1. Introdução
A Welwitschia mirabilis Hooker f. (Welwitschiaceae) (Figura 1.) foi descoberta para a ciência em 1859, perto do Cabo Negro, a norte de Tômbua, em Angola, pelo naturalista austríaco Friedrich Welwitsch [1806-1872], então ao serviço da administração colonial portuguesa (Swinscow, 1972). Inicialmente descrita sob o nome Tumboa mirabilis, foi pouco depois renomeada em honra ao seu descobridor pelo botânico inglês Joseph D. Hooker (Hooker, 1862). A W. mirabilis é um endemismo do deserto do Namibe (SW de África). Distribui-se desde o Rio Nicolau, em Angola, até ao rio Kuiseb, na Namíbia, nunca se distanciando muito da costa (Kers, 1967). Pouco mais de cem anos após a descrição original, as populações namibianas foram segregadas numa subespécie autónoma - subsp.namibiana - com base na morfologia dos cones masculinos, quedando as populações angolanas na subespécie tipo (subsp. mirabilis) (Leuenberger, 2001). Esta taxonomia, porém, não é consensual (Jacobson, Jacobson, van Jaarsveld & Jacobson, 2014).
A W. mirabilis é uma planta fora do comum dos pontos de vista morfológico, fisiológico, evolutivo e ecológico. O sistema radicular raiz é longo e profundante, como é usual nas plantas perenes do deserto. O caule é constituído por um eixo lenhoso curto e espesso, não ramificado, distalmente alargado num disco (coroa) que pode ultrapassar os 50 cm de diâmetro. Geralmente produz dois, eventualmente três pares de folhas (von Willert, 1993). O primeiro par - os cotilédones - é rapidamente substituído por duas folhas opostas longas (até 4 m) persistentes durante toda a vida da planta (von Willert, 1985). A produção de novas folhas cessa logo em seguida ficando a planta truncada na extremidade distal. As duas folhas alongam-se continuamente pela base a partir de meristemas intercalares foliares situados na interface da folha com a coroa. A destruição dos meristemas intercalares pela herbivoria comprometem irremediavelmente a sobrevivência da planta (Bruce Bennett, comunicação oral). A W. mirabilis é uma planta dioica - coexistem indivíduos masculinos e femininos (Bornman, Botha & Nash, 1973) - característica que, não sendo rara, é minoritária entre as plantas-com-semente. Anualmente, na margem da coroa, por baixo ou por cima das folhas, emergem estruturas reprodutivas - cones masculinos ou femininos. A polinização é realizada por insetos (entomófila). As sementes são aladas (têm duas asas) e dispersas pelo vento. Superficialmente, a W. mirabilis assemelha-se a uma planta recém-germinada, de enorme tamanho, ou com a copa truncada. Esta estranha fisionomia conferiu-lhe o epiteto de “a planta mais feia do Mundo” (Bustard, 1990). O crescimento é muito lento e a longevidade notável. Datações por carbono-14 indicam que plantas relativamente pequenas têm entre 500-600 anos. Para as plantas de maior dimensão estimou-se 2000 a 3000 anos, embora estes valores careçam de confirmação (Henschel & Seely, 2000).
As estratégias usadas pela W. mirabilis para sobreviver à escassez de água no solo são distintas das outras plantas do deserto, mas ainda largamente desconhecidas. As folhas pequenas (microfilia) ou gordas (crassifolia), a caducifolia de estação seca, e a terofitia (ciclo de vida anual) são quatro das adaptações mais frequentes nas plantas dos desertos e semidesertos tropicais (vd. Breckle, 2002). A W. mirabilis escapa a este padrão, facto que lhe confere um papel ecológico muito relevante para algumas espécies de animais, porque, além da biomassa verde que lhes serve alimento, as grandes folhas fornecem refúgio e sombra, mantendo a temperatura do solo mais de 20°C abaixo da temperatura dos solos adjacentes (Marsh, 1990). As perdas de água por transpiração são relativamente elevadas em condições de campo, cerca de 1L/dia nas plantas de tamanho médio (Eller, von Willert, Brinkmann & Baasch, 1983). Por alguma razão as plantas cultivadas, ao invés, por exemplo, das Cactaceae, exigem regas copiosas. A W. mirabilis realiza um tipo de fotossíntese eficaz a reduzir perdas de água - o chamado Metabolismo Ácido das Crassuláceas (CAM). No entanto, por razões que se desconhecem, a quantidade assimilada de CO2 por esta via é apenas cerca de 4%, um valor surpreendentemente baixo para uma planta de ambientes tão extremos (von Willert, Armbrüster, Drees & Zaborowski, 2005). Em períodos de seca extrema, as plantas fecham os estomas reduzindo as perdas de água; o consequente deficit (fome) de CO2 só parcialmente pode ser compensado com reservas de carbono acumuladas nas partes antigas das folhas (Eller, von Willert, Brinkmann & Baasch, 1983). As adaptações fisiológicas da W. mirabilis à falta de água são, aparentemente, limitadas, e uma vez que não exibe dormência, a sobrevivência dos indivíduos depende de um acesso praticamente contínuo à água (Henschel & Seely, 2000). A bibliografia refere, e a nossa experiência de campo confirma, que esta espécie ocupa microssítios hidricamente compensados, beneficiados pela escorrência e concentração de áreas imediatamente vizinhas (e.g., fendas de rochas, cabeceiras de linhas de água temporárias e a base dos inselbergs), ou por toalhas freáticas profundas (e.g., leitos secos de rios do deserto) (vd. Kers, 1967).
