatro soluções foram preparadas para atender dimensões ligadas à saúde, família, amigos ou pais, apontando tal influência na decisão do jogador. Para cada decisão tomada, um retorno foi apresentado, a partir da implementação de um personagem (avatar) chamado “Doutora Sabe-Mais”, cujo papel foi de reforço positivo, apontamento de riscos associados às decisões e de oferecer conteúdo adicional com base científica sobre a questão. Procedeu-se então a etapa de programação do App para dispositivos móveis, por equipe do Centro de Informática em Saúde da Faculdade de Medicina da UFMG. Para isto, utilizou-se tecnologia open-source e frameworks para plataforma híbrida, com ilustrações produzidas por profissional especialista.
O jogo sério foi então disponibilizado gratuitamente em lojas de App na internet, em Abril de 2016, com a recomendação para uso por adultos e acompanhada do termo de consentimento on line explicitando fins de pesquisa. Na última etapa do estudo, após seis meses de lançamento do App e livre utilização pelo público interessado, os dados recolhidos sobre os utilizadores foram utilizados para análise estatística. O progresso na apropriação de conceitos sobre contracepção foi estimado pela diferença entre o número de métodos contraceptivos conhecidos antes e após do jogo. A análise foi realizada através do teste pareado, não paramétrico, de Wilcoxon. Empregou-se o software SPSS versão 22 IBM, considerando-se significativa a probabilidade de significância menor que 5%.
Resultados
O jogo sério denominado Saia Justa foi baixado através da lojas de App por 3.652 utilizadores. Estima-se que o jogo tenha sido utilizado por 3070 jogadores, cerca de 1,38 vezes por dispositivo móvel. Quanto ao sistema operacional do dispositivo móvel, o sistema iOS respondeu por 248 (6,8%) downloads contra 3.404 (93%) dispositivos com sistema Android. Relativamente ao país de origem do utilizador do App, 39% tem origem em Moçambique, 33% no Brasil, 21% em Angola, Cabo Verde 4% e 3% em outros países.
O tempo médio de jogo foi de 7:33 minutos. Entre os adultos que informaram a idade, 1462 pessoas (52%), a faixa variou de 18 a 77 anos, com maior frequência entre adultos jovens entre 18 e 33 anos, grupo que totalizou 1.233 (84%) dos jogadores que informaram a idade. No entanto, além de aceder ao App, foram 1.070 os que completaram todo o percurso do jogo pelo menos uma vez, sendo selecionados para análise, à partir da última utilização registrada na data deste estudo. Na Tabela 1, os utilizadores do App selecionados foram caracterizados quanto à auto-avaliação sobre o conhecimento prévio ao jogo, em relação aos métodos contraceptivos. Nota-se que a maioria julgava de antemão já ter bom ou elevado conhecimento prévio sobre as técnicas de planejamento familiar.
Nível de conhecimento | n (%) |
Alto | 126 (11,8) |
Bom | 410 (38,3) |
Baixo | 143 (13,4) |
Não informado | 391 (36,5) |
Total | 1070 (100,0) |
Especificamente quanto à aprendizagem, dentre 650 jogadores, observou-se que houve uma diferença significativa entre o número de métodos contraceptivos que o jogador relatou conhecer ao final do jogo, em relação ao que já conhecia previamente (p <0,001), Tabela 2. Parte desta diferença foi positiva, em 117 (18%) dos jogadores, ou seja, o número de métodos relatados após o jogo foi maior que o prévio, evidenciando retenção significativa de novos conceitos sobre o tema.
n | % | p-value* | |
Diferença positiva | 117 | 18,0 | <0,001 |
Diferença negativa | 10 | 1,5 | |
Empates | 523 | 80,5 |
* Wilcoxon test
O App Saia Justa foi registrado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, sob o número BR 5120160013141.
Discussão
No universo da informação disponível para o jovem adulto contemporâneo, imerso em ambiente virtual, considera-se oportuno que se desenvolvam novas possibilidades de aconselhamento contraceptivo por esse meio de comunicação. Dadas as relevantes complicações associadas à gravidez não planeada e o grande volume de informação na internet, torna-se ainda maior a importância do acesso democrático às fontes confiáveis de informação sobre o assunto. Os resultados aqui apresentados trouxeram a experiência de uma abordagem em formato de jogo sério, na expectativa de que tal estratégia possa apoiar a disseminação de boas práticas em saúde reprodutiva. Evidenciou-se que a intervenção educativa, mediada pela tecnologia da informação, pode representar um ganho para a abordagem populacional. Desta forma, este estudo ofereceu uma contribuição relevante ao retratar a experiência de ensinar saúde para adultos, através de um App previamente preparado e validado em ambiente acadêmico. Destaca-se por avaliar o impacto na aquisição de conhecimento sobre saúde reprodutiva de seus utilizadores.
