Introdução
A partir de meados do século passado até a atualidade, houve uma importante redução na mortalidade infantil por doenças infecciosas e parasitárias. Entretanto, essas continuam sendo um relevante problema de saúde pública no Brasil (Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011).
Ao longo dos últimos 80 anos, a proporção do total de mortes causadas por doenças infecciosas caiu de 50% para 5% (Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011). A partir dos anos 1980, com a introdução de programas de saúde pública e com o surgimento e o aprimoramento de novas vacinas, a saúde e a nutrição das crianças brasileiras melhoraram rapidamente e as desigualdades regionais e socioeconômicas nas coberturas de intervenções, no estado nutricional e em outros indicadores de saúde também sofreram um declínio considerável (Victora, Barreto, Leal, Monteiro, Schmidt, Paim Bascos et al. 2011; Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011). Os principais fatores que contribuíram para tais avanços estão relacionados a modificações socioeconômicas e demográficas, com melhorias nos determinantes sociais, intervenções fora do setor de saúde (saneamento, abastecimento de água, renda) e a criação do Sistema Único de Saúde, que trouxe a regionalização da atenção primária e o foco na promoção da saúde, inclusive por meio de programas centrados em doenças específicas (Victora, Barreto, Leal, Monteiro, Schmidt, Paim Bascos et al. 2011; Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011). Concomitantemente, a saúde infantil se tornou mais proeminente na agenda pública e grandes programas verticais de saúde foram implementados em larga escala, tendo sido posteriormente integrados à atenção primária à saúde: hidratação oral, promoção ao aleitamento materno e programas de vacinação (Victora, Barreto, Leal, Monteiro, Schmidt, Paim Bascos et al. 2011).
O controle de doenças como a cólera, as demais diarreias, a doença de Chagas e aquelas que podem ser prevenidas através da vacinação tem obtido êxito por meio de políticas públicas eficientes de ampliação do acesso à saúde e à qualidade de vida, por iniciativa tanto governamental quanto da sociedade (Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011). No caso dessas doenças, as políticas trataram de determinantes críticos, como qualidade da água, saneamento básico e controle do vetor, proporcionando acesso aos recursos preventivos, tais como vacinação e promoção de conhecimento, e obtiveram êxito na integração das políticas de saúde com as políticas sociais mais amplas (Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011).
Ao passo que o desenvolvimento socioeconômico foi benéfico em vários aspectos, no que concerne ao controle das doenças infecto-parasitárias, o progresso trouxe também algumas consequências negativas, como o aumento do desmatamento e da mobilidade populacional, expandindo as áreas de transmissão de algumas doenças endêmicas, como a febre amarela, e permitindo que doenças anteriormente restritas às áreas rurais aparecessem em áreas urbanas, tais como hanseníase e leishmaniose visceral (Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011) - cujas manifestações graves, às vezes, chegam à letalidade em crianças. A reintrodução do Aedes aegypti, na década de 1970, resultou, desde 1986, em epidemias sucessivas de dengue (Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011) e, mais recentemente, em um novo surto de Febre Amarela e também no aumento da incidência de doenças pouco conhecidas previamente, como a Febre Chikungunya e a Zika. Essa última, devido à associação com diversas complicações neurológicas, em especial com a microcefalia, afetou notadamente o Brasil e ganhou dimensão internacional, sendo pesquisada por diversos órgãos e instituições de todo o mundo. Finalmente, as mudanças nos ambientes urbanos e rurais favoreceram o surgimento de novas doenças infecciosas, como febre hemorrágica brasileira e hantavirose. Doenças que ainda não foram controladas com total sucesso, como tuberculose e hanseníase ainda sofrem disparidades regionais no que concerne à incidência, à prevalência, ao tratamento e/ou à resistência a drogas (Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011). Doenças que haviam sido anteriormente bem controladas foram reintroduzidas no Brasil ou passaram por mudanças epidemiológicas que reduziram a efetividade das ações de controle (Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011). As reduções na mortalidade de algumas doenças nem sempre foram acompanhadas por uma redução similar na incidência; tuberculose e HIV/ AIDS ainda são um problema de saúde pública em muitas regiões do país, apesar das substanciais quedas nas taxas de mortalidade desde meados dos anos 1990. É importante considerar que uma proporção considerável dos recursos alocados para a saúde continua sendo gasta com doenças infecciosas (Barreto, Teixeira, Bastos, Ximenes, Barata and Rodrigues 2011).