Das inúmeras linhagens de plantas-com-semente que povoaram o planeta entre o Devónico e o final do Mesozoico sobreviveram até ao presente apenas seis (relações evolutivas resumidas na Figura 1). As angiospérmicas (plantas-com-flor), de todas a mais recente, é dominante na grande maioria dos ecossistemas terrestres, com aproximadamente 352.000 espécies conhecidas, mais 10-20% por descrever (Joppa, Roberts, & Pimm, 2011). No âmbito das gimnospérmicas - plantas-com-semente sem flor - reconhecem-se cinco grandes linhagens, que em conjunto perfazem apenas cerca de 1.000 espécies (Christenhusz et al., 2011). As gimnospérmicas incluem as cicas, os ginkgófitos - uma linhagem monoespecífica representada pelo ginkgo (Ginkgo biloba) -, os pinófitos (pinheiros, abetos e afins), os cupressófitos (ciprestes e outras espécies), e os gnetófitos, com apenas 3 géneros, Gnetum, Ephedra e Welwitschia, e cerca de 30 espécies. Os pinófitos e os cupressófitos constituem as coníferas, um grupo provavelmente parafilético (não inclui todos os descendentes de um ancestral comum).
Durante cerca de 100 anos, os gnetófitos foram considerados o grupo irmão das angiospérmicas, ou mesmo o seu ancestral mais direto. Esta proximidade foi deduzida a partir do elevado número de características partilhadas com as plantas-com-flor; e.g., a presença de células especiais (elementos de vaso) no tecido (xilema) que transporta a seiva bruta, polinização entomófila, estruturas reprodutivas (cones) bissexuais, primórdios seminais envolvidos por estruturas similares ao carpelo das angiospérmicas e o facto de em alguns Gnetum ocorrer um esboço de dupla fecundação (Carmichael & Friedman, 1995). No entanto, desde a década de 90, com o advento da biologia molecular e da sequenciação de ADN, têm vindo a acumular-se evidências de que os gnetófitos são, na realidade, um grupo irmão dos pinófitos, evolutivamente distante das angiospérmicas (Doyle, 1998; Goremykin et al., 1996) (Figura 2). A sua relação com as coníferas não está encerrada, mas a hipótese dos gnetófitos serem uma linhagem irmã das angiospérmicas parece excluída (Wang & Ran, 2014). As similaridades morfológicas dos gnetófitos com as angiospérmicas devem ser reinterpretadas como um fenómeno de convergência evolutiva (Donoghue & Doyle, 2000), um processo evolutivo que gera morfologias semelhantes em linhagens sem relação evolutiva direta, em consequência de pressões seletivas similares. Ao contrário dos outros dois géneros de gnetófitas (Gnetum e Ephedra), o género Welwitschia tem atualmente uma distribuição geográfica muito restrita e compreende uma única espécie: W. mirabilis. Um abundante e diverso registo fóssil que recua ao Cretácico Inferior indicia que a linhagem da Welwitschia outrora se expandia pela África, América do Sul, China, Ásia Central, Europa e América do Norte (Friis, Pedersen & Crane, 2014; Hou, 2014). A W. mirabilis é uma relíquia do passado, um fóssil vivo.