A estratégia de apresentação progressiva dos conteúdos sobre o tema planejamento familiar foi a de manter uma relação estreita com a construção do conhecimento, através de situações simuladas, onde o jogador se coloca no lugar do personagem e toma decisões. Com isto, acredita-se que o App possa influenciar e motivar o processo de ensino e aprendizagem, envolvendo pelo menos memorização imediata. Há estudos que indicam que a memória humana absorve cerca de 90% das novas informações através da ação e, portanto, o jogo também pode ser um instrumento capaz de fomentar a memorização, contextualizada em uma situação lúdica e com base na solução de problemas do cotidiano (Benítez 2010). O jogo aborda, de forma inédita em ambiente virtual de aprendizagem, assuntos relacionados ao uso de contraceptivos, posicionando o jogador em situações desafiadoras para tomada de decisão. Esta estratégia foi concebida pelos autores deste estudo a partir dos pilares da andragogia, visto que a resolução de problemas incentiva o raciocínio do adulto em relação ao conhecimento anterior e estimula o interesse pelo conteúdo (Matai and Matai 2009, Knowles 1973).
Tais situações simuladas contextualizadas no período de vida das pessoas que buscam orientações contraceptivas, passou por ajustes em grupos de planejamento familiar dentro da universidade, para se obter um formato de fácil entendimento. As situações no jogo tentam imitar o círculo de amigos, autocuidado e influência do parceiro e família nas decisões, sem necessariamente focar em respostas totalmente certas ou erradas.
Para cada decisão tomada, um retorno foi oferecido reforçando conceitos ou alinhando-os para melhor prática em saúde pelo personagem “Doutora Sabe-Mais”. A informação sobre o uso correto dos métodos anticoncepcionais é desejável e estratégica, dada a relação existente entre o conhecimento dos métodos e os comportamentos da contracepção (Wannmacher 2005). O comportamento sexual de risco e as inequidades em saúde sexual podem ser ainda maiores entre os jovens vulneráveis e para as minorias étnicas (Straw and Porter 2012). Sob este aspecto, os dispositivos móveis podem atingir populações que anteriormente tinham acesso restrito a informações ou informações de saúde (Pratt et al. 2012). O jogo tem o potencial de abrir novos caminhos no estabelecimento de uma comunicação agradável com o público, considerando o papel de suas experiências pessoais.
App para dispositivos móveis são softwares desenvolvidos com uma interface simplificada em relação aos computadores e utilizam um desenho e tecnologia para prorporcionar menor tempo dispendido pelo utilizador, facilitando a interatividade, o que melhora a retenção das informações (Zhao, Freeman, and Li 2016). Existem aproximadamente 1,8 milhão de aplicativos no Google Play, sendo cerca de 84 mil com fins educacionais, mas nenhum sobre sexualidade ou contracepção. Já na loja de App Apple Store, entre dois milhões de aplicativos disponíveis, mais de 600 mil são jogos e a quantidade de jogos educativos é ainda maior do que no Google Play, pois encontram-se cerca de 2000 App educacionais, gratuitos e disponíveis em português (AppAnnie 2016). No entanto, nenhuma delas aborda educação sexual em idioma português. Mas é importante destacar que outras experiências neste sentido foram documentadas em inglês. Um grupo de pesquisadores noruegueses desenvolveram um App para promover a educação sexual através de um jogo (Gabarron et al. 2012). Este jogo, apesar de estar online, não está disponível para dispositivos móveis e está focado apenas em jovens daquele país.
Os resultados aqui apresentados devem entretanto ser considerados com cautela. A experiência de se analisar dados obtidos à distância e sem interação direta com os sujeitos da pesquisa é muito recente. Constatou-se uma perda significativa de participantes entre os 3.652 utilizadores que acederam ao App e os 1070 que efetivamente foram incluídos na análise, por informarem ser adultos e terem completado todo o percurso dos dezesseis desafios do jogo sério. Tomou-se como verdadeira a premissa de que os dados inseridos pelo utilizador são reais. Nota-se que nesta seleção, a maioria já tinha bom ou ótimo conhecimento prévio sobre métodos contraceptivos. Mesmo assim, a análise mostrou evidência estatística de que é possível acrescentar informações novas sobre outros métodos e contextos para sua utilização.
Conclui-se que a pesquisa aqui descrita trouxe uma nova abordagem sobre um conteúdo educacional em saúde no formato de jogo, na perpectiva de que tal estratégia possa apoiar a disseminação de boas práticas em saúde reprodutiva. Com foco na prevenção de gravidez não planeada, o emprego de meios da tecnologia da informação mostrou-se efetivo como estratégia de abordagem populacional de apoio à educação para saúde.