Entretanto, deve-se considerar que estratégias de controle sanitário, assim como o modelo tradicionalmente hegemônico da epidemiologia - baseado na análise dos fatores de risco individuais e dos fatores de vigilância epidemiológica e de fronteiras -, são, por vezes, considerados inadequados frente às doenças emergentes e reemergentes, que vêm causando enormes impactos sobre a saúde, a economia e os ecossistemas (Andreazzi 2009). Pesquisas assinalam a necessidade de uma abordagem integrada da conjunção de fatores históricos, sociais e ambientais que produzem no espaço geográfico contextos particulares dos problemas de saúde, como espaço organizado para análise e intervenção. Há a necessidade de identificar, para situações específicas, as relações entre as condições de saúde e seus determinantes culturais, sociais e ambientais, dentro dos ecossistemas modificados pelas atividades econômicas nos últimos anos, através de um enfoque interdisciplinar e interinstitucional (Andreazzi 2009).
Salienta-se também que uma das apresentações mais frequentes na emergência médica em pediatria é a criança febril. Trata-se de uma situação cuja avaliação clínica é, particularmente, problemática, devido ao grande risco para infecções potencialmente fatais contrapondo-se à dificuldade em distinguir doença viral benigna de infecções bacterianas mais graves. Isso se relaciona, frequentemente, ao uso indiscriminado de antibióticos e consequente seleção de micro-organismos (Talan 1996).
Tendo em vista todos os fatores descritos acima, além de considerar a importância das doenças infecto-parasitárias na infância, percebemos que houve uma grande mudança no perfil epidemiológico em saúde da criança, especialmente no que concerne às doenças infecciosas e parasitárias nas várias regiões brasileiras e acredita-se que tal tendência é vigente na cidade de Belo Horizonte - MG, bem como em sua região metropolitana. Nesse sentido, o Observatório da Saúde da Criança e do Adolescente - ObservaPed, projeto criado em 2008, por iniciativa do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em parceria com a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, através de Eixo Doenças Infecciosas e Parasitárias realizou esta investigação clínico-epidemiológica, por meio de estudo transversal, oportunamente no ambulatório de referência em infectologia pediátrica Centro de Referência em Doenças Infecciosas e Parasitárias Orestes Diniz UFMG/Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), Centro de Treinamento e Referência em Doenças Infecciosas e Parasitárias (CTR) que visa a traçar o perfil da clientela assistida por esse centro de referência. A partir do levantamento de dados sobre o novo perfil de prevalência e morbimortalidade das principais doenças infecciosas e parasitárias, objetiva-se investigar os determinantes sociais destas afecções, conhecer a distribuição e abrangência de cada uma delas e, desta forma, traduzir os conhecimentos produzidos em benefícios à população pediátrica estudada, implementando novas respostas sociais e sanitárias aos desafios impostos pelo novo padrão de morbimortalidade infantil (Silva 2010), sempre buscando melhorias, adequação dos tratamentos e prevenção eficaz das infecções e parasitoses na população belo-horizontina.
Objetivos
O objetivo deste estudo é investigar a prevalência e os determinantes das principais doenças infecciosas e parasitárias que acometem a população pediátrica atendida no Centro de Referência em Doenças Infecciosas e Parasitárias Orestes Diniz UFMG/PBH. Como determinantes, temos as seguintes variáveis epidemiológicas: sexo, peso, idade, estatura, local de moradia, escolaridade da mãe, número de crianças no domicílio, data da primeira consulta e diagnóstico. Dessa maneira, objetiva-se a determinação da nosologia prevalente da região circunscrita, conhecendo a distribuição e a abrangência de cada uma delas para que, futuramente, seja possível identificar a correlação de cada variável na prevalência e na incidência das doenças diagnosticadas, assim como os fatores de morbimortalidade das principais doenças infecciosas e parasitárias.