O deserto do Namibe desenvolve-se ao longo do litoral angolano, a sul da cidade do Namibe, e prolonga-se até à Africa do Sul paralelo ao litoral namibiano. O tramo final do rio Cunene disseca o deserto no sentido Este-Oeste - constitui uma fronteira natural entre a Namíbia e Angola, e circunscreve o que outrora se designou por deserto de Moçâmedes (sector angolano do atual deserto do Namibe). Trata-se de uma área com uma geomorfologia de grande complexidade comportando um extenso sistema dunar constituído por dunas de grande mobilidade com dezenas de metros de altura, que tem como fronteira em Angola o rio Curoca. Este importante curso de água trava o movimento para norte e para o interior das areias transportadas pelos ventos dominantes de oeste e sudoeste. Para além dos extensos campos de dunas, no deserto do Namibe observam-se alinhamentos de inselbergs (alguns de elevada dimensão) de grande originalidade pelas suas formas exóticas de erosão, diferenciados sob um clima quente e húmido, antes da aridificação iniciada no Miocénico Inferior (Amaral, 1973). Os inselbergs são o habitat de uma diversa e original flora arbustiva e arbórea (e.g., gen. Commiphora, Euphorbia, Acacia, Boscia, Combretum, Moringa e Sesamothamnus). Nas regiões desérticas com precipitação média anual inferior a 100 mm, é conhecida, e muito estudada, a associação entre os afloramentos rochosos e a dominância de arbustos e árvores frequentemente nanificados, por oposição às formações de gramíneas características dos solos de textura arenosa (Esler, Milton & Dean, 2006). As superfícies de rocha viva concentram a água da chuva em fendas, em quantidade suficiente para sustentar plantas de grande biomassa, de outro modo incapazes de prosperar com tão baixas precipitações.
Na área de estudo, i.e., na área de distribuição da W. mirabilis em Angola, reconhecem-se, então, dois grandes espaços do ponto de vista geomorfológico e ecológico: (i) afloramentos de rochas do Maciço Antigo, maioritariamente pré-câmbricas (granitos, gnaisses, xistos, grauvaques entre as mais abundantes), entre os quais sobressaem os inselbergs; (ii) as dunas móveis que cobrem o extremo sudoeste do Parque do Iona, desde o vale do Curoca até ao mar (Amaral, 1977, 1982). Ainda assim, neste segundo conjunto, é possível observar alguns afloramentos de granito róseo da superfície fundamental nas áreas de deflação, onde o vento arrastou as areias (e.g., ao longo do percurso pela praia desde a Foz do Cunene até Tômbua), e em alguns nos espaços interdunares muito profundos. Por seu turno, os relevos residuais, designados por inselbergs (com diferentes composições geológicas, embora na sua maioria sejam formados por amontoados de blocos graníticos), são separados por superfícies de aplanamento cobertas por sedimentos (piedmont plain), nas quais se distingue um pediment (mais próximo do inselberg) e leques aluviais (planícies aluviais). As variações granulométricas nas superfícies de aplanamento são impressionantes - vão desde uma dominância quase total da matriz arenosa, sobretudo próximo dos inselbergs na lomba do pediment, às áreas de deserto pedregoso (integrados dos leques aluviais) com abundante material grosseiro (cascalho) numa matriz arenosa. A W. mirabilis habita as regiões onde afloram as rochas do Maciço Antigo; a distribuição dos sedimentos tem, como se verá, um grande impacto na distribuição da espécie.
Do ponto de vista climático, na área estudada as isoietas estão compreendidas entre os 20 e os 100 mm (média 1914-1969) (Daveau, 1972; Dinis, 1991) sendo que a faixa litoral entre Tômbua e a Foz do Cunene não ultrapassa os 20 mm anuais (Daveau, 1972) (Figura 3). As temperaturas mais elevadas registam-se durante o período das chuvas (janeiro a abril). Os valores baixos de precipitação estão relacionados com a estabilização das massas de ar oceânicas arrefecidas pela baixa temperatura das águas marítimas da corrente de Benguela o que leva, contudo, à enorme frequência de nevoeiros que este deserto litoral regista. Estes nevoeiros penetram, em determinadas situações, cerca de 100 km para o interior (Amaral, 1973). É conhecida, e tem sido estudada, a importância destes nevoeiros no fornecimento de água e na sobrevivência dos vegetais do deserto do Namibe (Hachfeld & Jurgens, 2000). Devido à influência da corrente fria de Benguela, os valores da temperatura da água do mar oscilam entre 16°C e apenas em fevereiro, março e abril podem superar os 20°C, chegando a atingir os 25°C (Silveira, 1969). Desta forma, mesmo durante o período quente e chuvoso, as temperaturas do ar nunca são muito elevadas tendo em conta a latitude do território estudado (Amaral, 1973) - a temperatura média anual situa-se entre os 19 e 23°C na área de estudo (Dinis, 1991). Quanto à classificação de Köppen, a área de estudo apresenta um clima de tipo BWh-clima árido, desértico quente (Griffiths, 1972; Schulze, 1947).
Do ponto de vista biogeográfico, o deserto do Namibe começou a individualizar-se há cerca de 17,5 milhões de anos, quando o território do atual Sáara estava ainda colonizado por florestas tropicais (Senut, Pickford & Ségalen, 2009). A aridez do deserto do Namibe permaneceu genericamente estável quando comparada com o Sáara - desde a sua formação há 7,5 milhões de anos, o Sáara atravessou cerca de 230 períodos de maior precipitação (os chamados períodos verdes do Sáara) (Grant et al., 2017; Larrasoaña et al. 2013; Skonieczny et al., 2015). A extensão do deserto do Namibe variou ao longo do tempo. No início do Miocénico estendia-se até à bacia do Congo, próximo do Equador. Em épocas geológicas mais recentes (Pleistocénico), cresceu em latitude e para o interior nos períodos glaciais (de maior secura) e contraindo-se nos interglacial. Estudos recentes revelam um aumento da precipitação invernal (período frio) - e a convergência num clima de tipo mediterrânico - durante os períodos glaciais, em consequência de uma subida para norte da frente polar (Dupont, 2006). Estas inversões no ritmo de precipitação anual tiveram certamente uma influência significativa na flora e vegetação atuais - e.g., especiação de plantas bulbosas e crassifólias -, as quais não são ainda conhecidas na sua totalidade. De qualquer forma é marcante a estabilidade da aridez do deserto do Namibe desde a sua formação até à atualidade, um facto chave para explicar o elevado número de endemismos presente neste imenso território.
O deserto do Namibe não é uma entidade biogeográfica homogénea. Alguns autores segmentam o deserto do Namibe em função da distribuição da precipitação e do efeito que esta tem na estrutura da vegetação - a época das chuvas desloca-se para a estação fria de norte para sul, ao mesmo tempo, por exemplo, que as plantas crassas ganham importância. Outros valorizam o substrato - e.g., áreas com substratos arenosos móveis vs. territórios rochosos e/ou detríticos não mobilizáveis pelo vento. A WWF (WWF Ecoregions) distribui a área de estudo por duas unidades fitogeográficas: AT1310-Kaokoveld Desert e AT1316 - Namibian Savanna Woodlands. Outra classificação fitogeográfica recente, da autoria de Linder et al. (2012), baseada em aves, mamíferos, anfíbios e cobras (vertebrados) e plantas, propõe uma sub-região Sudoeste Angolana, no âmbito da vasta Região Sul Africana. White (1983), tendo como base apenas a flora e vegetação, considera um Centro Regional de Endemismos Karoo-Namibe, repartido por duas subunidades: Deserto do Namibe e Vegetação arbustiva baixa Karoo-Namibe. De acordo com o mesmo autor, a área de estudo está maioritariamente incluída na primeira das subunidades (predominantemente litoral e arenosa com dunas de grande dimensão, alguns inselbergs e vales de enchimento detrítico). Na segunda subunidade, mais interior, predominam os inselbergs e os aplanamentos [ou plainos como lhe chama Amaral (1973)] cobertos por sedimentos arenosos e/ou pedregosos (piedmont). Por último, vale a pena referir que Gossweiler e Mendonça (1939), de modo similar, consideram dois territórios fitogeográficos litorais na porção angolana do deserto do Namibe: 1. Deserto de Seca e Litorideserta; 2. Mobilideserta (associada à ocorrência de dunas móveis e coberturas arenosas).