Metodologia
Foi realizado um estudo transversal utilizando dados obtidos de prontuários médicos, de acordo com as normas da instituição participante, sendo transformados em variáveis para registro em banco de dados. Os dados colhidos foram todos aqueles das crianças de 0 a 19 anos atendidas no Centro de Referência em Doenças Infecciosas e Parasitárias Orestes Diniz UFMG/PBH no período de 13 de abril a 10 de novembro de 2016, correspondentes aos atendimentos do dia seguinte à coleta, totalizando 173 prontuários. Apenas informações contidas na primeira consulta do paciente no ambulatório referido foram coletadas, registrando-se a data em que essa ocorreu. As consultas ocorreram no período entre outubro de 1999 e outubro de 2016. Foram buscados os seguintes dados dos prontuários: sexo, idade no dia da primeira consulta, local de residência, escolaridade materna, diagnóstico principal, comorbidades, peso e altura, com os respectivos percentis determinados pelas Curvas de Crescimento da OMS para sexo e idade. Os gráficos apresentados foram desenvolvidos pelo programa Microsoft Excel - 2017; versão 15.32.
Resultados
Das 173 crianças e adolescentes incluídos no estudo, 47,1% são meninos enquanto os outros 52,9% são meninas. As idades variam entre 9 dias e 19 anos, com média de 1 ano, 8 meses e 22 dias. Crianças classificadas como prematuras, de acordo com a classificação da Organização Mundial da Saúde, tiveram suas idades no dia da primeira consulta corrigidas. Pacientes em cujos prontuários não foi possível encontrar a data da primeira consulta não tiveram suas idades consideradas para estes cálculos, perfazendo um total de 1,1% dos dados coletados. Das primeiras consultas pediátricas no centro de referência, 17,9% ocorreram ainda no período neonatal, até 28 dias completos, enquanto que o restante se divide em 52% de lactentes entre 30 dias a 6 meses de vida, 8,7% de lactentes entre 6 meses e 2 anos, 6,9% de pré-escolares, até 4 anos completos, 6,9% de escolares, até 10 anos completos, e 7,5% de adolescentes, de 11 a 19 anos (Gráfico 1).
A grande maioria dos dados coletados foi proveniente de primeiras consultas ocorridas no ano de 2015, compondo 43,3% do total. O restante se divide entre os anos 2016 (33,5%), 2014 (9,8%) e de 2013 ao ano de 1999 (12,1%). Os demais registros (1,1%) se encontravam sem a data na qual as consultas ocorreram (Gráfico 2).
De acordo com os endereços registrados em prontuário, a grande maioria dos pacientes (74%) era proveniente de cidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), capital do Estado de Minas Gerais, onde o presente estudo foi realizado. Pacientes que não apresentaram este dado em seus prontuários representaram 6,4% das crianças, enquanto 9,9% eram provenientes da Região Central de Minas Gerais, 4,6%, da Região Centro-Oeste, 1,7%, da Região do Jequitinhonha e do Mucuri, 1,1%, da Região da Mata e, finalmente, 2,3% são provenientes da Região do Rio Doce. O índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM), da cidade de Belo Horizonte, foi o mais alto encontrado dentre as cidades encontradas, sendo de 0.810. A cidade do interior com o maior IDHM foi Conselheiro Lafaiete, na Região Central de Minas Gerais, com valor de 0.761. Já o menor valor encontrado foi de 0.612, relativo à cidade de Piedade de Caratinga, na Região do Rio Doce.