2. Objectivos
A W.mirabilis é a planta símbolo de Angola, e um magneto para os botânicos - e faz todo o sentido que o seja. São raras as espécies de plantas com uma bibliografia tão vasta e diversificada de ecofisiologia e de evolução. Todavia, as comunidades vegetais de W. mirabilis são pouco conhecidas. Publicações clássicas como as Cartas Fitogeográficas de Gossweiler (1939) e de Grandvaux Barbosa (1970) desenvolvem escassamente o tema. Na sequência do trabalho recente e pioneiro de Cardoso (2015) realizou-se em abril e maio de 2018 uma expedição geobotânica internacional ao Deserto do Namibe/Foz do Cunene, organizada conjuntamente pela Universidade José Eduardo dos Santos (Huambo), Universidade de Lisboa, Associação Portuguesa de Ciência da Vegetação (PHYTOS) e Société Française de Phytosociologie (SFP). Um dos objetivos desta expedição consistiu no estudo da vegetação de W. mirabilis de acordo com os princípios e métodos da fitossociologia clássica (sigmatista), cujos resultados preliminares agora se divulgam.
3. Material e métodos
No presente estudo da vegetação dominada por W mirabilis no Sudoeste de Angola adotaram-se os métodos e os conceitos da escola de fitossociologia de Zurique-Montpellier e da sua mais recente extensão - a fitossociologia de paisagem ou fitossociologia dinâmico-catenal. Uma descrição pormenorizada, total ou parcial, da Fitossociologia Integrada (Fitossociologia Clássica + Fitossociologia de Paisagem) está publicada, por exemplo, em Mueller-Dombois e Ellenberg, (1974), Géhu e Rivas-Martínez (1981) e Géhu (1987). O trabalho de Capelo (2003) é a melhor introdução escrita em língua portuguesa. Na metodologia fitossociológica distinguem-se duas fases fundamentais: a fase analítica e a fase sintética. A fase analítica consistiu na procura e inventariação de áreas com um tipo de vegetação espacialmente recorrente homogéneo dos pontos de vista fisionómico, florístico e ecológico, no presente caso, com a presença de W. mirabilis. Após a selecção da área de amostragem, as espécies presentes foram rigorosamente inventariadas e avaliado o seu grau de cobertura (escala de Braun-Blanquet). Simultaneamente, foram tomadas as coordenadas geográficas e quantificados alguns fatores ecológicos a priori considerados relevantes (e.g., altitude, exposição, declive, litologia). Durante os trabalhos de campo efetuaram-se 19 inventários de comunidades de W. mirabilis, entre abril e maio de 2018. A estes adicionaram-se os 15 inventários disponíveis na dissertação de Cardoso (2015), perfazendo um total de 34 inventários (Figura 4). A identificação das plantas realizou-se, em grande parte, no herbário LISC, sediado no Instituto de Investigação Científica Tropical (Lisboa). A fase sintética, resumidamente, consistiu na organização dos inventários em tabelas de Excel em função da sua frequência e do seu significado ecológico, e na sua posterior análise e classificação. A etapa sintética pode, com vantagem, ser assistida por algoritmos computacionais. Para este trabalho efetuou-se uma análise de correspondências retificada (DCA) no programa CANOCO 5.0 (Ter Braak & Šmilauer, 2012). Como a utilização direta da escala alfanumérica de Braun-Blanquet em análises numéricas não é possível, foi necessário a sua transformação segundo a proposta de van der Maarel (2007). O método fitossociológico tem como produto final um sistema de classificação geralmente formalizado num sistema sintaxonómico que tem como unidade elementar a associação. Nos resultados, adiante explicitados, foram omitidas as tabelas fitossociológicas. Uma discussão detalhada da sintaxonomia das comunidades de W. mirabilis fica relegada para uma publicação especializada na área da ciência da vegetação.
4. Resultados e Discussão
A análise de correspondências dos 34 inventários segrega quatro grupos identificáveis com outras tantas associações fitossociológicas, que se descrevem em seguida (Figura 4).
A. Welwitschietum mirabilis Cardoso e J.C. Costa inéd. (figura 5)
Comunidade descrita por Cardoso (2015) própria dos piedmont plain das áreas mais a norte do Deserto do Namibe angolano. Em ambientes mais extremos - de baixa precipitação ou em depósitos arenosos espessos - a W. mirabilis é a única planta perene dispondo-se em mosaico com comunidades paucispecíficas de plantas anuais dominadas por Zygophyllum simplex (figura 5). Estas são as áreas mais secas das superfícies sedimentares que cobrem as depressões entre os inselbergs preenchidas por leques aluviais, topograficamente sempre em posição mais elevada (interflúvios) do que as comunidades de W. mirabilis e A. recifiens que colonizam os valeiros de fundo plano definidos pelos cursos de água efémeros. Os sedimentos são, aparentemente, pouco espessos de modo a permitir o enraizamento da W. mirabilis nas plataformas rochosas subjacentes da superfície fundamental.