Dentre os principais diagnósticos firmados na primeira consulta das crianças em questão, temos as infecções congênitas suspeitas como os mais prevalentes, perfazendo um total de 129 (74,5%) prontuários. Ao analisarmos cada infecção individualmente, temos a sífilis congênita em primeiro lugar, com 48 (27,7%) registros, e a toxoplasmose congênita em segundo, com 37 (21,3%), seguidas pela exposição ao vírus da imunodeficiência humana (HIV) totalizando 36 pacientes (20,8%), pela citomegalovirose (CMV) congênita em 6 prontuários (3,4%) e pela rubéola congênita com 2 pacientes (1,1%). Quadros de infecção pelo HIV já firmados também possuem frequência elevada na amostra estudada, sendo o diagnóstico principal em 15 consultas (8,7%). Outras doenças, como leishmaniose visceral, meningoencefalite viral, linfadenomegalias, esquistossomose e imunodeficiência a esclarecer, se dividem entre os outros 44 prontuários analisados, compondo 25,4% da amostra (Gráfico 3).
A análise individualizada por ano de ocorrência nos mostra uma prevalência de 39,6% de sífilis congênita, 25,8% de toxoplasmose congênita e 5,2% de exposição ao HIV no ano de 2016. Perfil epidemiológico diferente do encontrado nos anos de 2015 e 2014, com sífilis congênita ainda sendo a mais prevalente (29,3%), no entanto, com a exposição pelo HIV ocupando o segundo lugar dentre os diagnósticos de 2015, totalizando 26,6% das consultas. O ano de 2014 é composto em 35,3% por exposição ao HIV, 23,5% ocorrendo devido a toxoplasmose congênita e 17,6% dos pacientes com sífilis congênita suspeita.
Quanto ao sexo das crianças, temos uma maior prevalência de sífilis congênita dentre as meninas incluídas no estudo, com 27,8% dessas com esse diagnóstico. Entre o sexo feminino, a segunda doença mais prevalente é a toxoplasmose, seguida pela infecção pelo HIV. Em relação aos meninos, os diagnósticos mais observados nos prontuários seguiram a mesma ordem que os das meninas: o mais comum foi a sífilis congênita, com 25,3% de prevalência, enquanto toxoplasmose e infecção pelo HIV ocuparam o segundo e terceiro lugar, com 24,1% e 19,3% dos registros, respectivamente.
Os diferentes grupos etários apresentam perfis epidemiológicos diferentes entre si, com diferentes doenças ocupando a posição de mais prevalente dentre as observadas. No período neonatal, é perceptível uma maior ocorrência de exposição ao HIV, dentre os prontuários observados, com 38,7% dos pacientes nessa faixa etária com esse diagnóstico principal. A toxoplasmose congênita e a sífilis congênita seguem respectivamente como segundo (29,0%) e terceiro (16,1%) diagnósticos principais mais encontrados na faixa etária. A exposição a sífilis foi observada em maior parcela dentre os lactentes entre 30 dias e seis meses de vida, totalizando 45,6% dos diagnósticos principais firmados nesses pacientes. Em outras faixas etárias, a sífilis ocupa papel de menor importância, não sendo registrada a partir da faixa pré-escolar. Desde esse grupo etário, até a faixa da adolescência, o diagnóstico firmado de HIV se mostrou como doença de maior prevalência na amostra.
Dos pacientes observados, 120 (69,4%), não tinham outras comorbidades associadas, enquanto 37 (21,4%) possuíam apenas uma doença associada e os outros 16 (9,2%) se encontravam com duas ou mais alterações. As comorbidades mais prevalentes na amostra foram a prematuridade, encontrada em 15 (8,6%) e as alterações no sistema nervoso central (SNC), em 14 (8,1%) dos pacientes. A prematuridade foi uma comorbidade encontrada, em sua grande maioria, 86,6%, em pacientes com infecções congênitas suspeitas. Tanto a toxoplasmose congênita, quanto a exposição ao HIV, a sífilis congênita e a rubéola congênita apresentaram foram diagnosticadas em pacientes prematuros. Dentre as alterações no SNC, foi percebido que, em 54,5% dos pacientes com tais eventos, estas se encontravam em pacientes com exposição ao Toxoplasma gondii materno. A candidíase oral foi também uma das comorbidades recorrentes na amostra, sendo relatada em 2,3% dos prontuários, sendo que, destes registros, 75% deles se encontravam em pacientes com diagnóstico principal a exposição ao HIV materno.
A escolaridade materna, foi um dado que não esteve presente em 50,3% dos prontuários (Gráfico 4). Dentre aqueles que possuíam tal informação, foi observada que a maioria das mães apresentavam 8 anos ou mais de estudo (60,5%), tendo 42,3% destas concluído o Ensino Médio. Mães que relataram ter realizado ou que estão em formação de Ensino Superior compõem 10,5% da amostra, enquanto outros 29,1% não completaram o Ensino Fundamental. Observa-se que 13,3% das crianças com diagnóstico de infecções congênitas têm mães que não completaram o ensino fundamental, ou seja, têm escolaridade inferior a 8 anos.
Discussão
O Centro de Referência em Doenças Infecciosas e Parasitárias Orestes Diniz UFMG/PBH fornece serviços a pacientes de todo o estado, de todas as faixas etárias, que possuam necessidade de acompanhamento em centro especializado na área de infectologia. Os serviços realizados na unidade são oferecidos à população por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), o sistema de saúde público brasileiro. Desse modo, o perfil epidemiológico encontrado possui um viés de seleção, uma vez que uma parcela importante das doenças infecto-parasitárias terá acompanhamento realizado na atenção primária, que possui plenas condições de oferecer tratamento e seguimento aos referidos pacientes. Casos de maior complexidade ou então de maior gravidade, e até mesmo aqueles que necessitam de medicação especial, como os antirretrovirais, que somente terão liberação em referidas Unidades Dispensadoras de Medicamentos (Ministério da Saúde 2013), são referenciados aos serviços especializados, como o CTR Orestes Diniz.
Outra limitação a ser considerada no estudo seria um viés de informação frente aos dados encontrados, uma vez que a falta de alguns dados, como escolaridade materna, foi fato recorrente durante a coleta. Os prontuários são ferramenta importante de consulta sobre informações do paciente, de sua história e de sua evolução clínica, bem como valioso instrumento de auxílio em possíveis questões jurídicas relacionadas ao atendimento prestado. O número elevado de registros de pacientes com dados faltantes nos revela a frequente inadequação no seu preenchimento. Dados como a escolaridade materna, idade do paciente no primeiro atendimento, sua procedência, a data da primeira consulta, entre outros, são de extrema relevância no acompanhamento longitudinal dos pacientes, que, por sua vez, é a proposta de assistência médica do CTR-UFMG. No entanto, quando esses dados não são encontrados nos prontuários, prejudica não só estudos como o nosso, mas também evidencia a resistência dos médicos assistentes em seguirem os protocolos que normatizam os registros de pacientes neste Hospital. Um dos fatores que consideramos importante para esse problema é a ausência de prontuários eletrônicos neste ambulatório, o que torna a pesquisa por dados, além do próprio registro destes, mais lento e complexo. Esse fator aliado ao grande número de atendimentos realizados por cada médico, diariamente, no centro de referência, pode influenciar de maneira negativa o modo como são confeccionados os prontuários, tornando-os menos eficientes e completos.
A exposição a patógenos maternos, que podem levar a infecções congênitas figuram como a mais prevalente dentre as afecções pediátricas encontradas. O Ministério da Saúde preconiza algumas sorologias maternas como exames básicos do pré-natal, a fim de rastrear recém-nascidos em risco de contrair infecções congênitas. As infecções pesquisadas durante o pré-natal abrangem a sífilis, a hepatite B, o HIV e a toxoplasmose, as quais, se não diagnosticadas e tratadas precocemente, tanto durante a gestação quanto logo após ao nascimento, podem trazer sequelas irreversíveis para a vida dessas crianças (Secretaria de Atenção à Saúde 2012). Dentre os riscos associados às infecções congênitas encontra-se o risco mais elevado de prematuridade nesses recém-nascidos (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) 2015), o que é corroborado pela amostra que demonstrou quadros de prematuridade ocorrendo em conjunto a exposição a patógenos maternos. É importante salientar que, no momento do parto, há também a pesquisa de patógenos maternos por meio de testes de triagem para sífilis e HIV (Secretaria de Atenção à Saúde 2012).