Eixo 1 | Eixo 2 | Eixo 3 | |
---|---|---|---|
Valores próprios (eigenvalues) | 0,7698 | 0,5010 | 0,3377 |
Variação explicada (cumulativa) | 11,80 | 19,48 | 24,66 |
Comprimento do gradiente | 4,52 | 3,44 | 3,15 |
B. Welwitschio mirabilis-Acacietum reficiens Cardoso e J.C. Costa inéd. (figuras 6 e 7)
O número de espécies perenes aumenta nos espaços mais favoráveis, principalmente nos cursos de água efémeros que recebem águas de escorrimento superficial provenientes de superfícies rochosas extensas, cobertas por sedimentos arenosos pouco profundos e/ou onde a toalha freática se encontra próxima da superfície. Trata-se de cursos de água que apenas têm escorrência quando chove, mas devido ao regime torrencial apresentam uma grande heterometria dos sedimentos (areias de diferentes calibres a calhaus de diferentes dimensões (Amaral, 1982) A A. reficiens é particularmente frequente nestas condições formando mesmo alinhamentos que serpenteiam a paisagem associadas a estes cursos de água efémeros. Próximo do litoral entra a Boscia pestalozziana. Nos fundos de vale de maior humidade, supomos com toalhas freáticas acessíveis, a W. mirabilis é acompanhada por uma outra lenhosa, a Salvadora persica que corresponderá um fácies um pouco mais húmido da comunidade de cursos de água efémeros de W. mirabilis, A. reficiens e B. pestalozziana (figura 4 facies B1).
C. Comunidade de Commiphora sp.pl. e W. mirabilis (figura 8)
Trata-se de uma comunidade nanofanerofítica, própria de fendas rochosas mais ou menos preenchidas com areias, localizadas no sopé de inselbergs xistosos ou grauváquicos. Esta comunidade é de todas as formações vegetais com W. mirabilis a mais diversa em espécies perenes, entre as quais se destacam várias Commiphora; e.g., C. saxatilis, C. wildii e C. virgata (figura 6) e também algumas suculentas como a Euphorbia virosa subsp. virosa que frequentemente acompanha estas comunidades.
D. Savana nanofanerofítica de Stipagrostis hochstetteriana var. secalina e W. mirabilis (figura 9)
Savana nanofanerofítica com uma elevada cobertura de S. hochstetteriana var. secalina. Tem por habitat zonas de piedmont plain cobertas por sedimentos arenosos, por vezes enriquecidos com frações mais grosseiras (cascalho e calhaus). A espessura dos sedimentos é suficientemente delgada para permitir o enraizamento da W. mirabilis nas plataformas rochosas subjacentes da superfície fundamental. Ainda assim, a W. mirabilis, raramente é acompanhada por outras espécies lenhosas. Esta comunidade tem grande expressão no Parque Nacional do Iona sendo substituída, a norte, em habitats similares mas mais litorais, pela suprarreferida Welwitschietum mirabilis.
5. Conclusão
O estudo das comunidades vegetais dominadas por W. mirabilis realizado no âmbito da Expedição Geobotânica realizada ao SW de Angola revelou a existência de comunidades fitossociológicas que, apesar de aqui fazermos a sua descrição e diferenciação florística, carecem de estudos posteriores de caracter laboratorial para descortinar detalhadamente as principais variáveis ambientais que intervêm na sua individualização florística e estrutural. A análise dos inventários fitossociológicos de forma manual e com recuso a técnicas estatísticas multivariadas resultou numa separação em 4 comunidades claramente separadas do ponto de vista florístico e hidrogeomorfológico. Uma comunidade claramente edafo-higrófila associada a linhas de água temporárias frequentemente com uma toalha freática próxima da superfície (Welwitschio mirabilis-Acacietum reficiens), uma segunda associada às áreas planas (interflúvios) das planícies de enchimento, entre os cursos de água temporários (Welwitschietum mirabilis), outra associada a plataformas arenosas (savana nanofanerofítica de Stipagrostis hochstetteriana var. secalina e W. mirabilis), e uma última característica dos sectores basais dos inselbergs de xistos e grauvaques presente apenas nos territórios para sul de Oumahua Lodge até ao rio Cunene (Comunidade de Commiphora sp.pl. e W. mirabilis).