Infecções congênitas podem se manifestar desde o período neonatal, com lesões neurológicas, ortopédicas e dermatológicas bastante características, fornecendo assim maior probabilidade diagnóstica, quando aliado a uma sorologia materna positiva. No entanto, o quadro mais presente na rotina das maternidades é o de neonatos assintomáticos, ou mesmo com manifestações inespecíficas, e com alterações em sorologias realizadas durante o pré-natal (Secretaria de Atenção à Saúde 2014). Esses pacientes requerem um acompanhamento mais próximo, com medidas de prevenção, exames e medicamentos pré-determinados para cada doença materna encontrada (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) 2015). Sempre é realizada a busca por anticorpos específicos no recém-nascido ainda nos primeiros dias de vida quando se suspeita de infecção, porém tais exames podem apresentar resultados pouco confiáveis na medida em que ocorre a passagem de IgG materno para o feto através da placenta. Anticorpos do tipo IgM não atravessam a barreira placentária. Portanto, o achado de anticorpos IgG em altos títulos pode representar apenas o resultado de uma transferência materna dessas proteínas e não uma resposta ativa do recém-nascido ao antígeno (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) 2015). Caso não ocorra passagem do patógeno ao feto, não haverá a infecção e esse não desenvolverá resposta imunológica e não produzirá anticorpos próprios de defesa. Anticorpos maternos permanecem no sangue dos lactentes até que estes completem entre 6-18 meses de vida em média. Assim, é preciso realizar um acompanhamento longitudinal dos pacientes com suspeita de infecção congênita pelo menos até a faixa etária de desaparecimento dos referidos anticorpos na criança, a fim de confirmar (em casos não confirmados previamente) ou excluir o diagnóstico (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) 2015). Caso se confirme a presença da infecção, um acompanhamento mais prolongado será iniciado.
O acompanhamento desses recém-nascidos em um centro de referência especializado é fundamental para minimizar possíveis danos resultantes de tais infecções. Com isso, é possível compreender o motivo pelo qual o perfil de pacientes observados é composto majoritariamente por lactentes (78,6%), com média de idade inferior a 2 anos. Esses pacientes recebem a suspeita diagnóstica ainda nos primeiros dias de vida, na sua grande maioria, sendo assim, encaminhados ao centro de referência da região. Além disso, o fato de essas crianças serem acompanhadas pelo menos até a idade de 18 meses justifica o grande número de primeiras consultas ocorridas entre 2014 e 2016 em relação àquelas de acompanhamento na época da coleta dos dados.
Os últimos anos foram marcados por um aumento na incidência de sífilis congênita em todo o país, com o ano de 2006 marcando taxa de incidência de 2,0 casos/mil nascidos vivos, com 2.297 novos casos, enquanto no ano de 2015 houve um total de 8.183 novos casos notificados, com taxa de incidência de 6,5 casos/mil nascidos vivos, segundo dados do boletim epidemiológico da Sífilis de 2016, realizado pelo Ministério da Saúde brasileiro (Secretaria de Vigilância em Saúde 2016). Esses dados demonstram um aumento na taxa de incidência da sífilis congênita de 325% em apenas 9 anos. Ainda segundo o boletim epidemiológico, temos dados referentes ao estado de Minas Gerais que mostram uma taxa de detecção inferior à encontrada no país como um todo, com 1.384 novos casos no estado, representando uma taxa de detecção de 5,2 casos/mil nascidos vivos (Secretaria de Vigilância em Saúde 2016).
Esse aumento decorreu de diversos fatores. Atualmente, dispomos de um amplo arsenal terapêutico contra as DSTs, em especial contra o HIV/AIDS, uma das doenças de maior impacto na mídia, o que melhorou significativamente a qualidade e expectativa de vida de pessoas soropositivas. Acreditamos que a ampla divulgação desse fato, bem como o advento dos métodos contraceptivos, esteja contribuindo para a redução do uso de métodos de barreira pela população durante as relações sexuais, o que estaria aumentando as taxas de transmissão de DSTs como um todo. A ocorrência de tratamento inadequado dos pacientes, especialmente devido à falta da penicilina em todo o país também figura como fator determinante. Em 2015, em nota informativa do Ministério da Saúde, ressaltou-se a falta da matéria-prima para produção da penicilina em escala global, o que levou a uma priorização desse recurso para gestantes e recém-nascidos com diagnóstico de sífilis, sempre que disponível (Ministério da Saúde 2015). A ausência da medicação mais eficaz fez com que antimicrobianos menos efetivos, como a ceftriaxona, fossem utilizados como alternativa, aumentando assim a disseminação da doença. Estudos científicos consideram que os dados referentes à eficácia de tratamentos não penicilínicos para a sífilis são insuficientes, devendo essas gestantes e recém-natos serem acompanhados em intervalos mais curtos de tempo, caso outras medicações sejam utilizadas (Ministério da Saúde 2015). Outras causas de tratamento inadequado incluem o não tratamento dos parceiros e o abandono do acompanhamento, com uso incompleto das doses da medicação (Secretaria de Vigilância em Saúde 2016). A amostra de pacientes analisados reflete essa tendência, uma vez que a doença com maior prevalência dentre os prontuários observados é a sífilis congênita.
A toxoplasmose congênita é uma doença infecciosa que resulta da transmissão transplacentária do Toxoplasma gondii para o concepto, decorrente de infecção primária da mãe durante a gestação ou por reagudização de infecção prévia em mães imunodeprimidas (Secretaria de Atenção à Saúde 2012). A toxoplasmose é uma zoonose de distribuição universal e bem frequente no ser humano com prevalência que varia em diferentes regiões, sendo mais comum em países tropicais. O índice de infecção está relacionado a hábitos alimentares, hábitos higiênicos, população de gatos e climas quentes. O risco de transmissão materno fetal é em torno de 40% e aumenta com o avançar da gravidez; contudo, o grau de comprometimento do concepto é maior no início da gestação. Esse comprometimento envolve sequelas oculares, auditivas e do sistema nervoso central, o que justifica o achado de 54,5% das comorbidades neurológicas encontradas na amostra estarem em pacientes com diagnóstico de toxoplasmose congênita.
Os programas de triagem pré-natal têm reduzido a toxoplasmose em países de prevalência elevada como França e Áustria, cujos índices reduziram de 84% para 44% e de 50% para 35% respectivamente (Peterson 2007; McLeod, Boyer, Karrison, Kasza, Swisher, Roizen, Jalbrzikowski et al. 2006; Garcia-Méric, Franck, Dumon, and Piarroux 2010). A triagem neonatal para toxoplasmose é realizada no Reino Unido, França, Dinamarca, Estados Unidos (Peterson 2007). No Brasil, a triagem pré-natal é feita, em alguns estados, de modo mais organizado. Entretanto, em um país com diferenças culturais, sócio-demográficas e econômicas, essas ações nem sempre conseguem se firmar de maneira uniforme (Peterson 2007; Lopes-Mori, Ruiz, Mitsuka-Breganó, Capobiango, Inoue, Reiche, Morimoto, Casella, Bittencourt, Freire and Navarro 2011).
O vírus da imunodeficiência humana (HIV) é um retrovírus que tem como alvo os linfócitos T com receptores CD4. Ele está presente no sangue de pessoas infectadas, assim como em outros fluidos corporais, como o sêmen, a secreção vaginal e o leite materno. A transmissão ocorre por via predominantemente sexual, mas também pelo contato com sangue contaminado, pela via transplacentária ou mesmo pelo aleitamento materno (Secretaria de Atenção à Saúde 2014). Desse modo, gestantes soropositivas podem transmitir o vírus aos recém-nascidos desde o período pré-natal até o pós-natal, caso ocorra a amamentação, sendo necessárias medidas de cuidado longitudinal do neonato, a fim de evitar a transmissão. A implementação de medidas como aconselhamento e triagem pré-natal, profilaxia antirretroviral, cesárea eletiva e suspensão do aleitamento materno, conseguiram reduzir as taxas de transmissão para menos de 2% em países com programas de prevenção bem-sucedidos (Secretaria de Atenção à Saúde 2014). Uma vez que as medidas de prevenção à transmissão vertical do HIV requerem acompanhamento mais próximo do recém-nascido, tanto pelos possíveis efeitos colaterais deletérios da medicação, quanto pela necessidade de renovação da prescrição de medicação e de fórmula infantil, o agendamento de consultas mais próximas da alta hospitalar é necessário (Secretaria de Vigilância em Saúde 2014). Assim, primeiras-consultas no ambulatório de acompanhamento em geral ocorrem ainda nos primeiros 30 dias de vida do recém-nascido, justificando a verificação da preponderância desse diagnóstico no período neonatal, a despeito de não ser o diagnóstico mais prevalente na amostra como um todo.
Durante a fase aguda, semanas após a infecção, o paciente frequentemente apresenta sintomas de uma infecção viral inespecífica. Após essa fase, segue-se um período assintomático, de duração variável, no qual o vírus continua se replicando e há diminuição progressiva da imunidade, até o momento em que o organismo se torna altamente suscetível a infecções oportunistas, neoplasias e manifestações autoimunes. Entre as infecções oportunistas, as infecções fúngicas apresentam papel relevante no indivíduo com síndrome da imunodeficiência humana. Tem-se como exemplo a pneumocistose, a aspergilose e a candidíase oral e genital, as quais devem ser buscadas em toda avaliação do paciente exposto (Secretaria de Vigilância em Saúde 2014). Essa maior suscetibilidade pode justificar a ocorrência de 75% dos pacientes com candidíase oral na amostra terem a exposição ao HIV como diagnóstico principal.
Medidas de prevenção primária, ou seja, quaisquer atos destinados a diminuir a incidência de uma doença numa população, reduzindo o risco de surgimento de casos novos, se baseiam, no caso das afecções congênitas relatadas, em triagem pré-natal e orientações adequadas à gestante e ao seu parceiro. Essas constituem medidas que podem ser adotadas já na atenção primária de maneira eficaz, com uma captação precoce no pré-natal e realização da rotina básica de exames preconizada pelo Ministério da Saúde brasileiro (Secretaria de Atenção à Saúde 2012). Como medidas específicas para prevenção das principais doenças supracitadas, temos as ações para prevenção das infecções sexualmente transmissíveis de maneira geral, tanto para a sífilis quanto para o HIV; as medidas de identificação e de tratamento de gestantes infectadas por sífilis e da prevenção da reinfecção das mesmas; as medidas de controle da carga viral do HIV; entre outras. Medidas gerais de higiene, cuidado no contato com animais e no manejo de alimentos possivelmente contaminados entram nos cuidados preventivos da citomegalovirose e da toxoplasmose congênitas, assim como de outras doenças não registradas no estudo, mas de relevância epidemiológica no país, como as parasitoses intestinais e as arboviroses (zika vírus, dengue e chikungunya).
Conclusão
O CTR Orestes Diniz recebe pacientes de todo o estado de Minas Gerais, de todas as faixas etárias. A análise de prontuários de primeira consulta do serviço pediátrico prestado no local demonstra a grande importância das infecções congênitas no quadro epidemiológico do estado. Toxoplasmose, sífilis, citomegalovirose, rubéola congênitas e exposição ao HIV são doenças que podem causar grande morbidade ao recém-nascido, podendo levar até mesmo ao óbito de neonatos e crianças afetadas. A qualificação do pré-natal leva a um diagnóstico precoce dessas afecções, permitindo que um maior número de crianças expostas ao risco chegue aos locais de referência para acompanhamento e tratamento adequados, como ocorreu com os pacientes observados.
É importante ressaltar que a orientação quanto a medidas de prevenção e controle das doenças de transmissão vertical é fundamental durante todo o período pré-natal, tanto para a gestante, quanto para o seu parceiro. Desse modo, uma atuação ativa na prática das medidas preventivas poderá levar a uma redução na incidência das infecções congênitas como um todo, contribuindo para um menor número de crianças com sequelas graves e até mesmo podendo reduzir índices de mortalidade infantil no país.